03/11/08

Universais de religiosidade – todos os deuses são humanos!

Paralelamente a muitas outras discussões sobre religião, há uma, muito interessante e cada vez mais aguerrida, entre quem acha que a religião é algo natural, inerente à condição humana – ou até que constitui uma construção adaptativa, com vantagens para a espécie –, e quem acha que a religião não é de modo algum um traço essencial da nossa humanidade e que passamos todos bem sem ela. A discussão tem tido muitas vertentes e há algumas sobre as quais não sei pronunciar-me. Por exemplo, na sequência de um interessantíssimo texto de Paul Bloom, houve no Reality Club um debate também muito interessante sobre o papel do nosso dualismo inato na religiosidade. Vários estudiosos concordam que, já de bebés, consideramos que há uma parte essencial de nós – uma alma, digamos assim, para simplificar –, que é distinta da nossa mente; mas nem todos concordam que esse dualismo inato implique que seja inata a religiosidade – ou a predisposição para ela.

Há outros estudos, porém, da predisposição humana para a religiosidade, que são facilmente comentáveis mesmo por quem não seja um especialista do assunto – como eu não sou. Já aqui uma vez comentei o postulado de que a vantagem mnemónica das histórias de seres sobrenaturais é uma explicação eficaz do sucesso das religiões. Agora, tenho de criticar a ideia do senhor Pascal Boyer no seu artigo “Religion: Bound to believe”, publicado na revista Nature (Nº 455, 1038-1039, de 23 October 2008, agora, só a pagar…) de que, no inconsciente dos crentes, todos os deuses de todas as religiões têm determinadas características, uma das quais é… serem humanos (traduzo eu):
O pensamento e o comportamento religiosos podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais, como a música, os sistemas políticos, as relações familiares ou as alianças étnicas. Há descobertas da psicologia cognitiva, das neurociências, da antropologia cultural e da arqueologia que prometem mudar a nossa maneira de ver a religião. […] Uma descoberta importante é que as pessoas só têm consciência de algumas das suas ideias religiosas. […] A psicologia cognitiva mostra que [as suas crenças religiosas conscientes] são sempre acompanhadas por uma série de pressupostos tácitos que, em geral, não estão disponíveis para inspecção consciente. // Por exemplo, há experiências que mostram que a maior parte das pessoas tem expectativas altamente antropomórficas relativamente aos deuses, sejam quais forem as suas crenças explícitas. Quando lhes contam uma história em que um deus resolve vários problemas ao mesmo tempo, acham esse conceito bastante plausível, uma vez que os deuses são, em geral, descritos como tendo poderes cognitivos ilimitados. Recordando a história momentos mais tarde, a maior parte das pessoas diz que o deus resolveu uma situação antes de passar à situação seguinte. As pessoas também esperam implicitamente que as mentes dos seus deuses funcionem como mentes humanas, mostrando os mesmos processos de percepção, memória, raciocínio e motivação. Essas expectativas não são conscientes, e são muitas vezes contraditórias relativamente às suas crenças explícitas.

Ora, mas então, o que isso quer dizer é que as pessoas são naturalmente realistas; o que isso quer dizer é que, como tem sido apontado muitas vezes, e até pelo próprio Pascal Boyer, se não estou em erro, os seres humanos têm, já à nascença, uma ideia bastante clara do que é possível e impossível neste mundo; o que isso quer dizer é que, mesmo que apenas intuitivamente, as pessoas sabem que não existem seres com as propriedades e as capacidades que as religiões atribuem aos seus deuses! É só isso. Por outras palavras, isso não é evidência de que a religião seja natural nos seres humanos, mas, pelo contrário, de que ela é, para os seres humanos, contra natura. Ou seja, essas descobertas que Pascal Boyer chama em defesa do seu postulado de que “o pensamento e o comportamento religiosos podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais” provam, afinal, que o que é natural no pensamento humano é não aceitar no sobrenatural qualidades que não sejam perfeitamente naturais…

1 comentário:

Anónimo disse...

Alguém já disse (não sei se foi Platão) que se cavalos pensassem seus deuses seriam cavalos.

ps. espero ter feito uma observação pertinente ao assunto, apesar de não o ler todo. E a propósito, se quiseres manter contato para troca de informações meu e-mail é: robsomarques@yahoo.com.br, gostei dos assuntos abordados. Até.