22/07/08

O único texto legível desta Travessa

Há muita gente preocupada com o que a Internet está a fazer à nossa maneira de pensar. Nicholas Carr diz, num artigo em The Atlantic, que um dos possíveis efeitos da Internet é desabituar-nos de ler textos longos. Com tanta informação disponível, já não estamos para leituras que ultrapassam a meia dúzia de linhas. Se isso for verdade, não há muitos textos legíveis neste blogue. Desculpem lá, sim?

06/07/08

Esquerda e direita: o que é que as distingue?

Não é nada novo, mas é cada vez mais frequente, tenho reparado, pôr-se em causa a pertinência da divisão habitual do espectro político em esquerda e direita. Às vezes, questiona-se a pertinência da oposição no mundo actual e, sobretudo, no mundo do futuro, considerando que a clivagem entre esquerda e direita é um fóssil do passado; outras vezes, é a sua pertinência em absoluto que é questionada.

Também há muita gente, no entanto, que advoga que a pertinência da oposição se mantém. Um exemplo interessante da discussão: Na sua edição de Março de 2007, a revista britânica Prospect “[pediu] a 100 escritores a pensadores para responder à seguinte pergunta: Esquerda e direita definiram o século XX. O que vem a seguir?” A maioria dos convidados afirma o carácter obsoleto da oposição, mas há um grande grupo de intelectuais que se recusa a admitir o fim do conflito de ideologias de esquerda e de direita. Por exemplo: O sociólogo Anthony Giddens afirma que “esquerda e direita não vão desaparecer – a metáfora está demasiado enraizada para que isso aconteça”. Anthony Dworkin escritor político e director do projecto Crimes of War, por exemplo, afirma que “é uma ilusão da moda supor que a distinção esquerda/direita é obsoleta. Ela continua a ser a linha divisória ideológica fundamental, porque não depende de nenhum conjunto específico de circunstâncias políticas ou sociais, mas radica antes na questão central da finalidade da regulação da ordem pública colectiva”. Também o jornalista Jonathan Power pensa que “enquanto o mundo estiver dividido por desigualdades, a divisão histórica entre esquerda e direita continuará a existir”. O jornalista David Walker diz que “não [vê] o século XXI a apagar a velha linha entre os que têm fé na acção colectiva através do estado e individualistas defensores de um estado pequeno. Chame-se-lhe o que se quiser, a divisão entre o Estado e o anti-Estado atravessa o público versus privado, o super-ego versus o id, a responsabilidade versus o direito, nós versus eu, altruismo versus egoísmo, o futuro versus o presente: é fundamental.” O mesmo acha o historiador Donald Sassoon: “Esquerda e direita são marcadores diferentes que designam coisas diferentes em épocas diferentes. O seu carácter vago permite-lhes sobreviver e adaptar-se a um meio em mudança. As fronteiras entre esquerda e direita podem parecer hoje cinzentas e pouco claras, mas sempre foram assim.” Há até quem ache, como o historiador David Edgerton, que, por muito que a divisão esquerda-direita possa não ser a fundamental, é esta a forma preferível do debate de ideias políticas: “No mundo das ideias, a divisão entre esquerda e direita ajudou a gerar um debate estruturado e a colocar questões sobre muitas coisas nas sociedades. As pessoas continuarão a não estar de acordo relativamente a muitas questões importantes, mas esperemos que, no futuro, não sejam a raça ou a nação ou a religião o eixo da discussão. Seria preferível discutir raposas contra ouriços, carnívoros contra herbívoros, até mods contra rockers”.

Eu também acho que a pertinência da oposição se mantém e poderia até afirmar, meio a brincar, meio a sério, que uma das provas disso é haver, dum lado, quem ponha em causa a oposição entre esquerda e direita e, do outro, quem a aceite. E não estaria a inventar nada de novo. O político trabalhista inglês Denis MacShane defende, no referido inquérito do Prospect (como uma boa parte da esquerda, aliás) que a própria ideia de que a divisão esquerda-direita não tem razão de ser é um indicador ideológico, que mostra que quem a perfilha é de direita: “Charles Péguy observou há 80 anos que, quando lhe diziam que a questão da esquerda versus direita estava desactualizada, ele sabia logo qual a posição política da pessoa que defendia essa ideia. Eu também. Cada decisão que o cidadão toma, já para não falar do político ou do ministro, assenta em valores, crenças, experiências, esperança e fatalismo. Chamem-lhe progressiva ou reaccionária, liberal ou conservadora, de esquerda ou de direita, democrata ou republicana, radical ou religiosa, social-democrata ou democrata-cristã, realista ou republicana – a posição política de cada um é inevitavelmente modelada por dois amplos sistemas de crenças”.


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É bastante provável que sim e que se trate de um conflito entre valores suficientemente estáveis para serem aplicáveis a toda a história humana. O que se segue é o resumo de um exercício tão simples como esclarecedor a que eu me dediquei: comparar pares de traços usados para definir os dois conceitos, opondo-os um ao outro (alguns deles aparecem já referidos nos parágrafos anteriores) e avaliar a sua pertinência. Não é fácil organizar uma lista de traços assim, até porque muitos deles estão intimamente ligados entre si e só são artificialmente separáveis. Por outras palavras, a problemática não é redutível a um rol de dicotomias sem escamotear uma boa parte da sua real complexidade – que é o que faz uma proposta de esquematização do espectro das ideias políticas como a tabela de David Nolan, o célebre ideólogo do “libertarianismo”, que reduz as oposições políticas a dois gradientes apenas, o da liberdade económica e o da liberdade individual.

Agora, que eu veja, podem levantar-se imediatamente duas questões à minha proposta metodológica:

Comparação de traços usados para definir cada um dos conceitos ou a sua oposição, e avaliação da sua pertinência. Muito bem. Mas usados por quem? Usados pelas pessoas que se dizem de esquerda ou de direita para autodefinir as suas ideologias? Ou usados por pessoas de esquerda para definir a direita e vice-versa? Para mim, só faz sentido incluir todos os traços propostos por seja lá quem for, até mesmo por pessoas que não se incluam em nenhum dos campos ideológicos definidos pelos dois conceitos em análise, se é que tal há.

Outra questão que há que ter em conta numa análise deste tipo é a distinção entre teoria e prática. O discurso dos teóricos políticos é, por vezes, radicalmente diferente das práticas efectivamente exercidas em nome das suas teorias. Tomemos, por exemplo, duas teorias fundamentais para a discussão desta questão: o marxismo e o liberalismo económico. A prática da maior parte dos governos autodefinidos como marxistas afasta-se por vezes radicalmente da teoria marxista, da mesma forma que a prática dos governos que dizem agir na defesa do liberalismo económico se afasta quase sempre desse liberalismo económico para abraçar diversos tipos de regulamentação da vida económica. Quando me proponho comparar os traços usados para definir cada um dos conceitos ou a sua oposição, e avaliar a sua pertinência, o que escolher: os traços que definem esquerda e direita na teoria ou na prática? Bom, parto do princípio de que a uma prática subjaz sempre uma ideologia (por muito que não seja aquela que os seus executores dizem ter) e pretendo avaliar a pertinência de todos os traços usados para definir cada um dos conceitos ou a sua oposição, independentemente de eles se referirem a práticas ou a princípios teóricos (de ordem moral, histórica, estratégica, etc.). Não vejo como posso proceder de outra maneira…

É natural que alguns não achem, por um lado, necessário e, por outro, pertinente, a procura de uma base estável para a oposição. Para mim, é fundamental a delimitação da distinção entre dois conceitos que têm servido de eixo de organização ideológica de tantos milhões de pessoas nos últimos séculos e que, provavelmente, é apenas a actualização de uma oposição muitíssimo mais antiga; mas compreendo as objecções à necessidade dessa demarcação e também à possibilidade de uma definição absoluta dos dois conceitos:

Qualquer pessoa pode definir-se como sendo de esquerda ou de direita, ou inclusivamente pôr em causa a validade dessa distinção, sem ter uma ideia perfeitamente clara do que separa os dois conceitos. Pode basear-se apenas, por exemplo, na distinção habitualmente feita entre esquerda e direita ao nível do espectro partidário do seu país para se situar relativamente a essa divisão.

Muitos argumentarão também que esquerda e direita são conceitos relativos – que um democrata é de esquerda nos Estado Unidos, embora o Partido Democrata estadunidense não se possa considerar um partido de esquerda no contexto europeu, por exemplo. O argumento não é desprovido de relevância, mas não se pode esquecer que um conceito que se defina relativamente a outro tem, ainda assim, de ter uma definição não relativa suficientemente estável para poder ser usado relativamente. Dizer que alguém é de esquerda relativamente ao que se considera de direita num determinado país, embora não seja de esquerda relativamente ao que se considera de esquerda noutro país, implica que essa predicação [ser de esquerda] inclua uma determinada propriedade abstracta ou um determinado conjunto de propriedades abstractas que permita essa relativização. Suponhamos, por exemplo (só por exemplo), que é a propriedade “defensor da intervenção do estado na saúde e na educação”. Quando dizemos que um democrata americano é de esquerda no contexto estadunidense, queremos dizer que, relativamente aos apoiantes dos outros partidos, ele defende mais intervenção do estado na saúde e na educação; quando dizemos que ele é de direita no contexto europeu, queremos dizer que a quantidade de intervenção do estado na saúde e na educação que ele defende é pouca, ao mesmo nível da que defendem os partidos conservadores e liberais na Europa e não ao nível da que defendem sociais-democratas e socialistas vários.

Outros argumentarão ainda que os conceitos de esquerda e direita são historicamente determinados e que o que se considera ser de esquerda hoje não é o que se considerava ser de esquerda há cem anos. É certo. Mas este argumento é apenas uma variação do argumento da relatividade do conceito discutido no parágrafo anterior e aplicam-se-lhe as mesmas objecções. Muitos conceitos, se não todos, evoluem no tempo. Nalguns casos, há uma evolução semântica da própria palavra que define o conceito, noutros casos é a realidade a que ele se refere que se altera, o que não pode deixar de ter implicações no próprio conceito. Por muito que a história de um determinado conceito não seja nunca de desprezar na análise desse conceito, a questão de fundo continua a ser que é necessário que haja um número mínimo de propriedades básicas que se mantenha (pelo menos em parte) inalterado para que o conceito evolua.

Outra questão que se pode ainda levantar é a da possível circularidade do conjunto dos dois conceitos. Há quem afirme que, quando se fala de esquerda e de direita, os “extremos tocam-se”, isto é, que as posições extremas de esquerda e de direita estão mais próximas umas das outras que do intervalo entre os dois conceitos. A acontecer isso, as noções de esquerda e de direita não seriam efectivamente opostas no sentido tradicional, mas antes segmentos de um gradiente circular com duas fronteiras. Ou então, com uma fronteira apenas, o centro político, e um continuum entre esquerda e direita no espaço semântico nos antípodas do centro, o que significaria que a esquerda e direita “por excelência” não se situariam nos extremos de cada conceito, mas antes num espaço situado algures a meio da gradação dessas noções. Não consigo pensar noutras noções complementares a que se possa aplicar esse tipo de análise (alguém que é tão bom que chega a ser mau?, uma mesa tão comprida que se torna curta?), embora tenha consciência que, ao nível da percepção, haja ilusões desse tipo, por exemplo, sentirmos que nos “queima” uma coisa muito fria. Provavelmente, a assumirmos esse tipo de análise, teríamos de assumir, em consequência, que esquerda e direita não são conceitos opostos de facto e, muito menos, complementares…

Mas não creio que seja essa a maneira correcta de atacar a questão. Parece-me antes que há aspectos propostos como constituintes das noções de esquerda e de direita que podem ser comuns a ambas (entenda-se: propostos por diferentes pessoas para definir, nuns casos, a esquerda e, noutros, a direita) como “o controlo absoluto da vida privada pelo aparelho de estado” ou “o nacionalismo exacerbado”, mas uma análise como a que me proponho fazer visa precisamente descartar o que pode ser comum, de maneira a definir o que é essencialmente diferente. A partir dessa definição, pode repensar-se a aplicação dos conceitos de direita e de esquerda a projectos políticos concretos e concluir, por exemplo, que a pretensa “fusão dos extremos” é feita com base em propriedades não definidoras de nenhum dos conceitos ou, pelo menos, não aplicáveis à definição de um deles. Para voltar ao exemplo dado atrás, o mais natural é que “o controlo absoluto da vida privada pelo aparelho de estado” ou “o nacionalismo exacerbado” sejam de desprezar enquanto traços definidores de esquerda e direita…


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Mas vamos então às oposições e podemos começar pela oposição entre liberdade e autoridade. Se há conceito de que a esquerda sempre se valeu para se autodefinir é, sem dúvida, o de liberdade. Mas o problema é que a direita, se em certos momentos criticou abertamente os excessos da liberdade proposta ou realizada pela esquerda, também muitas vezes atacou a esquerda por opressora, arvorando-se ela a verdadeira defensora da liberdade. À primeira vista pode pensar-se que, sendo liberdade um conceito tão plástico – ou mesmo polissémico –, a palavra tivesse/tenha, quando usada por um dos lados do espectro político, um sentido diferente de quando era/é usada pelo outro. Em certa medida, isso é verdade, mas houve/há casos em que o mesmo sentido de liberdade foi/é utilizado por ambos os lados, para definir o objectivo da sua acção e acusar de defensor da opressão o outro lado. É este o caso, por exemplo, das liberdades “primitivas” (desculpem a simplificação), como sejam a liberdade de expressão e a liberdade de associação, que foram limitadas ou pura e simplesmente abolidas tanto por regimes considerados de esquerda e autodefinidos como tal, como por regimes considerados e autodefinidos como sendo de direita. A questão de base é complexa, sobretudo se tivermos em conta a diferença proposta por alguns teóricos entre liberdades positivas e liberdade negativas (expressões que, aliás, não significam a mesma coisa para todos eles), mas parece-me razoável aceitar, depois de dar uma volta mental ao assunto, que não pode ser na presença ou ausência da liberdade que se baseia a oposição entre esquerda e direita.

Tentemos agora a oposição entre colectivismo à esquerda e individualismo à direita. Parece-me também óbvio que não é nesta antítese que se baseia a oposição entre esquerda e direita. Ambas as ideologias, sobretudo nos seus matizes mais radicais, foram e continuam a ser reivindicadas por determinados sectores tanto da esquerda como da direita, que defendem, nomeadamente, a ideia de que se pode e deve sacrificar os direitos individuais aos do colectivo e, no extremo oposto, o ideal da plena liberdade individual, em certos tipos de anarquismo e em certos tipos de liberalismo.

Vejamos se funciona melhor a oposição entre mudança/inovação e conservadorismo. À primeira vista, esta oposição parece, talvez, mais capaz de definir bastante, só por si, a oposição esquerda-direita. Mas não é sempre verdade. Houve casos em que foi a direita a defender (fascismo italiano e nazismo, por exemplo) mudanças verdadeiramente revolucionárias da ordem estabelecida, e muitas das posições de uma grande parte da esquerda foram criticadas, por outros sectores da esquerda e por certos sectores da direita, por serem altamente conservadoras. A chamada “moral proletária” da esquerda portuguesa, que recusava a “decadência burguesa” dos movimentos de juventude é um exemplo claro da minha juventude de uma atitude radicalmente conservadora da esquerda. Mas muitos outros argumentos se poderiam invocar contra a identificação da esquerda com a mudança e da direita com a conservação, sobretudo numa época em que a própria esquerda ecologista começa a reivindicar para si o epíteto de conservadora e se opõe, de facto, a várias mudanças e inovações. De facto, mesmo uma oposição como a que existe entre ecologismo e uso incontrolado dos recursos (que não diz respeito à totalidade de um projecto político, mas a um dos seus aspectos) não corresponde à oposição entre direita e esquerda – muito menos, se tivermos em conta as aspectos históricos dessa oposição.

Uma oposição interessante de analisar e com grandes implicações na história do debate político é a de um ideal de natureza a um ideal de cultura, nas dezenas de variantes que tem tido, mas torna-se claro que não se pode associar claramente à esquerda ou à direita nenhum dos ideais. Tem havido hobbesianos e rousseauistas (digo assim para simplificar, mais uma vez) à esquerda e à direita, tem havido de um e do outro lado do espectro político pessoas a justificar as suas propostas de organização social com a adequação à “natureza humana”, ora demonizada ora angelizada, às vezes defendendo a necessidade de imposição de leis e condicionamento, outras vendo nas regras sociais a causa de todos os males.

Uma tentativa de separação das águas que tem sido cara a uma parte da esquerda é a ideia de que esquerda e direita não seriam categorias morais, mas corresponderiam antes a grupos de interesses ou classes. Assim, a esquerda corresponderia aos interesses das massas trabalhadoras e a direita aos interesses da minoria de proprietários e patrões (com muitas variação na terminologia concreta utilizada). É uma maneira de definir a oposição que parece ter funcionado bem em certos períodos históricos e em certos lugares, nomeadamente na época em que existia uma grande classe de gente que não possuía nada e que se juntava sistematicamente à esquerda na sua luta por uma vida melhor, mas que funciona mal em países com uma grande classe média que se divide entre a direita e a esquerda sem que essa divisão corresponda a uma divisão de classe económica. Além disso, sempre houve movimentos de massas populares de direita, de que os fascismos típicos são os melhores exemplos, e hoje a extrema-direita tem uma implantação forte entre as massas populares, e provavelmente representa-as, em termos de interesses, tão bem como alguma esquerda.

Continuemos. O internacionalismo e o nacionalismo também não constituem traços definidores da oposição entre esquerda e direita. Se é verdade que sempre houve um sector da esquerda a defender perspectivas internacionalistas, não é menos verdade que uma boa parte dela, se não a maioria, sempre foi tão nacionalista como a direita. Aliás, poder-se-ia até afirmar que o próprio conceito moderno de nação tem a sua origem na esquerda. Hoje em dia, como todos sabemos, há sectores tanto da esquerda como da direita a acusarem de falta de nacionalismo outros sectores da esquerda e da direita, que se “globalizam” - embora, do lado da esquerda, essa globalização tenha, às vezes, o carácter de uma luta global contra a globalização. Por aqui, não vamos lá…

Também não vamos lá pela oposição entre pacifismo e belicismo, que são ideologias com tanta implantação à esquerda como à direita. Se hoje uma grande parte dos movimentos antiguerra tende a ser de esquerda, não tem sido sempre assim, e houve casos em que o pacifismo foi assumido pela direita. Em princípio, a esquerda não é, na sua esmagadora maioria, pacifista por natureza, mas apenas contra as guerras da direita – e a direita contra as guerras da esquerda (veja-se o caso da revolução francesa ou da Segunda Guerra mundial como exemplos de antibelicismo de direita, ou, pelo menos, criticados pela esquerda como sendo de direita). Além disso, a “violência revolucionária” tem sido uma ideia forte na ideologia de diversos sectores da esquerda.

Em princípio, o ateísmo e a ideia de estado laico correspondem à esquerda e a direita está ligada às religiões e, sobretudo, aos estados religiosos. Mas também esta oposição está longe de funcionar sempre. Certos movimentos religiosos, o mais importante dos quais é a Teologia da Libertação na América Latina, foram/são movimentos de esquerda, como se considera de esquerda, por exemplo, o movimento pelos direitos cívicos em torno de Martin Luther King, por muito que fosse, em grande parte, um movimento de cariz religioso. Por outro lado, também há direita não-religiosa.

Uma outra oposição que se considera muitas vezes coincidir – ou servir de base – à dicotomia esquerda-direita é a oposição entre a defesa de um estado forte e altamente interveniente na vida pública, quer na variante socialista marxista, quer na variante social-democrata, e um estado mais fraco e a ausência de intervenção estatal em muitos sectores da vida de uma nação. A oposição é muitas vezes apresentada como muito estado versus pouco estado. É claro, no entanto, que sempre houve e continua a haver sectores da direita a defender uma forte intervenção do Estado em todos os sectores da vida pública, de que os fascismos são exemplos extremos. Além disso, as mesmas ideologias de direita que defendem pouca intervenção do Estado nos sectores sociais e na economia podem defender muito “Estado” ao nível das forças armadas, diplomacia, etc. E também é verdade que muitas ideologias de esquerda são, na essência anti-Estado – não só as muitas variantes do anarquismo, mas também o próprio marxismo. De facto, uma das críticas que se pode fazer ao desvio da maioria dos marxistas em relação ao marxismo é terem-se afastado da ideia de Marx da abolição do Estado como passo último do processo revolucionário…

Dentro desta questão cabe a do intervencionismo económico versus liberalismo económico, que são muitas vezes usados para definir a diferença entre esquerda e direita. É, no entanto, discutível o alcance dessa proposta: não só ela não é estável ao longo da história (já houve períodos em que foi a esquerda a reivindicar o comércio livre e a direita a defender os monopólios de Estado), como, hoje em dia, é a esquerda internacionalista e terceiro-mundista que reivindica o fim do proteccionismo estatal relativamente aos produtos do Norte desenvolvido. Embora este oposição não seja de modo nenhum de desprezar quando se analisa o antagonismo entre direita e esquerda no mundo actual, é fácil constatar que nem toda a esquerda é forçosamente antiliberal em todas as suas propostas e que a intervenção estatal na economia está muito, muito longe de ser recusada pelos vários sectores da direita.
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E então? Na minha opinião, o que distingue fundamentalmente a esquerda da direita é a maneira como se posicionam relativamente à questão da igualdade. Este posicionamento pode ser analisado de diversas maneiras, centrando-se em diversos aspectos da questão, mas o fundamental da ideologia de esquerda é o louvor e a defesa da igualdade, ao passo que a direita não crê na igualdade e assume a desigualdade tanto como ponto de partida como ponto de chegada dos seus programas políticos.

Isto não significa que a esquerda acredite que as pessoas são de facto iguais. Mas, ao passo que a direita considera a desigualdade natural e imutável, porque acredita que ela reflecte a diferença de capacidade dos diversos seres humanos, a esquerda, no geral, considera que a desigualdade tem a sua causa em factores de ordem social; ou que, por muito que tenha tido originalmente origem em diferenças de capacidades naturais ou em diferenças acidentais no acesso a recursos, se transformou num fenómeno sistemático, que já não resulta directamente apenas da diferença de capacidade.

Por outro lado, a esquerda pensa que, mesmo que as desigualdades tenham origem na diferença natural de capacidades ou em diferenças acidentais no acesso a recursos, isso não é razão para as aceitar (neste sentido, eu diria que só a esquerda é moral…). A esquerda preconiza a correcção deliberada de assimetrias sociais; a direita opõe-se a essa correcção.

Igualdade nunca faz parte de um slogan de direita. As lutas pela igualdade, quer se trate da luta pela abolição da servidão e do esclavagismo, da luta pelos mesmos direitos para homens e mulheres ou do combate às muitas formas de racismo e discriminação, quer com base em critérios étnico-culturais quer em preferências sexuais, vieram sempre da esquerda, por muito que, hoje, algumas destas propostas de igualdade – ou certas versões destas propostas de igualdade – tenham uma tão grande base de aceitação que deixaram de ser exclusivamente de esquerda (mas isso aconteceu com muitas outras propostas da esquerda, visto que uma grande parte dos princípios que regem os estados de direito actuais vêm originalmente da esquerda). Evidentemente, a definição de igualdade não é pacífica…

Há quem distinga, por exemplo, entre igualdade de oportunidades e igualdade de resultados, e identifique a primeira com a direita e a segunda com a esquerda. Não posso concordar. Pode argumentar-se, como faz alguma esquerda, que a defesa de igualdade de oportunidades não é uma verdadeira defesa da igualdade, porque não há igualdade no ponto de partida dessas mesmas oportunidades. Mas não é sequer necessário entrar nessa discussão. A defesa da igualdade de oportunidades é à esquerda da defesa da desigualdade de oportunidades em função de privilégios à partida (da direita histórica), pelo que continua a ser a igualdade o traço definidor do conceito de esquerda. Aliás, a igualdade de oportunidades deriva directamente da igualdade de direitos, e não há dúvida que foram ambas reivindicações da esquerda. Que se tenha querido ir mais longe quando foram alcançadas estas igualdades, não faz delas definidoras da direita. A igualdade de oportunidades só é menos à esquerda do que a defesa de outra igualdade, a de resultados; não do que a defesa de uma desigualdade.

Há quem defenda também que o igualitarismo extremo resulta numa ideologia de uniformização que dificilmente se pode considerar de esquerda. O que acontece, no entanto, é que o “excesso de igualitarismo” que eventualmente pode resultar em uniformização se baseia sempre na crença na superioridade do grupo que se quer uniformizar relativamente a todos os outros humanos, por um lado; e na superioridade natural dos líderes que impõem a uniformização, por outro – é a lição de todas as utopias, desde a de Thomas More. Um verdadeiro igualitarismo implica que, numa base de diversidade, todos tenham o mesmo poder – e isso nunca pode criar uniformização.

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Não há nisto nada de novo. Muita gente propôs já que a defesa da igualdade constitui a linha divisória fundamental entre esquerda e direita. Mas parece-me importante insistir nesta ideia. Parece-me importante insistir na ideia simples de que é a igualdade que tem de ser, ao mesmo tempo, ponto de partida, destino e caminho da esquerda; e parece-me importante insistir na constatação simples de que, da cada vez que uma esquerda qualquer deixa de ter a igualdade como cerne ideológico, deixa de ser verdadeiramente esquerda…