21/05/08

Aquele que sabe ler os quipus: comentários bem reais sobre o Peru dos incas

Se há sociedades com tradição de serem idealizadas, o império inca é com certeza uma delas. Desde as Cartas de uma peruana, de Madame de Graffigny, até ao livro que ando agora a ler (um “policial histórico” passado no império inca), tem-se insistido em fazer do império inca um ideal de organização, justiça e desenvolvimento. Um mito que, por um lado, sempre me fascinou; e que, por outro lado, como sou hostil a mitos, sempre me empenhei em combater.

Muito provavelmente, há que procurar no Inca Garcilaso de la Vega, autor de Comentarios reales sobre el Peru de los Incas, a origem da idealização dos incas. Garcilaso de la Vega diz que pretende, ao escrever os Comentários… que se “veja distintamente o que eram antes da chegada dos Espanhóis tanto as cerimónias da vã religião dos seus habitantes como o governo dos seus reis em tempos de paz e de guerra, e tudo o que se possa dizer dos Índios desde os mínimos exercícios dos sujeitos até aos mais altos topos da coroa”, mas uma leitura atenta da obra deixa claro, no entanto, que o projecto de Garcilaso de la Vega é antes o engrandecimento da cultura inca perante os europeus; e este engrandecimento não pode ser feito senão de uma maneira: tornar os incas iguais a eles... É impossível saber o que há de consciente e/ou de inconsciente neste projecto, e pouco importa. É provável que Garcilaso, nascido no Cuzco de uma princesa inca e de um nobre espanhol acredite em muito do que escreve e que deve corresponder, em parte, à própria maneira como os últimos nobres do império concebiam a sua própria história. Mas também é possível que tenha omitido propositadamente o que, como os sacrifícios humanos, encaixasse mal nos valores europeus.

Uma das invenções de Garcilaso que teve uma fortuna especial foi fazer dos quipus, as cordas com “nós falantes” que os incas usavam para a contabilidade do império, um sistema de escrita prático do tipo da nossa. Os quipus eram efectivamente um sistema de registo de tropas, mantimentos, dados de população e inventários de diversos tipos, mas (embora tenha sido já aventada a polémica hipótese de poderem conter de facto informação fonética) nada indica que com eles se pudesse escrever textos, como as cartas literárias da heroína Zilia de Madame de Grafigny ou as mensagens relativamente complexas do romance que agora estou a ler.

Outro mito inca com sucesso é o do socialismo inca, altamente organizado, com sistemas eficazes de segurança e de justiça social. Se bem que seja pouco provável que o imperio quíchua alguma vez tenha tido um nível de organização como aquele que é descrito na novela que estou a ler, não parece haver dúvida de que o “império dos quatro horizontes” tenha tido de facto uma estrutura de tipo estatal e a funcionar com eficiência. Ir além disso e querer fazer dele um modelo de justiça e igualdade é, provavelmente, ir longe demais. As injustiças e os abusos de poder por parte das elites aristocráticas não foram, com certeza, menores no império inca do que qualquer outra sociedade feudal; a expansão colonial não foi mais suave do que outras expansões coloniais; e não nos esqueçamos que uma das cruéis instituições coloniais espanholas que o vice-rei Francisco de Toledo no então Vice‑reinado do Peru e dos Charcas não é senão o restabelecimento da mita inca (isto é os impostos de quatro meses de trabalho anuais)…

Uma outra característica da idealização dos incas é a crença num avanço científico e tecnológico dos incas maior do que o que eles de facto tinham. Sabe-se, por exemplo, que foram esquecidas, com a queda de Tiahuanaco alguns séculos antes da expansão inca, técnicas sofisticadas de irrigação e cultivo, cujos vestígios foram em parte destruídos pelos incas, que obviamente as não compreendiam. Mas já encontrei muito quem atribua aos incas esses conhecimentos que lhes são, de facto, anteriores. Também a arquitectura inca, por exemplo, é frequentemente idealizada. A técnica de construção com grandes blocos de pedras é impressionante, de facto, sobretudo pela dificuldade de carregar, cortar e polir perfeitamente blocos assim, mas o Machu Picchu [de passagem: um sítio que é considerado umas das maiores maravilhas do mundo… porque o é de facto!] não é, do ponto de vista propriamente arquitectónico, nada que se possa comparar com, sei lá…, as catedrais de Amiens, Reims ou Chartres, que são dois séculos mais antigas…

O que a novela que estou a ler e a sua idealização do império inca me vieram recordar, para além do que fui investigando sobre a utopização do império do Cuzco, foi a conversa dos guias turísticos no Peru. São muitos e contam todos as mesmas histórias, e devem estar habituados a lidar com gente fácil de convencer dos mitos incaicos (é o adjectivo espanhol correspondente ao nome inca). É natural que os incas tenham tido, de facto, conhecimentos de astronomia relativamente desenvolvidos, como parece provar a orientação de certos edifícios, mas estes guias exageram um bocado:

“Está a ver aqui esta janela neste muro? Se olhar por aqui, ao pôr-do-sol, verá que o sol se põe exactamente do alinhamento da janela com aquela pedra grande lá ao fundo, está a ver? Que foi lá posta pelos incas!…”

Numa zona de pedras como aquela, entre qualquer janela e qualquer ponto cardeal é impossível que não haja uma pedra qualquer – que deve lá ter sido posta pelos incas… Mas está tudo muito bem, quem sou eu para contrariar agora o senhor guia? A justiça, a superior organização, os conhecimentos arquitectónicos, em tudo o que é idealização do inca, os guias turísticos peruanos batem aos pontos Garcilaso de la Vega, Madame de Graffigny e as modernas novelas de detectives no reinado de Pachacuti

No fundo, nem tenho nada contra isso... Afinal de contas, é o que nós fazemos aos estrangeiros que apanhamos a jeito, com grandes histórias de Viriato e dos lusitanos, da sobre-humana aventura dos descobrimentos, da grandeza dos nossos poetas, das nossas palavras só-nossas e da nossa singular nostalgia musical… E isto sem sermos guias e sem ganharmos, portanto, nada com isso. Sim, que a idealização dos incas, pelo menos, sempre vai dando alguma coisa…

07/05/08

O vibrante lusitanismo apical: E se nos deixássemos de histórias?

A 7 de Janeiro de 2006, Frederico Lourenço publicou na página 14 do jornal Público um artigo chamado “O som de Portugal”, em que defende que a minha pronúncia do r “longo” da nossa língua não é “verdadeiramente” portuguesa – e que, para ele, o «autêntico “r” português» é o r apical «de Gil Vicente, Camões e Camilo».

Não pensem que me ofendi. Que falo mal, já eu sei há muito tempo. Até me chamavam serbo-croata, por não se perceber nunca nada do que eu dizia. É claro, não sabia que o meu r gutural fazia parte dos meus defeitos, mas aceito-o sem barafustar muito – mais r menos r… Além disso, a mim nunca me ofende que me acusem de não ser “autenticamente” português. Pode até acontecer, conforme o contexto em que a acusação é feita e o meu estado de espírito do momento, que considere essa acusação um elogio. Mas deixo para outra ocasião a discussão da minha relação com este acidente que é a minha nacionalidade. Agora, é de língua que se trata e é o “r gutural” do português europeu que passo a discutir.

No referido texto, Frederico Lourenço afirma que «o “r” […] articulado na garganta […] é o som gutural de quem anuncia a intenção de escarrar». E logo depois de deixar claro, com esta descrição, o rigor que o resto da dissertação há-de ter, Frederico Lourenço explica que esse hediondo r gutural «[e]ntrou na nossa fonética por via do estrangeirismo: primeiro conquistou a classe alta por ser o “r” francês; a pouco e pouco, a classe média foi imitando; por fim, contaminou a classe proletária por ser o “r” das telenovelas brasileiras».

É sobretudo para explicar que esta afirmação não faz sentido que este texto foi escrito. É claro, a reboque desta pequena desmitificação hão-de vir mais umas duas ou três pequenas desmitificações… Mas já lá vamos. Antes de vos apresentar as muitas e boas razões que há para pensar que esta ideia, apesar da sua fortuna, é perfeitamente infundada, quero apresentar-vos mais dois textos em que se defende a mesma ideia.

Um é uma versão anterior da entrada “Vibrante múltipla alveolar” da Wikipedia. Infelizmente, não podemos saber a identidade do autor do pequeno texto, mas podemos saber que, às 23:07 de 27 de Agosto de 2006, o usuário com a identificação IP 217.129.77.171 (que, pela lista de contribuições, é sobretudo especialista em futebol, mas também um bocadinho em língua portuguesa…) escreveu da tal vibrante múltipla alveolar:
«Este som é típico no Português europeu tradicional e por isso ainda ouvido nas regiões não metropolitanas, mas em franca substituição pelo R gutural no Português europeu coloquial urbano, influenciado no século XIX pela pronúncia da classe alta francesa, que em Portugal estabeleceu nesse século muitas empresas e indústrias, e mais massiva e recentemente pelo Português brasileiro Carioca através do fenómeno das telenovelas brasileiras, muito populares em Portugal.»
Exactamente como no texto de Frederico Lourenço, não se dão referências nenhumas. A afirmação simples de Frederico Lourenço merecia, no mínimo, uma indicação do estudo ou dos estudos aonde ele teria ido buscar uma tão interessante informação; e o mesmo a afirmação da Wikipedia, porque há com certeza muita gente que, como eu, não faz ideia de que investimento industrial francês tão grande foi esse que, caso único na história dos investimentos industriais num país estrangeiro, interferiu com o sistema fonético do país onde foi feito… 

Já o terceiro texto que vos quero aqui apresentar é mais bem fundado. Ou, pelo menos, parece... Álvaro Iriarte Sanromán publicou no site da Associaçom Galega da Língua, a 16 de Maio de 2007, um artigo, “«Erres» e Política da Língua”, em que afirma:
«Concordo com o Frederico Lourenço na primeira parte da sua afirmação sobre a origem francesa da articulação do “r” velar ou uvular. Tenho algumas dúvidas quanto à segunda (o “r” brasileiro das telenovelas a conquistar a classe proletária).

Com efeito, o “r” francês vem dos tempos da Restauração. Há, após a dominação filipina, um investimento claro (uma autêntica política linguística, que hoje temos muito que invejar) por parte das novas autoridades na substituição do castelhano pelo francês como língua de cultura. Um combate contra o gosto literário castelhano ainda vigente ou, mais ainda, contra a situação de bilinguismo que existia a nível das elites culturais e literárias: “…logo após a Restauração de 1640, em 1641, D. João IV enviou uma missão diplomática à França com fins não só políticos e económicos, mas também culturais, embora nenhum dos membros dessa comissão conhecesse a língua francesa. Por outro lado, nos últimos anos do século XVII já começa a formar-se uma elite europeizante que se volta sobretudo para a França graças às “Conferências discretas e eruditas” (1696) realizadas em casa do 4º Conde de Ericeira, com a participação de um padre teatino francês, D. Rafael Bluteau…” (Machado, 1984: 25). Este é, talvez, um dos principais motivos do apoio de D. João V ao Vocabulário Portuguez, e Latino de Rafael Bluteau, que “representa um marco essencial no processo de aproximação da língua portuguesa ao francês, que conquistou o espaço privilegiado outrora ocupado pelo castelhano” (Silvestre, 2004: 451).

A opção ortográfica etimologizante feita para o português nessa altura não é apenas mais uma influência francesa, mas também produto do afastamento consciente das opções feitas pelo castelhano (vd. Vazquez Corredoira, 1998).»
O que tenho eu a dizer sobre isto tudo? Bom, a tese de que o r gutural tenha entrado por influência do francês nos falares da classe alta é muito estranha (para não usar palavras como abstrusa ou estapafúrdia…), e nunca vi nenhum texto de nenhum teórico consagrado da história da língua em que isso seja defendido. O contrário, sim. Por exemplo, num artigo de Timo Riiho, “Portugiesisch: Interne Sprachgeschichte und Entwicklungstendenzen, Evolução linguística interna”, publicado em Lexikon der Romanistischen Linguistik, Band VI, 2. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1994, pode ler-se (sublinho eu):
«Uma das últimas transformações que está a produzir-se no sistema consonântico português consiste na uvularização, a partir da região de Lisboa, da pronúncia do r geminado (p. ex. rato, razão, carro, terra; às vezes, a dorso uvular R chega a uma dorso velar surda x); esta evolução portuguesa autóctone, já observada no século passado (Gonçalves Viana 1883; 1941) provavelmente terá uma extensão maior por causa da norma lisboeta.»
Notem, aliás, que se contam muitas vezes histórias deste tipo sobre a “origem” de certos fenómenos linguísticos, e muitas delas têm uma fortuna enorme. O mito da origem francesa do r gutural é muito parecido com aquele de que eu já aqui falei uma vez, que diz que a pronúncia da fricativa dental espanhola “sopinha de massa” que se grafa com z (ou c antes de e e i) tem origem num defeito da fala de um rei… São histórias. Pura e simplesmente, não é assim que os sistemas de sons das línguas evoluem. Não se importam, de repente, sons de outra língua. Os sistemas fonéticos das línguas evoluem a partir de mutações que ocorrem no interior do sistema. O que não significa de modo nenhum que a fonética de uma língua não possa ser influenciada por sons de uma língua estrangeira: são bem conhecidos os conceitos de influência de substrato e influência de superstrato. Mas isso não tem nada a ver com a estranha ideia defendida por Frederico Lourenço...

Aliás, admitirmos que se importou a pronúncia de um r do francês, levanta algumas questões de muito difícil resposta:

Por que é que foi o r que os francófilos portugueses quiseram importar e não outros sons “franceses”? Ou seja, por que é que acharam que pronunciar guturalmente os rr era suficiente para falarem português à la française?

Se o r foi importado do francês, por que é que não é igual ao r francês? E por que é que o r gutural mais comum do português do Brasil é tão diferente do r gutural do português de Portugal? Seja como for, sendo ambos guturais, vieram ambos do francês ou não?

Se foram as classes altas que impuseram o r gutural, por que é que ele foi durante tanto tempo considerado “ordinário” e, por exemplo, banido da rádio e da televisão? [Tenho só quarenta e nove anos e lembro-me perfeitamente de quando os locutores da rádio usavam sistematicamente a vibrante alveolar múltipla: era a “received pronunciation” portuguesa. Mas a malta de Alfama não. Quando as primeiríssimas telenovelas apareceram, já o r gutural fazia, há bastante tempo, parte da pronúncia padrão de certas regiões de Portugal, nomeadamente Lisboa e subúrbios incluindo Almada, Porto e subúrbios, Madeira e Açores.]

A propósito desta minha última pergunta, permitam-me uma excursão, sim? Escreve Frederico Lourenço no seu texto sobre o «[“autêntico”] som de Portugal»:
«No filme de João César Monteiro sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, dá-se um fenómeno curioso. A voz de Sophia tinha compreensivelmente todos os tiques de prosódia e articulação fonética da classe social a que pertencia. No filme, quando ela fala em registo informal, articula o “r” francês, próprio de uma senhora bem que não quer empregar o mesmo “r” das criadas. No entanto, quando Sophia declama os seus poemas, o “r” gutural de Cavaco Silva é cuidadosamente substituído pelo “r” apical de Manuel Alegre. O que terá levado Sophia a mudar de “r” conforme assumia uma das suas duas personagens, a senhora fina e a poetisa? Só pode ter sido a consciência de que, apesar de menos chique, o “r” apical é intrinsecamente mais eufónico e mais português do que o “r” gutural. Realidade que todos os cantores de fado sabem. E muitos actores.»
Isto não faz sentido. Que Sophia de Mello Breyner Andresen não tenha o r das suas criadas pode dever-se mais ao facto de as suas criadas não serem de Lisboa nem do Porto nem dos Açores ou da Madeira do que a serem criadas. As classes baixas de Lisboa e do Porto e das ilhas usavam já o r gutural nessa altura e disso eu não tenho dúvida nenhuma, porque a minha família é toda de Sapadores, Escolas Gerais, Jardim do Tabaco, e a minha avó, de condição mesmo muito humilde e nascida no mesmo ano que Sophia de Mello Breyner Andresen, tinha o mesmo r que eu. Sophia de Mello Breyner Andresen era da classe alta portuense, mas eu conheci gente das classes baixas do Porto também nascida no primeiro quartel do século XX que fala com rr guturais.
Na realidade, as coisas passaram-se precisamente ao contrário do que Frederico Lourenço afirma: o r gutural era criticado, quando surgiu, por baixo e ordinário. Que Sophia de Mello Breyner Andresen use o r alveolar quando declama deve-se apenas ao facto de o r alveolar ter sido o r standard até há relativamente pouco tempo. Devem lembrar-se as pessoas da minha idade que era frequente ouvir-se afirmar (se calhar, ainda há quem o afirme…) que o português “correcto” era o da zona de Coimbra. A pronúncia alveolar do r longo era um dos traços desse português “correcto”… Por isso os cantores ou os actores de teatro, mesmo que falassem com rr guturais, aprendiam a cantar com rr alveolares – o r gutural era “feio”.

Aliás, ainda a propósito dos 2 rr de Sophia de Mello Breyner Andresen, há pessoas, embora poucas, em cujo estranho idiolecto as duas pronúncias do rr coexistem – o meu irmão, por exemplo. Curiosamente, como no caso da poetisa, é quando ele quer “falar bem”, ou seja, em situações mais formais, que usa sistematicamente o r alveolar. O prestígio da antiga “received pronunciation” não morreu: ao contrário do que diz Frederico Lourenço é o r alveolar, para quem está a vontade com ambas as pronúncias, o mais chique. Mas prestígio não é sinónimo de eufonia intrínseca, nem nada desse estilo. Frederico Lourenço acha que declamadores de poesia e actores escolhem a vibrante múltipla alveolar porque “o “r” apical é intrinsecamente mais eufónico”. Mas, Sr. Lourenço, “eufónico” é alguma característica que se observe num espectrograma? Eufónico é só um termo de aprovação – e não soa bem a mesma coisa a toda gente… Uma flauta é intrinsecamente mais ou menos eufónica do que um violoncelo? Que o r apical é “intrinsecamente mais eufónico”, como é que isso se demonstra?

E, chegado ao fim de tão extensa digressão (mas necessária, necessária…), a última pergunta da minha lista de questões a que eu gostava que respondessem os defensores da tese da origem francesa do r gutural:

Em francês não há dois rr, isto é, não há distinção entre um r momentâneo e um r contínuo. Então, por que é que não reduziram todos os r a um r único, como no sotaque típico dos pescadores sadinos ou no pseudosociolecto que a lenda atribui aos frequentadores do Clube da Parada (ler Clube da Parrada) em Cascais, que se diz que tentaram espalhar a moda de falar português à francesa *? Dito de outra maneira, por que é que só se “guturalizaram” as alveolares múltiplas (carro) e não as simples (caro)?

Pode argumentar-se que foi, precisamente, porque em português existiam os dois fonemas e era preciso manter a distinção, para não tornar o sistema instável. Mas é um argumento fraco: a ser essa a razão, por que é que o r gutural não veio ocupar todas as posições em que não tem uma função distintiva? Ou seja: Por que é que o r alveolar simples não se manteve só em posição intervocálica, como acontece, por exemplo, no actual português padrão do Brasil?

Deixemos em suspenso a resposta a estas incomodativas perguntas, que eu sei qual é e que vos dou mais adiante, e passemos agora ao texto de Álvaro Iriarte Sanromán, que, ao contrário dos outros, inclui citações e tudo. A tese da origem francesa do r gutural parece agora mais sólida, documentada que está a influência francesa no Portugal do séc. XVII…

Parece? Bom, não sei nada sobre a política cultural francófila do séc. XVII, mas quando leio que “[h]á, após a dominação filipina, um investimento claro (…) por parte das novas autoridades na substituição do castelhano pelo francês como língua de cultura” e “[u]m combate contra o gosto literário castelhano ainda vigente ou, mais ainda, contra a situação de bilinguismo que existia a nível das elites culturais e literárias”, tenho de perguntar imediatamente: O que é que isto tem a ver com evolução fonética? É que não se percebe como é que Álvaro Iriarte Sanromán chega de uma coisa à outra. Admitamos que sim, que houve um forte investimento das novas autoridades portuguesas num “afrancesamento” cultural de Portugal no séc. XVII. As políticas culturais – ou mesmo linguísticas –, por muitos eficazes que sejam, nunca afectam a pronúncia de uma língua importando de fora um som que lhe é estranho. Isto deveria ser óbvio para toda a gente, mas, como pelos vistos não é, desenvolvo um bocadinho a questão com um exemplo concreto, só para tornar claro que a tese é indefensável:

Um exemplo de uma política linguística altamente eficaz é o da tentativa de instituição de bilinguismo funcional dinamarquês-inglês na Dinamarca. Já li afirmações de linguistas que davam como atingida essa meta e consideravam que a Dinamarca é hoje um país funcionalmente bilingue. Não há praticamente ninguém na Dinamarca que não fale inglês o suficiente para assegurar uma comunicação básica, e a esmagadora maioria da população dinamarquesa com, digamos, menos de 50 anos fala inglês muito bem. Não há qualquer dúvida de que na Dinamarca se fala muito mais inglês do que em muitos países de língua oficial inglesa. Provavelmente, mais do que em todos os países de língua oficial inglesa em que o inglês não é a língua materna da maioria da população. Agora, em que é que a instituição do inglês como segunda língua na Dinamarca e o bilinguismo funcional que dela resulta (política de alcance incomparavelmente mais vasto do que o da pretensa política cultural (linguística?) francófila do séc. XVII em Portugal, que, a ter existido, não pode ter afectado senão uma percentagem ínfima da população) vieram afectar a pronúncia do dinamarquês? Em absolutamente nada, como qualquer pessoa de bom senso poderia calcular – mas ao contrário do que prevê o postulado implícito nas afirmações de Álvaro Iriarte Sanromán. Pronto.

Mas há outro problema maior (um paradoxo!) nas afirmações de Álvaro Iriarte Sanromán: Ao fazer recuar tanto no tempo a pretensa importação do r gutural, Álvaro Iriarte Sanromán fá-lo ser importado para Portugal… antes de ele existir em França! Está bem, está bem, estou a ser bombástico de propósito. Com rigor, as coisas não podem ser ditas assim, porque ninguém tem uma ideia clara de quando apareceu o r gutural em França. Mas é certo que é no século XVII que ele começa a ser notado e, devagarinho, a difundir-se. Não é de modo algum, nesta altura, o r dominante… O r de Molière e Pascal era muito provavelmente tão roulé – como o de Camões ou de Cervantes!

A resposta a todas estas perguntas e a solução de todos estes paradoxos é, de facto, bastante simples: é que a aparição do r gutural é (naturalmente, em qualquer sentido que se dê à palavra) uma mudança ocorrida no interior do sistema – uma evolução do r alveolar múltiplo, em que a zona de articulação se altera, mas se mantêm os traços fundamentais: vibrante e contínuo. Pronto.

É tudo? Não, ainda não. Há mais duas ou três passagens dos textos referidos que não queria deixar de comentar:

Álvaro Iriarte Sanromán escreveu:
«Estou convencido de que esta livre variação na articulação do “r” é responsável pelos muitos casos de dificuldades articulatórias com o “r” no português europeu.»
E eu pergunto: Desculpe, de que é que se está a falar aqui? O que é isso de «muitos casos de dificuldades articulatórias com o “r” no português europeu»?

Frederico Lourenço escreveu:
«Pois não há a menor dúvida de que o “r” [alveolar] é o verdadeiro “r” de Portugal. É o mesmo “r” do castelhano (e do italiano, já agora). Em Espanha, as pessoas que emitem o “r” gutural (por defeito de fala ou afectação) tornam-se ridículas. No som da letra “r”, que os nossos vizinhos hispânicos rolam extravagantemente, ouvimos todo o seu orgulho em serem espanhóis.»
E eu respondo:

Um: Que o r do castelhano é alveolar, é certo; o do italiano, também o é – na maior parte dos casos... E o do galego e o do asturiano e o do catalão e do aragonês e, em suma, o da maior parte das línguas românicas. E então, é por ser igual ao das outras línguas todas que o r alveolar é mais português? Estranho argumento… Se é de orgulho nacionalista que se trata, não é antes de louvar a originalidade do nosso r gutural?
Dois: Qualquer pessoa se pode tornar ridícula por qualquer defeito de fala aos olhos (talvez antes aos ouvidos, neste caso) de certas pessoas. Para mim, um defeito de fala não torna ninguém ridículo, mas cada qual tem a sua moral… O que não há em Espanha é quem pronuncie rr guturais «por afectação». Porque as línguas não funcionam assim e mesmo a “afectação” (uma variação sociolectal) obedece a regras da língua. No caso do castelhano, por exemplo, a pronúncia gutural do r provavelmente perturbaria o sistema, porque criaria uma grande proximidade entre o fonema /R/ e o fonema /X/, que, nalgumas variantes dialetais, é mais próximo do nosso r gutural (mas, claro, não impossível, se pensramos, por exemplos na distinção entre os dois sons de rauchen em alemão standard...). Há portugueses que falam assim castelhano, mas pura e simplesmente não há falantes nativos que o façam!
Mais adiante, diz Frederico Lourenço que «[o] efeito normalizador da televisão vai levar, mais cedo ou mais tarde, a que o autêntico “r” português (o “r” de Gil Vicente, Camões e Camilo) desapareça para sempre». Por isso, ele agradece àqueles que «[mantêm] ainda viva a pronúncia castiça do “r”, que é, juntamente com o marulhar das ondas e o dedilhar da guitarra portuguesa, aquele som que dá verdade a Portugal».

E eu respondo, para terminar: O som de Portugal, então? Conheço textos em que se lamentavam os puristas da época de haver muita gente que já não distinguia na pronúncia, o ç de paço dos ss de passo; e que pronunciava um x como ch, que calamidade! É difícil saber ao certo como falavam Gil Vicente ou Camões, porque não se pode datar com exactidão as transformações fonéticas que assinalam o fim do chamado português medieval, mas, pelo menos para falar como Gil Vicente, é muito provavelmente isso que Frederico Lourenço tem de fazer: distinguir um [s] ápico-alveolar de um [s] predorsodental, isto é, pronunciar passo com s “beirão” e paço com o s “normal” em português actual. E tem de distinguir a africada [tš] da fricativas palato-alveolar [š], isto é, dizer [tchuva], [tchegar], [tchão]… Ah, e pronunciar abertas pelo menos (pelo menos!) as vogais pré-tónicas, como no português do Brasil... Se Frederico Lourenço ouvisse falar Gil Vicente (ou mesmo Camões), ia achar muito esquisita a língua que ele falava… Se calhar, a única semelhança entre o português de Frederico Lourenço e o de Gil Vicente (e de Camões...) é… o r múltiplo alveolar!

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* Eu também não acredito nesta história do “Clube da Parrada”, embora a tenha ouvido nas aulas de História da Língua na Faculdade, precisamente… Mas reconheço que ganha, em plausibilidade, ao mito que quero aqui combater: por um lado, porque se queria pronunciar à francesa todos os rr; e, sobretudo, porque foi, obviamente, uma tentativa fracassada, já que ninguém consegue mudar deliberadamente a pronúncia de uma língua…

[Texto atualizado a 18 de maio de 2023, sem atualização da pronúncia. Foram, infelizmente, retiradas as hiperligações para os textos referidos, por já não se encontrarem em linha – ou por eu não os ter conseguido encontrar.]