18/01/08

Feminismo intuitivo aos três anos de idade e uma nova tese sobre a origem de pá

Quando a minha mulher disse à minha filha de três anos, no dinamarquês materno das duas, “Hvor er du blevet solbrændt, mand!”, que é como quem diz “’Tás me’mo queimada, pá!”, a miúda respondeu-lhe “Jeg er ikke en mand, jeg er en pige!”, o que significa, na língua em que conto a história, “Não sou um homem, sou uma rapariga!”.

Acho que todos perceberam que a palavra mand (“homem”) é, em dinamarquês, o equivalente do no português europeu moderno, e que a miúda tomou literalmente a palavra… e ofendeu-se…

Agora, não sei se o movimento feminista em Portugal alguma vez protestou contra o uso abusivo de , mas, se nunca o fez, tem, provavelmente, todo o direito a fazê-lo. A tese mais comummente aceite é que é uma abreviatura de rapaz, e por que há-de uma rapariga ou mulher admitir que lhe chamem rapaz? Existe a teoria alternativa de que se trata antes de uma abreviatura de compadre, mas isso, a ser verdade, não altera em nada a questão do uso indevido da expressão quando alguém se dirige a uma pessoa do sexo feminino…

A origem de , no entanto, não me parece tão clara como isso tudo e surgiu-me no outro dia uma terceira possibilidade que é capaz de não ser de desprezar. Não é com certeza melhor do que as já existentes, mas também não parece ser menos plausível. Mas deixem-me, antes de vos expor a minha nova tese, discutir as duas que já existem, a do rapaz e a do compadre.

A tese do rapaz é boa: é fácil compreender como se chega de uma forma à outra e o único senão que lhe consigo encontrar é que se poderia tender a prever (notem que não digo “postular como forçosamente necessária”…) uma forma intermédia *‘paz que eu nunca vi documentada em lado nenhum. Bom, a não ser que, de rapazinho, se tenha passado a pazinho, forma sem dúvida atestada, e que tenha sido de pazinho que se tenha derivado o , usando regressivamente a regra normal de formação dos diminutivos. Assim, já não há necessidade de mais nenhuma forma intermédia.

A tese do compadre também não é má de todo. À partida, a palavra pareace demasiado longa para estar na origem de uma abreviatura tão abreviada, mas talvez não seja. Que a palavra se abreviou nalguns zonas de fala ibérica, é certo: são bastante usadas em certas zonas da América Latina as expressões cumpa ou compay. A perda da sílaba inicial, essa, não me parece nada estranha, porque uma sílaba pré-tónica pode cair em português (e noutras línguas, claro está) com relativa facilidade e o com- caiu mesmo por exemplo no ‘panhero que eu conheço do falar saloio e que rima com o topónimo Per’ Punhero*…

Agora, a hipótese nova: Em vastas zonas de falar ibérico, desde a Argentina ao México, são frequentes as interjeições epa e opa, pronunciadas [é-pá] e [ó-pá] com acentuação em ambas as sílabas, de tal maneira que um português, quando as ouve, não as distingue, daquilo que ele está habituado a compreender com “eh, pá!” e “oh, pá!”. E não só em zonas de língua castelhana – também no português do Brasil há um epa e um opa** que soam praticamente como o nosso “eh, pá” e “oh, pá”, embora não haja no português daquelas terras. A hipótese a considerar é que seja dessas interjeições que tenha surgido o pá. É perfeitamente plausível.

Mas, mesmo que não seja verdade, continua a fazer sentido postular que as expressões epá e opá não só existiam antes do como continuam perfeitamente vivas hoje em dia – só que, com a existência do , passaram a ser compreendidas como sendo “eh, pá” e “oh, pá” e não uma interjeição única. Quer dizer, mesmo que o não tenha vindo das interjeições, não há razão para postular que [é-pá] é forçosamente “Eh, pá!”.

[Adenda a 19 de junho de 2015, revista a 23 de fevereiro de 2024]
Há ainda, tinha-me esquecido, a possibilidade de vir de pai. Já vi e ouvi algumas vezes na minha vida “Ó paizinho” como vocativo popular, dirigido não ao progenitor, mas a um desconhecido, e também a exclamação “Ena pai!”, que voltei a encontrar há pouco tempo no conto “José Valentim”, de Fialho de Almeida (Mem Martins: Europa-América, s/d). É claro, pode muito bem ser ao contrário: que de se tenha “reconstruido” um étimo fictício pai, talvez por analogia com tio, que também se usava muito como vocativo na língua popular. Vá lá uma pessoa saber…
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* Pero Pinheiro, na pronúncia de Pero Pinheiro
** O oba brasileiro também pode facilmente derivar desse opa.

3 comentários:

José Manuel Paiva disse...

Curiosa essa questão. Os meus tios mais velhos lá na aldeia usavam a expressão pás, usando no plural o pá: "Eh pás, corri tanto que ..." isto se falavam com um único interlocutor. Se falassem para vários era "Oh pás, peguei no sacho e ..." parecendo aqui que as interjeições eh e oh definiam a singularidade ou pluralidade dos interlocutores. Mas isto posso eu estar a especular erradamente que nunca sequer tinha pensado no assunto. Apenas tinha registado há muito a curiosidade desta fala. Fala esta, aliás, que a geração seguinte deixou de utilizar. A palavra ou expressão, morreu pelo menos lá para os meus lados e nunca a ouvi noutro sítio. E agora dou comigo a pensar se não deveria ter escrito paz em vez de pás, uma vez que me parece que a intenção daquele dizer é a de referir, de maneira abreviada, rapaz ... enfim ... Já agora há uma derivação da palavra com diminutivo, não sei se já ouviste: pázinho, dito também no feminino: pázinha. "Ó pázinha estou cheia de problemas ...", "ó pázinho tu tem cuidado com ela ...". Conheço quem diga ... E para terminar uma coisa muito gira que descobri num blogue enquanto andava na internet à procura da origem do "pá", acerca duma história contada por A. Herculano: um rapaz, rural, perdido de amores por uma moça da aldeia, necessitando dos ofícios de alguém para interceder junto da moça, resolveu solicitá-lo ao pároco. Este, então, indagou: mas tu ama-la? E responde o rapaz: "Amar não amo, pois não sei as palavras. Mas preciso muito dela". Lindo isto, hein? Apesar da sua ignorância o rapaz tinha uma grande consciência retórica. E as palavras, pá, são uma invenção do caraças ...

Vítor Lindegaard disse...

Obrigado, José Manuel, pela contribuição para a conversa e pela bonita história de Herculano. Bem vindo a esta Travessa!

zégalhão disse...

A propósito da maior ou menor consciência feminista na(o)s jovens, actualmente, uma coisa me intriga no tratamento entre ela(e)s: chamarem-se por pá tornou-se raro e é mais usado como interjeição de aborrecimento, indignação ou pena: o pá coloquial foi substituído pelo "meu", usado por rapazes e raparigas indistintamente do género a quem se dirigem, ou seja, as raparigas entre si também se tratam por "meu" e não por "minha" (há algumas excepções, claro). A palavra "pá" não tem género, mas "meu" sim,e, observando o que disse atrás fico a pensar se nas jovens actuais isto é sinal de uma submissão do género ou, pelo contrário, uma afirmação de igualdade, já que no que toca aos costumes a evolução tem sido no sentido de uma maior liberdade. E ainda bem.