06/11/08

Histórias de arenques e bacalhaus

Quando se faz história de temas em vez de se fazer história de nações e dos seus líderes, os objectos de estudo que eu vejo são sempre abstractos. Há história do medo, da democracia, da família, da vida privada, das doenças, da contracepção, do diabo, etc., etc., etc., mas nenhum desses temas de mentalidades e instituições tem cheiro que não seja metafórico e vago. Nada que se possa comparar com o apetitoso cheiro – nauseabundo, dirão alguns, eu sei… – do arenque e do bacalhau, de que li há pouco tempo duas histórias (uma de cada um, claro está…): Cod: A Biography of the Fish That Changed the World, de Mark Kurlansky* (London: Penguin, 1998) e Herring - A History Of The Silver Darlings, de Mike Smylie (London: The History Press LTD, 2004). São dois livros, perdão..., dois peixes fundamentais para a história da Europa e de mais alguns lugares do mundo.

[Esclareço também que, ao contrário do que eu dizia noutro texto desta Travessa (e espero que isso não tenha sido claro para ninguém, porque a minha intenção, nesse texto, era precisamente que não se distinguisse o que era irónico do que não o era…), acho mesmo que toda a gente devia comer peixe e sopa, e tudo com azeite cru, em vez de porcarias que só fazem é mal!]

As duas histórias de peixes de que aqui falo agora têm várias coisas em comum: são ambas de escrita escorreita e leitura fácil; são as duas pouco académicas e, a espaços, de rigor duvidoso (mais a primeira do que a segunda), mas têm ambas também muita informação interessante e suficientemente documentada; têm as duas muitas receitas, de gastronomias várias e algumas delas muito antigas; e são ambas ilustradas com muitas e bonitas fotografias, desenhos e gravuras (mais a segunda do que a primeira). Eis uma selecção um bocado ao calhas de coisas que se podem aprender nestes livros: aprende-se, por exemplo, que, ao contrário do que possam imaginar alguns ecologistas ingénuos, há muito tempo que se come comida transportada de bem longe; aprende-se que muitas receitas de cozinha que muita gente considera exclusivas do seu país (pastéis de bacalhau, por exemplo…) não são de uma exclusividade assim tão exclusiva como isso tudo…; aprende-se como James I de Inglaterra teve a ideia de delimitar águas territoriais e como a ideia se foi desenvolvendo; que o arenque constituía uma parte importante da alimentação dos soldados do império britânico; que era, em muitos sítios, em arenques que se pagavam tributos feudais e dízimas; que o arenque é um dos produtos cujo comércio está na origem da criação da Liga Hanseática; aprende-se que as cabeças do bacalhau eram, antigamente, a parte mais valorizada desse peixe (fresco, entenda-se); aprende-se como os pescadores foram tranquila e obstinadamente esvaziando os mares de peixe (mas isso já toda a gente sabe, não é?); e como os gostos foram mudando à medida que a Europa se ia desenvolvendo, até o peixe deixar de fazer parte da dieta quotidiana da esmagadora maioria dos seus habitantes (Portugal e Espanha ainda são, ao que parece, uma ainda-bem-que-excepção). E aprende-se também que – ao contrário do que pensam muitos portugueses e embora se tivessem fartado de o pescar, ninguém lhes tira isso – não foram os portugueses os mais importantes pescadores de bacalhau** (e, claro, de arenque também não o podiam ser, que não é peixe das nossas águas nem das nossas tradições), mas tiveram, em certas épocas um papel muito importante na conservação de ambos os peixes, que foi o de fornecerem sal – e o sal favorito dos produtores: no início do século XIV, o sal de Aveiro era o sal preferido para salgar bacalhau de boa qualidade; na mesma altura, era proibido aos neerlandeses usar o chamado “sal de Lisboa” (que era de facto de Setúbal) para a salmoura do arenque de barrica, mas, nos séculos seguintes, era esse mesmo sal considerado o melhor para esse fim.

Agora, certo já de sermos o sol, o sul e muito o sal, o que tenho de fazer a seguir é arranjar um livro sobre a “rechinante sardinha” (deve haver…), que é, aliás, também da família dos arenques. De facto, os dois peixes são tão parecidos no sabor e na textura que eu não percebo por que é que não se comem arenques assados na brasa nos países do Norte e por que é que não se faz conserva de sardinha em molhos à base de vinagre, sal e açúcar nos países do Sul. Tenho de ser eu, está visto, a acabar com esses prconceitos. E depois digo-vos o resultado, sim?
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* Está traduzido em português americano e em português europeu. A edição portuguesa é O Bacalhau: biografia do peixe que mudou o mundo. Lisboa: Terramar, 2000.

** De facto, os portugueses praticamente não pescaram bacalhau entre o século XVI e o século XIX, e, mesmo no período áureo da pesca do bacalhau, dos anos 40 aos anos 70 do século XX, quando Portugal conseguiu chegar a ser o primeiro produtor mundial de bacalhau seco e salgado, não deixou nunca de importar bacalhau. Para um resumo da história da pesca do bacalhau, ver, por exemplo, o documentário da RTP Faina maior, a pesca do bacalhau, do historiador Fernando Rosas, com a participação do historiador Álvaro Garrido, especialista do tema.

6 comentários:

Nuno (@gmail) disse...

Ora aí está uma coisa que também me fazia confusão - por que não se comem arenques assados na brasa? Em meados de Setembro decidi juntar um grupo de amigos aqui em casa para uma arencada (assim baptizámos a experiência) na varanda. Nesta altura do ano os arenques estão bastante gordos, muito mais do que as sardinhas, o que combinado com a força das brasas, resultou num espectáculo quase pirotécnico. A primeira dose de arenques ficou esfolada e um bocado esturricada. Para a segunda dose já deixámos as brasas esmorecer, e apagávamos as chamas logo que tentavam levantar a crista. A experiência foi um sucesso. De facto, o sabor do arenque assado na brasa é muito parecido com o da sardinha. E a razão pela qual não é comum assá-lo, deve ter que ver com o invariável espalhafato de fumo e labaredas proporcionado pelo arenque gordo e pingão.

Vítor Lindegaard disse...

Obrigado, ó Nuno, por confirmares que a minha teoria estava certa. Eu bem sabia que havia de ser petisco! E agora, diz-me lá, uma sardinhazinha preparada à maneira do sild dinamarquês, já experimentaste? Eu estou a pensar fazer a experiência com umas sardinhas portugas congeladas que a minha cabeleireira vende. Não pode ser mau! Mas tu não és muito dado a arenque de conserva à maneira nórdica, pois não?

Nuno (@gmail) disse...

Pois não, não sou muito dado ao pickle de arenque, por ser demasiado adocicado. Se não lhe pusessem tanto açúcar, ainda marchava. Boa sorte com as sardinhas!

Vítor Lindegaard disse...

Pois é, Nuno, a experiência está feita: pode fazer-se arenque de conserva - com sardinha! E até com sardinha congelada, que, aqui em Moçambique, sardinha fresca não há, como deves calcular. É rápido, é barato e foi um sucesso hoje ao almoço, quando provámos finalmente o "sild" caseiro (com "pão de centeio" que eu faço só com trigo, porque centeio aqui também não se arranja...).
Agora, quanto à questão de não gostares do pickle de arenque à dinamarquesa, por ser doce, é só questão de arranjares variedades com menos açúcar - às vezes, encontra-se no supermercado, mesmo aí na Dinamarca, arenque que é só avinagrado, mas não é doce, e há conservas suecas e alemãs, estou eu em crer, que não são nada doces. Também podes comprar o tradicional spegesild, o arenque de barrica tal como foi exportado durante séculos para todo o mundo, e esse é só em salmoura. Depois, ou o comes assim tal e qual, se gostares, ou o preparas tu com os temperos que quiseres. Este que eu fiz aqui com sardinha, que foi só marinado com pimenta, cebola, vinagre e açúcar, por acaso não ficou nada doce. Eras capaz de gostar.
Um abraço

Anónimo disse...

Eu, brasileira que sou, não desisto nunca e tentarei fazer o arenque na brasa, vez que a verdadeira sardinha portuguesa só chega as vezes e congelada ao interior de São Paulo!
Depois conto a aventura.
Simone

Vítor Lindegaard disse...

Ficamos então à espera do relato da aventura, Simone. Mas encontra-se arenque no Brasil? Não fazia ideia.