06/05/09

Dois miniposts de cocktail #1

Vicunhas e carapaus
Vicunha (Vicugna vicugna) nas proximidades do lago Chungará
a 4570 m de altitude, norte do Chile
Foto: Luca Galuzzi, 12 April 2006 https://www.galuzzi.it/
Wikimedia Commons, from here.
O português é, como se sabe, uma língua muito rica. Tem palavras como taperebá e malambe, que, ao que sei, não têm correspondente em lituano nem em tagalo. Só que, às vezes, o português exagera um bocadinho na riqueza. Por exemplo, tem duas palavras para designar a vicunha, porque também se pode lhe chamar vigonho. Ora, se pode ser confuso ter uma só palavra para designar uma quantidade enorme de bichos, como pescada ou carapau, também faz confusão ter mais do que uma palavra para designar um bicho só. A solução simples que eu proponho é que se anule já e por decreto a palavra vigonho*: se o bicho tem o nome científico Vicugna vicugna e se esse nome lhe vem, ademais, do nome que lhe dão em quéchua as únicas pessoas que com ele convivem, e se foi esse o nome que (escrito vicuña, claro está) passou para o espanhol, que é língua oficial de todos os países onde o bicho existe, além de ser língua irmã quase gémea da nossa, por quê e para quê insistir em chamar vigonho ao animal? E já terá alguém alguma vez usado uma palavra assim? Só alguém com muita chicha no bucho…

[A propósito de vicunhas: No planalto andino, chama-se vicunha a quem seja agarrado ao dinheiro. Para perceber o chiste, porque é chistoso o apodo, é preciso saber duas coisas: a primeira é que a vicunha tem uma lã muito apreciada, mas é difícil de tosquiar; a outra é que, em espanhol, se pode chamar, em calão, ao dinheiro. Então é por isso que um avarento é vicuña: porque es difícil sacarle la lana. E serve este delírio também para dar a conhecer a quem siga o link da palavra o Diccionario de la Real Academia Española, que é um exemplo de um bom dicionário online e que é fixe ter nos favoritos, ou não?]

A língua de madeira do desenvolvimento
Não acreditar, como eu não acredito, que a língua modele o pensamento não implica de modo algum acreditar que a maneira de dizer as coisas não ajude a clarificar o que se pensa ou que, mais importante, não ajude a deixar em branco quem ouve o muito pouco ou nada que se tem para dizer. Como eu ganho a vida a traduzir textos de cooperação para o desenvolvimento (ou ajuda ao desenvolvimento, escolham o que mais vos agradar), é dessa área que tenho mais exemplos de como uma língua de madeira serve para fazer e esconder amálgamas e incoerência lógicas.

Bom, muito tem sido dito sobre o bizarro jargão do desenvolvimento e não quero fazer aqui um apanhado geral da coisa, porque isto hoje é um cocktail de textos pequeninos, e meter-me por essa língua dentro dá pano para outras mangas [Aconselho-vos, a propósito, uma secção de um texto de Mia Couto que se chama (a secção) “Uma língua chamada desenvolvimentês. Mas é melhor lerem o texto todo, claro.]

Uma das palavras que me diverte (?) é ensure, “garantir, assegurar”. Tudo o que se faz num programa ou num programa, numa sessão de formação, num estudo ou numa avaliação, seja lá no que for, é para “garantir” alguma coisa: para garantir o respeito de direitos, para garantir aumento de rendimentos e melhoria da condições de vida, para garantir igualdade de género. Etc. Era bom que fosse assim, não era?, que as actividade de desenvolvimento garantissem essas coisas todas…

Outra palavra candidata ao prémio da amalgamagem (que palavra bonita que eu inventei!) é corrupção. Que se tente moralizar um bocadinho onde há falta de moral, está para mim muito bem, mas, por favor, importa-se de me dizer de que está a falar, que é para eu ver se percebo qual é o problema? Roubo, fraude, desvios, desfalques, proveitos ilícitos, compadrios, nepotismos, tráfico de influências, extorsão, abuso de poder e até mesmo corrupção mesmo corrupção, vejam lá, há tantas palavras mais precisas – e, como vêem, até as há a mais –, de maneira que não custa nada dizer, em cada caso, de que se trata. 


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* Para quem não me conheça, esclareço que estou a brincar, claro está (ou a dar conta de uma surpresa vá), que eu não proponho a sério nenhuma eliminação de palavras por decreto.

[Atualizado a 1 de junho de 2023]

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