30/03/09

Quem é que faz o arco-íris?

Até hoje, a Siri (a minha filha de 4 anos e meio, para quem não nos conheça) só tinha visto arco-íris em filmes. Ou, pelo menos, se alguma vez os tinha já visto no céu à sua frente, não se lembrava. Ficou fascinada.

“Eu não sabia que havia mesmo arco-íris a sério”, disse-me ela, “pensava que era só nos filmes. Quem é que faz aquilo?”

Tem sido várias vezes postulada uma tendência natural dos seres humanos para pressuporem, perante qualquer fenómeno anormal, um agente que seja o seu causador – um agente com características essencialmente humanas, como os deuses… Não é a primeira vez que a Siri me faz perguntas assim.

“Ninguém, Siri, o arco-íris não é ninguém que faz…”

Ela não insiste, mas não sei se a satisfaz a minha resposta, que choca obviamente com a sua intuição…

O que se leva desta vida

Raramente consigo dizer as coisas com poucas palavras. Quando me surge, como me surgiu agora, uma maneira de dizer com poucas palavras o que já uma vez disse com muitas, fico todo contente:

Em vez de dar tanta importância, como se costuma dar, ao que se leva desta vida, por que não importar-se antes com o que nela se deixa?

29/03/09

O que é e o que deve ser

Não são só as palavras que são como as cerejas. Os pensamentos também vêm todos agarrados uns aos outros, mesmo que não venham em forma de palavras. Quando, no outro dia, comecei um texto sobre os altos e baixos da vida com uma metáfora de atletismo, lembrei-me de que há quem ache mais do que apenas metafórica a relação entre as leis que regem o mundo físico e as leis que regem indivíduos e sociedades. Veio-me à cabeça um texto sobre dialéctica e transformações sociais – mais concretamente, sobre a necessidade de revoluções versus possibilidade de mudanças evolutivas – que traduzi há uns anos e em que se chamavam à conversa argumentos como a evaporação da água e os estados paradoxais dos fluidos supercríticos...

Não é minha intenção discutir aqui a utopia da universalidade das leis científicas e do querer aplicar-se à evolução das sociedades regras da física ou da química – ou, pelo menos, de se juntarem numa só discussão as duas coisas. A cereja que vinha agarrada a esse pensamento – e que é, essa sim, tema deste texto –, é que, para mim, o que importa discutir não é qual é a forma das mudanças sociais, se elas podem ou não ser assim ou assado. Não é sem interesse tentar saber se, ao longo da História, as revoluções têm trazido mudanças mais estáveis do que as transformações sociais menos bruscas, como não é sem interesse tentar saber, por exemplo, se temos ou não mecanismos inatos de reconhecimento de afinidade genética. Mas a moral (e a política, pelo menos para quem a encara, como eu, como uma parte da moral) não tem de se pronunciar sobre como o mundo é, mas sim como ele deve ser.

Pessoalmente, não tenho boas razões para acreditar que as transformações revolucionárias da sociedade trazem maiores e melhores mudanças do que as transformações menos bruscas. Pelo contrário, o que tenho visto do mundo leva-me a crer que as mudanças sociais mais sólidas foram sempre as que resultaram de evoluções mais graduais. Também não tenho razão nenhuma para crer que os mecanismos de reconhecimento de proximidade de parentesco e tipo físico, que é provável que existam, tenham uma força maior do que outros mecanismos igualmente naturais de criação de laços entre as pessoas. Mas, mesmo que uma pessoa, através de análises das mudanças de fase de uma substância ou de análises da História diferentes da minha, considere que tem boas razões para acreditar que as verdadeiras mudanças sociais acontecem sempre (leia-se, aconteceram sempre…) de forma brusca, ou mesmo que haja investigações que a convençam de que a discriminação dos que não são parecidos connosco é natural nos humanos, não decorre daí nenhuma necessidade de aprovar, por inelutáveis, as revoluções ou a discriminação racial. Essa pessoa pode sempre propor – e não seria a primeira a fazê-lo… – que se vá contra o que ela acredite ser a natureza das coisas; pode propor transformar a “natureza” das sociedades ou das pessoas, se achar que essa “natureza” não é como devia ser.

“Em vão”, dirão muitos, “porque, como explica a velha fábula, não se pode fazer com que um escorpião deixe de morder… O interesse de saber como é a estrutura da História, ou como é a natureza humana é que se escusa assim de propor o irrealizável…” Ao que eu respondo, antes de mais, que a estrutura da História está dentro da cabeça das pessoas, pelo que não há leis sociais exteriores aos seres humanos; e que a vantagem da natureza humana, seja lá ela qual for, em relação à natureza do escorpião é que ela é muitíssimo mais flexível. Se calhar, é mesmo por isso que nós temos moral e os escorpiões não, e é certamente por isso que não há nada “inevitável”, quando se fala do comportamento dos homens, e podemos sempre discutir o que devemos evitar – e também o que devemos cultivar.

Evidentemente, quando mais fundo for em nós o hábito ou a disposição inata que queremos alterar, mais difícil é essa mudança e mais há que ponderar a estratégia para lá chegar. Mas há quem recuse o sexo por decisão própria e quem aprenda a suicidar-se deixando de respirar – pelos vistos, o que é definitivamente natural no ser humano é não haver nele nada de tão definitivamente natural que não possa ser alterado. A famosa frase de Maio de 68 “Sejamos realistas, exijamos o impossível” não é tão desprovida de lógica como à partida parece, porque, como tem sido insistentemente defendido por aqueles que acham que o mundo pode ser melhorado, o que nos parece hoje impossível talvez não o pareça mesmo nada aos nossos netos. Quantas pessoas, mesmo as mais progressistas, não achariam há 100 anos que as relações entre os sexos ou as raças como elas existem hoje em certos grupos humanos seriam sempre impossíveis por violarem fundamentalmente a “natureza humana”?

É esta a beleza da política e do resto da moral: Podemos sempre propor, sem medo de estarmos a cair nalgum excesso de idealismo, aquilo que corresponde, nos comportamentos humanos, à ebulição da água a 50 ou a 150 graus. As mudanças sociais podem ser bruscas ou não, as relações entre raças, sexos e nações podem ser de todos os tipos, e as leis que regem o comércio também. Podem ser conforme nós as quisermos. Discutamos então não como são, mas sim como devem ser.

15/03/09

Tom & Jerry ou as vantagens de uma casa pequena

“Quando voltarmos para a Dinamarca, não havemos de ter uma casa assim tão grande como esta.”

“Mas também é bom, porque com uma casa pequenina só temos espaço para uma televisão pequenina e depois o Tom e o Jerry não cabem os dois na televisão ao mesmo tempo e assim não podem andar sempre à guerra um com o outro.”

12/03/09

De colinas e terras chãs: pesa mais o mau do que o bom

1. Quem se interesse por atletismo ou simplesmente goste de correr é capaz de já se ter perguntado a si mesmo: é a mesma coisa correr uma determinada distância num percurso plano e num percurso com subidas e descidas? À primeira vista, pode parecer que, se a partida e a chegada estiverem ao mesmo nível, o resto é capaz de não fazer grande diferença, porque, se as subidas nos esforçam e nos atrasam, as descidas repousam-nos e dão-nos maior velocidade, e são assim bem capazes de compensar as subidas. Na realidade, porém, não é assim que as coisas se passam: fazem-se sempre melhores tempos em percursos planos, precisamente porque uma descida não compensa o esforço despendido e o tempo perdido na subida que lhe corresponde (ver a regra de Jack Daniels e John Kellogs na penúltima secção deste artigo, por exemplo, ).

Não que eu queira encontrar nos estudos de motricidade humana confirmação de uma especulação filosófica, não é isso, mas acho que temos aqui uma boa metáfora da vida da gente. O que eu tenho muitas vezes pensado é que os altos e baixos da vida são exactamente como os altos e baixos da estrada: o negativo pesa sempre mais do que o positivo. Em Outubro de 2002 escrevi, a propósito da morte de um colega, um poema chamado “Poema de Inverno # 7, sem título absolutamente nenhum”:

Isto não é assim – as alegrias
não servem para anular
tristezas, para as compensar.
Não – as penas vêm só aumentar

uma tristeza única que há,
a de estar vivo, aquela
que nenhuma alegria cancela:

mil nascimentos não apagam
uma única morte; mil beijos

apaixonados não compensam
nenhuma pena de amar; e mil risos
cúmplices não anulam nunca

um minuto só que seja
de verdadeira solidão.

Exagero, em busca de efeito literário? É possível. Mas talvez não…

2. Compreendo bem, sinceramente, quem ache que a melhor maneira de viver a vida é escolher sempre as planícies e evitar todo o tipo de colinas. O louvor da regra e mesura, da repressão dos sentimentos efusivos e de toda a classe de excitações como receita para uma vida melhor é uma ideia muito forte em muitas tradições e em muitos períodos da nossa história, mas nós, românticos que somos todos, desabituámo-nos de ter esse ensinamento em conta no momento de fazer escolhas. Interiorizámos antes que plano é chato, prato que não nos serve. Fomos antes programados para valorizar a montanha russa, o dar livre curso ao entusiasmo, nem que com plena consciência de que há-de ser dura a ressaca.

Não faço propostas, longe de mim… Não vou aqui louvar nem a medida nem a paixão. Queria só chamar a atenção para um facto simples. É provável que, com algum treino, possamos condicionar-nos a nós próprios, em maior ou menor grau, para a escolha do comedimento, da temperança, tanto nas acções como no próprio sentir; mas temos de reconhecer que muitos dos altos e baixos da vida nos vêm de acontecimentos nos quais não intervém a nossa disciplina mental. As mortes dos outros, por exemplo, como lembra o poemazito lá atrás, e muitos mais... A mesura, louvável que possa ser, não chega para tornar plano o percurso de vida. Para terraplenar a estrada é necessário ir muito mais longe e deitar fora todos os laços, todos os sentimentos – e todo o raciocínio… Mas isso, mesmo que se queira, não se consegue, pois não?

08/03/09

Desenvolvimento: lista de dúvidas

Há mais de vinte anos que lido com as questões da ajuda para o desenvolvimento e vivo sobretudo entre profissionais de desenvolvimento; e cada vez tenho menos certezas relativamente a essa ajuda e à questão do desenvolvimento em geral. Sinceramente.

Como já disse aqui uma vez, tenho um certo medo de ser mal compreendido nas minhas críticas ao trabalho de desenvolvimento, porque tenho medo de que arrumem as minhas críticas num saco onde eu não as quero ver arrumadas, onde elas realmente não pertencem – o da crítica fácil e infundada à “inutilidade” desse trabalho. Tenho medo, sobretudo, de que as vejam como proposta de redução ou até de supressão da ajuda para o desenvolvimento, que não são de modo algum, e deixo claro que não é isso que eu defendo. Eu acho não só que a ajuda para o desenvolvimento deve continuar como até que ela deve aumentar.

Ainda assim, resolvi fazer uma pequena lista das dúvidas que tenho em relação a certos aspectos do trabalho de desenvolvimento tal como ele se faz agora. Ora, como é realmente uma lista de dúvidas, o texto toma às vezes a forma de diálogo comigo próprio, em que me recordo de que o assunto em questão se pode ver de várias maneiras, às vezes opostas. Acho que ainda não escrevi aqui na Travessa nenhum texto tão hesitante como este. Se o diálogo e as críticas são sempre desejados, em relação a este texto são-no dez vezes mais.

Evidentemente, quando uma pessoa se lança numa conversa assim, a primeira coisa a fazer é definir desenvolvimento. Para muita gente, é, aliás, esta a primeira problemática do desenvolvimento – se calhar, não falamos todos da mesma coisa quando falamos de desenvolvimento… A minha opinião é que, no geral, falamos todos da mesma coisa quando falamos de desenvolvimento e que não há grande necessidade de me lançar numa grande discussão do conceito. Quando se fala de países desenvolvidos e de países menos desenvolvidos, tem-se, normalmente, uma ideia relativamente clara do que os distingue. Ainda assim, e por via das dúvidas, podemos assentar que, quando falo aqui de desenvolvimento, falo essencialmente dos indicadores que usa, por exemplo, o PNUD no seu índice de desenvolvimento humano: saúde (incluindo esperança de vida), educação e dinheiro para gastos. Ou seja, acho que se pode definir desenvolvimento como uma vida mais longa, mais cómoda, mais desafogada…

Para terminar esta nota introdutória, quero também deixar claro que só tenho experiência concreta de dois países receptores de ajuda, Moçambique e a Bolívia, e é bem possível que algumas dúvidas que tenho digam mais directamente respeito a esses países do que à generalidade dos países em desenvolvimento. Pode bem ser…

Queimar etapas? O dinheiro e o tempo necessários ao desenvolvimento
Como já referi aqui uma vez, muito de fugida, um dos obstáculos ao desenvolvimento dos países pobres é a assustadora falta de dinheiro de que sofrem. É verdade que, muitas vezes, nem o pouco dinheiro que têm conseguem gastar, e muito menos ainda gastar bem gasto. É bem verdade que uma parte do dinheiro que se destina a melhorar a vida dos mais desfavorecidos não faz senão tornar mais confortável ainda, se não mesmo opulenta, a vida daqueles que não precisam para nada de ver a sua vida melhorada. É bem verdade isso tudo, mas também é bem verdade que o dinheiro todo, por mais bem gasto que seja, não chega para nada. Um dia gostava de ver contas bem feitas, com preços actualizados, do que custou o desenvolvimento dos países desenvolvidos. Foram muitas dezenas de anos, às vezes centenas, de investimento em várias coisas em que, em muitos países pobres, o investimento só agora começou há 30 ou 40 anos – ou, em países como Moçambique, ainda menos. Provavelmente, também nos países hoje desenvolvidos, uma grande parte do investimento se perdeu ou foi mal gasto. Mas, se foi, foi há tanto tempo que já ninguém se lembra disso.

Além disso, como toda a gente sabe, tempo é dinheiro. Não é só dinheiro que falta, é tempo também, nem que seja para conseguir gastar o dinheiro que, bem gasto e mal gasto, é preciso gastar para se ver desenvolvimento… Um dos princípios do trabalho de desenvolvimento é que se podem queimar etapas, porque o mundo está numa fase de desenvolvimento, precisamente, diferente daquela em que estava quando se desenvolveram os países hoje ricos. Sei lá, já não é preciso passar pela mala-posta para distribuir o correio e nem sequer montar linhas de telefone em todo o país, quando há Internet e telemóveis. Mas a mentalidade e o saber tecnico de uma grande parte da população de Moçambique são provavelmente muito semelhantes aos de uma grande parte da população de França ou da Alemanha há já muito tempo. E é capaz de não se conseguirem queimar as etapas todas de uma vez. Como diz uma amiga minha, primeiro é preciso que haja uma ou duas gerações sem fome; depois, umas quantas gerações com escola; depois, começa o desenvolvimento. Não há milagres. Não é caso de baixar os braços e desistir, nada disso, mas, muito provavelmente, não é com pressa que se apressa o desenvolvimento.

[Numa entrevista publicada na última edição de Udvikling, o jornal da Danida/MNE da Dinamarca, Joseph Hanlon critica violentamente as ONGs internacionais por estarem constantemente a mudar de estratégia, de programas e de enfoque, de maneira que nada do que fazem dura muito tempo. Na minha opinião, a impaciência e a inconstância no trabalho de desenvolvimento não se limita, infelizmente, às ONGs internacionais, mas é também característica de muitas ONGs dos países em vias de desenvolvimento e de muita cooperação bilateral e multilateral.]

Os mais pobres dos pobres? Grupos-alvo e eixos do trabalho de desenvolvimento
Uma problemática que está ligada a esta (estas problemáticas estão, aliás, todas tão interligadas que esta separação em secções é bastante artificial…) é a questão de quem devem ser os beneficiários da ajuda ao desenvolvimento e de quem deve ser o motor e o eixo desse desenvolvimento. Até agora, e sob diversas designações, têm-se definido as camadas mais desfavorecidas da população como grupo-alvo da ajuda. Moralmente, não tenho nada contra, não posso ter nada contra. Mas duvido que seja uma boa estratégia de desenvolvimento. A classe média, no caso concreto dos países em vias de desenvolvimento, é mínima e é tão mais rica do que a classe pobre que parece, obviamente, imoral ajudá-la a ela, mas é muito provavelmente ela o único motor possível de desenvolvimento, porque é a classe com visão de futuro e mentalidade de investimento. Parece-me que desenvolvimento foi sempre sinónimo, onde se deu, de crescimento da classe média.

O mesmo em relação à questão do desenvolvimento assente na agricultura. Como mo recordava há relativamente pouco tempo um conhecido meu (agrónomo e técnico de desenvolvimento, para não pensarem que estava, com a afirmação, a defender algum interesse pessoal...) não há prova nenhuma de que possa haver algum desenvolvimento alicerçado no sector primário, sobretudo não industrializado – nunca houve, em lado nenhum do mundo… Desenvolvimento significou sempre, onde ele se deu, uma redução enorme da percentagem de pessoas a trabalhar no sector primário, com movimentações enormes de populações do campo para a cidade e com enormes problemas imediatos que depois se foram resolvendo… Voltamos ao mesmo: Num país como Moçambique, o chamado sector familiar (agricultura sobretudo de subsistência, com venda de alguns excedentes) abarca uns 80% da população, e é, precisamente, a população mais pobre – ou a esmagadora maioria da população mais pobre. Se a prioridade no apoio a esse sector se justificar com argumentos de ordem moral, é difícil não a aceitar. Mas daí a fazer desse sector o pólo de desenvolvimento, como é actualmente a estratégia oficial do governo, vai um passo de gigante… Agora, evidentemente, quando 80% da população vive da agricultura de subsistência, o desenvolvimento tem também forçosamente de passar pela melhoria efectiva das condições de vida de toda essa gente, mesmo que não se acredite nesse sector como “pólo de desenvolvimento”. Porque não deve haver verdadeiro desenvolvimento de um país sem haver melhoria das condições de vida da maioria da sua população. Além disso, há de facto possibilidade de melhorar os sectores primários dos países do terceiro mundo e de lhes dar um papel muito importante no desenvolvimento desses países, mas provavelmente não é essencialmente através de apoios directos a esses sectores, pelo menos nas formas mais tradicionais, mas antes desenvolvendo a educação, o ambiente de negócios e o sistema jurídico, tomando medidas proteccionistas, quando necessário, e, como cada vez mais gente vem defendendo, acabando com o proteccionismo nos países ricos e alterando algumas regras viciadas do jogo do comércio internacional.

Outra questão sobre a qual os estrategas do desenvolvimento se devem interrogar é se é a educação escolar mínima para todos que deve constituir a prioridade neste momento. Ao que sei, parece evidente à esmagadora maioria das pessoas que se interessam por desenvolvimento (e eu concordo completamente!) que a educação escolar é, no geral, uma condição essencial para o desenvolvimento. Provavelmente, é até a única condição essencial. A ideia de que o desenvolvimento pode assentar em recursos outros que não os recursos humanos nunca me convenceu muito, até porque alguns dos países mais desenvolvidos não têm nem nunca tiveram recursos naturais e alguns dos países mais ricos em recursos naturais continuam por desenvolver… A educação escolar, isso sim, parece ser um dos factores que melhor permite explicar o surgimento do desenvolvimento onde ele aconteceu. Mas não sei até que ponto a ânsia de dar imediatamente escolaridade primária a toda a gente é a melhor maneira de estabelecer as bases para um sistema de educação que venha efectivamente a funcionar e a gerar desenvolvimento sustentável. Talvez seja melhor pensar em menos e melhor educação, numa primeira fase, para que o sistema se possa reproduzir de uma forma mais sólida. Mas, é claro, insinua-se sempre a questão moral: a fazer-se como eu acabo de sugerir que talvez seja melhor, quem serão os eleitos e os preteridos – e com que critérios?

Sol na eira e chuva no nabal? Desenvolvimento com tradições, contradições de algum desenvolvimento
Já uma vez aflorei aqui o assunto. Há muito quem defenda que o desenvolvimento passa pela defesa de direitos colectivos, como o direito a conservar (ou mesmo a revitalizar) a sua cultura e as instituições tradicionais, mas eu duvido muito disto. O que a História me diz é que o desenvolvimento se deu, onde ele existe, sempre contra as tradições e as instituições tradicionais que são, na quase generalidade dos casos, retrógradas e preservadoras de desigualdades e de uma mentalidade antiprogresso. É contraditório, na minha opinião, defender ao mesmo tempo uma ideia moderna de cidadania e defender instituições não cidadãs como as instituições de base étnica. Casos há em que se vai contra os princípios democráticos que se diz defender ao pretender-se que a “democracia” seja tanta que se dê às comunidades o direito de resolverem elas próprias os seus problemas à revelia da lei do país. Desconfio muitas vezes que há debaixo desta defesa, para os outros, de algo que os países desenvolvidos nunca aceitariam para eles próprios, uma grande dose de paternalismo, assente, disso não tenho dúvidas, nas melhores intenções. Mas, como sugere o título desta secçãozinha, não se pode ter, ao mesmo tempo, a manteiga e o dinheiro que ela custou. Não quero dizer que deva ser à bruta o combate das tradições. Já se fez assim à bruta, e sempre com maus resultados. A estratégia tem de ser outra, mais comedida, talvez, porque as tradições têm, nestes países, força suficiente para serem encaradas como adversários de respeito. Mas não é aceitando que os curandeiros são “médicos tradicionais” que se aumenta a esperança de vida, nem aceitando que a justiça dos caciques tem o mesmo valor que a do Estado que se instaura um verdadeiro sistema jurídico. E et cetera, et cetera, que eu não quero maçar-vos muito com exemplos. O que eu digo é que a escolha é, em última análise, entre olhar para a frente ou olhar para trás.

As pessoas sabem o que querem e têm boas ideias? Democracia forte e desenvolvimentoUma ideia que está suficientemente na moda para servir de base teórica ao trabalho de muitas agências de desenvolvimento é que há uma relação positiva entre democracia local forte e desenvolvimento. É verdade que, embora a relação entre democracia e desenvolvimento continue a ser polémica, há cada vez mais trabalho teórico a confirmar uma relação positiva entre uma e a outra coisa. Esse trabalho, porém, diz respeito a dados sobre economia e instituições económicas e políticas a níveis muito gerais, e não trata especificamente uma versão forte da democracia, assente na democracia local – que nem sequer é prevalecente nos países desenvolvidos. De facto, algumas vezes as propostas de democracia forte para os países em vias de desenvolvimento são tão avançadas que só existem nesses países em via de desenvolvimento e nunca nos países desenvolvidos. Também esta questão já aqui foi uma vez tratada. A democracia participativa local, por exemplo com conselhos consultivos aos níveis locais, que têm estatuto legal e capacidade de deliberar sobre a utilização de fundos locais de desenvolvimento, são uma dessas estruturas em que alguns países pobres se revelam mais “avançados” do que os países ricos. Isso contribui de facto para algum desenvolvimento ou se é uma forma de continuar a adiar a construção (lenta e difícil talvez, mas nem por isso menos necessária) de um estado suficientemente forte para assumir em todo o país as suas responsabilidades de fiscalização e prestação serviços? E que capacidade têm pessoas com pouca ou nenhuma educação formal de elaborar planos de desenvolvimento? Mesmo nos países com níveis mais elevados de educação, decisões desse tipo são deixadas aos técnicos dos sectores. [Se calhar, podemos congratular-nos por essas experiência de ultrademocracia na prática não funcionarem. Mas se calhar, não. Porque, não funcionando, são mais uma maneira torcida de legitimar o poder de quem o tem e que controla essas instâncias como controla tudo o resto.]

Profissionais do desenvolvimento? Desenvolver o quê, para quem?
E depois… Bom, depois há uma questão que eu me coloco a mim mesmo há muito tempo: a ajuda para o desenvolvimento não profissionalizada nunca deu resultados por aí além; cooperantes voluntários são pessoas normalmente com altos graus de empatia relativamente à população local e, seguramente, com as melhores intenções do mundo, mas nada disso resulta em grande eficácia. Os profissionais do desenvolvimento são, provavelmente, um pouco mais eficazes no seu trabalho. Mas, tanto uns como os outros, incluindo as elites educadas nacionais que vivem também da cooperação para o desenvolvimento, têm uma coisa em comum com as elites políticas que governam os países – estão completamente fora dos sistemas em cujo desenvolvimento trabalham: os seus filhos não usam as escolas do estado; as suas famílias não usam o sistema de saúde público; não têm farmas nem empresas comerciais, e, por conseguinte, nenhum dinheiro a ganhar nem a perder com o desenvolvimento agrícola e comercial, etc. Não têm, em resumo, interesse nenhum pessoal no desenvolvimento dos países em cujo desenvolvimento trabalham. O único interesse imediato que têm é manter bom-nome no meio das agências de desenvolvimento, para garantir trabalho futuro; e manter bom-nome significa, normalmente, não fazer muitas ondas… [Nesse sentido, pelo menos, não fazem grande sentido as críticas de neo-colonialismo aos profissionais da cooperação…]

Como terão sido as coisas nos países que se desenvolveram? Nunca arranjei nada nem ninguém que me conseguisse responder satisfatoriamente a esta pergunta simples, mas, com o que sei da história da Europa, por exemplo, sou tentado a pensar que o desenvolvimento veio sobretudo do investimento das pessoas na melhoria das estruturas que condicionavam as suas vidas. Não só, mas sobretudo. E não é isso que é natural?

Ajuda ao desenvolvimento? Sim!, mas… qual? A ajuda como possível perpetuadora da falta de investimento no desenvolvimento
Um dos efeitos perversos da ajuda ao desenvolvimento é que as elites dos países pobres, que vivem dessa ajuda, não só não precisam de desenvolver o país para manterem os seus níveis de riqueza como até se pode argumentar que têm, em última análise, interesse em que essa ajuda se perpetue…

A tendência actual da ajuda ao desenvolvimento é fazer cada vez mais apoio orçamental, isto é, transferir cada vez mais os fundos directamente para o orçamento geral dos estados que se ajudam, de modo a que sejam os governos nacionais a fazer a gestão desses fundos. O princípio de sujeição da ajuda às estratégias e modelos de desenvolvimento definidas pelos governos dos países em desenvolvimento, tal como definido na Declaração de Paris, é correcto, na minha opinião, mas não vem, na prática, resolver em nada o problema já velho de uma enorme percentagem dos fundos ficar retida nos níveis mais altos do sistema estatal, em vez de ser aplicada onde devia – para criar desenvolvimento. Por outro lado, o acesso a essas quantidades de dinheiro leva, pelos vistos, à cobiça – e ao roubo (a que agora, não sei por quê, se chama corrupção). É certo que a contrapartida do apoio orçamental directo deveria ser, segundo o espírito e a letra da Conferência de Paris, um aumento da exigência de prestação de contas, mas entramos aqui num terreno delicado e o facto é que, por razões várias, não há grandes consequências para os casos de más contas.

É claro, pode-se sempre argumentar, como faz Joseph Hanlon no seu último livro sobre desenvolvimento em Moçambique Há mais bicicletas – mas há desenvolvimento?, que o lado menos mau da “corrupção” é que, apesar de tudo, gera algum dinamismo económico… e claro nem toda a elite política dos países em vias de desenvolvimento é predadora, que obviamente há políticos desses países genuinamente interessados no desenvolvimento. [Quero deixar claro que ainda não li o livro de Hanlon, e estou a dizer isto com base em vários resumos que vi das propostas que Hanlon faz na obra.] Ainda assim, acho que um exercício interessante de reflexão é colocar-se seriamente a questão: o que se passaria realmente, de negativo e de positivo, se se cortasse a ajuda ao desenvolvimento tal como ela actualmente existe? E que formas radicalmente novas poderia haver de utilizar esse dinheiro?

05/03/09

Ciência e bom senso: la vie en prose (2)

Num interessante comentário que fez a um post meu, Igor Lobão afirmava o seguinte:

A ciência é, igualmente, uma estrutura simbólica que confere uma leitura sobre o real e uma leitura que é revisível. Aliás, é nesse sentido que Popper propôs a falsificabilidade. Direi mais. A ciência em si mesma é uma ficção, parte de construções (teóricas) que podem ou não funcionar. Podemos explicitar o carácter de ficção através dos números negativos ou dos números imaginários. Eles não existem no real, mas são necessários para tentar-se produzir uma interpretação ou uma intervenção no real. O pressuposto de Galileu, de que o real pode ser transcrito em linguagem matemática, ou de Max Plank, de que real é o que se pode medir, são apenas pressupostos de ordem metafísica e que por sinal radicam numa estrutura simbólica.

Como esta discussão saía um bocadinho fora da discussão sobre religião que tinha originado o referido post e a polémica que ele gerou e como esta é uma discussão em que me tenho empenhado muitas vezes, prometi dar continuação ao textozinho singelo que aqui comecei no outro dia sobre ciência e bom senso. Quero também deixar claro que não tenho, de modo algum, intenções de perpetuar a polémica com Igor Lobão em particular e que, se cito aqui o seu texto, é só porque ele é um de muitos exemplos de uma maneira relativamente divulgada de entender a ciência com que eu não concordo.

Posso imaginar muita gente já a bocejar e a pensar que não fez mal nenhum à divindade da sua eleição para estar a levar com mais um episódio desta infindável discussão. Eu compreendo quem assim reaja e prometo que hei-de voltar com posts mais interessantes sobre receitas de peixe cru ou falares regionais. Para já, no entanto, até porque o prometido é devido, quero defender mais uma vez a minha muito chã (talvez demasiado chã...) opinião sobre a questão:

Qualquer teoria, científica ou não, pode ter diversos graus de eficácia, mas não compreendo por que é que o facto de uma teoria científica poder não funcionar faz da ciência uma ficção. A ciência não é nenhuma ficção nem o contrário disso. A ciência é a designação comum de várias áreas de reflexão e actividade humana em que se procura descobrir qualquer coisa sobre o mundo. Não se distingue, provavelmente, em nenhum aspecto essencial, de qualquer investigação sobre o mundo, seja ela normalmente considerado “científica” ou não. Por exemplo, se eu perguntar como sai de uma mangueira enrolada um jacto de água (em curva ou a direito?), é uma pergunta de carácter científico que estou a fazer? O facto é que a resposta é só uma, e quem quer que alguma vez tenha regado um relvado com uma mangueira sabe bem qual é. Evidentemente, as leis que regem o fenómeno são passíveis de descrições científicas detalhadas, como tudo o que se passa no mundo, desde que haja conhecimentos para tal… Ficção? Estrutura simbólica? Talvez…

O que eu acho é que todo este discurso da ciência como quadro conceptual, como edifício simbólico, como uma “linguagem” criadora de uma realidade sua, este tipo de coisas, pura e simplesmente não se aplica ao trabalho que fazem os cientistas no seu dia-a-dia. É por isso que as pessoas que propõem estas elegantes definições do trabalho científico raramente – ou nunca… – fazem elas próprias trabalho científico e, para os cientistas, estas questões de facto não se põem.

“Meu amigo”, dirá a minha cara leitora, se for suficientemente paciente comigo para não me tratar de uma forma menos simpática, “mas isso já você disse aqui da outra vez, por favor não se repita…”

Repito, sim senhora, repito e repiso. E desenvolvo. O melhor que há neste caso são os exemplos. No post Ciência e bom-senso (1) dava meia dúzia de exemplos completamente ao acaso de questões passíveis de merecerem algum inquérito: Quais os efeitos do aumento ou da redução dos níveis de actividade dos receptores D2 de dopamina? Os dinossauros foram aniquilados por uma parte do asteróide Baptistina? Houve tribos célticas no Norte da Península Ibérica? As formas irregulares dos verbos são geradas através de regras computacionais? O Pedro entregou à Luísa o livro que ela diz que ele não lhe entregou? Existem fadas? Para puxar um bocado a brasa à minha sardinha (têm de compreender que não me sinto muito à vontade com receptores D2 de dopamina, dinossauros e asteróides, migrações da antiguidades e seres de fantasia…) desenvolvo aqui o inquérito à produção das formas irregulares dos verbos, sim?

Esclareço, antes de mais, que o que eu quero dizer com isto de produção das formas irregulares dos verbos – e se são ou não geradas por regras computacionais – é o seguinte: “O que é que se passa no meu cérebro quando digo fiz em vez de fazi?” Quero também esclarecer que, muito provavelmente, não há nenhuma boa razão para distinguir a maneira como são tratadas pelo nosso cérebro as formas irregulares dos verbos da maneira como são tratadas pelo cérebro outras formas irregulares (plurais irregulares, por exemplo), mas como eu formulei dessa maneira a questão na primeira parte desta conversa, por puro acaso e sem pensar na altura que havia de aqui voltar a pegar nela, é assim que fica a questão…

Então? Podemos começar por deixar de lado o que não faz grande sentido, aquilo que não há nenhuma razão para supor que possa ser verdade. Assim, não consideramos que é o nosso anjo-da-guarda ou a nossa fada-madrinha que nos segreda ao ouvido as formas irregulares. Também podemos assumir, com relativo à-vontade, que se deve passar o mesmo na cabeça de toda a gente, ou seja, que não é provável que o cérebro de uns funcione de maneira diferente, no que respeita à forma irregular dos verbos, do cérebro de outros…

Em seguida, vamos ver que possibilidades há. Em princípio, podemos ver o que foi pensado sobre o assunto. Tanto quanto eu sei, há três hipóteses de base: há quem diga que todas as formas, tanto regulares como irregulares, estão armazenadas na memória e nós vamos lá buscá-las quando as queremos utilizar; há quem diga que todas são geradas a partir de regras interiorizadas e que há “regras menores” interiorizadas para as formas irregulares; e há quem diga que as formas regulares são geradas por uma regra de acrescentar um elemento (um sufixo, nas línguas como o português ou o inglês), quando não há uma forma irregular armazenada na memória – e que estão, precisamente, armazenadas na memória de cada pessoa, as formas verbais irregulares que ela conhece.

Agora, ou aceitamos estas três possibilidades, ou propomos outra. Depende um bocado da nossa criatividade que, por sua vez, depende muito, em princípio, da quantidade de conhecimentos sobre o assunto e dos hábitos de reflexão sobre esta área… [Mas, quem sabe, talvez um olhar ingénuo sobre a questão possa gerar uma ideia genial… Às vezes, acontece.]

A partir daqui é necessário começar a investigar para ver qual das hipóteses (as três existentes ou a(s) que tivermos proposto) tem mais cabimento – ou se são todas de desprezar. [Em princípio, um resultado negativo, uma pura refutação da(s) hipótese(s) é um resultado tão válido como qualquer outro, por muito que nem todas as tradições académicas aceitem conclusões desse tipo nos trabalhos que exigem ou patrocinam…] Pode ir buscar-se evidência à maneira como estas formas são aprendidas pelas crianças, por exemplo, ao facto de que formas irregulares antes bem utilizadas (a criança dizia “eu fiz”) começam, a determinada altura, a ser substituídas por formas regulares erradas (a criança começa a dizer “eu fazi”), para depois voltarem a ser corrigidas (a criança volta a dizer “eu fiz” e vai dizer “eu fiz” o resto da vida); pode ir buscar-se evidência à comparação da história de duas línguas e à regularização dos neologismos, ou seja, ao facto de os verbos importados serem sempre regularizados; pode tentar-se observar directamente o cérebro e ver se há partes diferentes que “acendem” quando se usa uma forma regular e uma irregular; et cetera. De facto – eu não me quero agora alargar – pode ir buscar-se evidência a qualquer domínio, a qualquer lado e a qualquer tempo, desde que seja verdadeira evidência, isto é, que se possa discutir.

E podem entrar paixões, pode entrar a nossa ânsia de provar que queremos ter razão? Bom, se tivermos consciência delas e não fizermos os possíveis para sermos honestos na investigação, há aí uma imoralidade – uma imoralidade do mesmo tipo de conscientemente mentirmos em tribunal. Mas, se não tivermos consciência de que estamos a ser parciais? Não se pode fazer nada. Ou antes sim. Porque, como sempre em ciência ou em qualquer outra investigação séria e sensata, vale tudo desde que seja lógico e baseado em observáveis, para poder ser discutido. Se houver parcialidades e batotas, elas hão-de notar-se, a não ser que toda a gente que discuta connosco os nossos resultados sofra da mesma parcialidade que nós, o que é altamente improvável.

Poder-se-ia ir mais longe e em vez de afirmar «desde que seja verdadeira evidência, isto é, que se possa discutir», afirmar-se antes «desde que seja verdadeira evidência, isto é, que seja passível de ser refutada.» É a famosa teoria popperiana a que Igor Lobão faz referência, no excerto que dele citei, como “falsificabilidade”. Não gosto muito de falsificabilidade como tradução do conceito de Popper, porque leva facilmente os falantes do português que não conheçam a teoria de Popper, a pensar que, para ele, é científico o que se pode falsificar, quando de facto é de refutabilidade que se trata: segundo Popper, é científico o que há maneira de mostrar que é falso. O problema é que falsificar em português (tanto no uso que eu lhe conheço, como na definição que encontro no meu dicionário) não significa “mostrar que é falso”, ao contrário do falsify inglês, de que costuma ser uma (má) tradução. Neste sentido, e voltando à citação de Igor Lobão, o que é revisível não é exactamente a “leitura” que a “estrutura simbólica” faz do real (embora não me choque que se diga a coisa desta maneira), mas antes o valor de verdade de uma proposição. O que se passa mais concretamente é que se descobre que o que se pensava ser uma verdade antes, afinal não o é, porque se descobriu algo mais* sobre o assunto. A ciência, como toda a procura séria da verdade, está sempre disposta a reconhecer que errou…

Mas enfim, perdoem-me a excursão. Poder-se-ia ir mais longe, dizia eu, e afirmar que o critério de refutabilidade seria essencial. Pode, de facto, usar-se um truque assim, no geral, para avaliar da dose de bom senso de uma hipótese ou de uma proposta explicativa**. Mas não sei se vale a pena. Mesmo no uso desta regra geral é saudável ser comedido. Há tantas afirmações plausíveis e interessantes para a investigação do mundo que não são refutáveis em sentido estrito; e há tantas que, sendo refutáveis, nem vale a pena considerar, porque não há nenhuma razão para as crer interessantes…

Agora, digam-me: O procedimento descrito atrás para tentar saber alguma coisa de como são produzidas na cabeça da gente as formas irregulares dos verbos assenta numa estrutura simbólica específica? Como é que se podia pensar no assunto de outra maneira? Qual seria outra estrutura simbólica possível, “não-cientifica”? É claro que podia não se pensar no assunto – essa é sempre a alternativa à procura de conhecimento… E tirando isso?

Não me compreendam mal: a maior parte das questões que se discutem naquilo que se designa normalmente como trabalho científico são altamente especializadas e algumas são de uma grande complexidade. [Mesmo a que acabo de referir é suficientemente complexa para não haver acordo nenhum sobre a resposta a dar-lhe…]. Há, muitas vezes, questões metodológicas essenciais que podem influenciar resultados e que variam muito de área do saber para área do saber. Há muitas questões da prática de investigação que são levantadas por investigadores e que merecem discussão atenta e aprofundada. Ainda assim, as críticas à possibilidade de “objectividade” da ciência que a apresentam como “mais um quadro mental” que “produz as suas realidades”, tiveram uma enorme fortuna entre não cientistas, mas não vieram afectar, ao que eu sei, a maneira de fazer ciência. E é extremamente improvável que isso se deva a outra coisa que não seja às suas próprias características, isto é, ao facto de que as questões que levantam serem irrelevantes para o trabalho que os cientistas na realidade fazem. Dito de outra maneira, «“método científico” é uma expressão que nunca passa pelos lábios de um verdadeiro cientista»***. Porque quando são levantadas questões metodológicas directamente decorrentes do trabalho científico e com implicações sobre ele, há sempre quem as leve a sério e tenha em conta, no seu trabalho, essas mesmas implicações. Por exemplo, a questão da relação emotiva do cientista com a sua hipótese, de que eu falava atrás, é um problema real e constatado há muito tempo, para o qual também há já muito tempo que foram propostas soluções, como sejam a formulação à partida de várias hipóteses, se possível de maneira a que cada uma infirme as outras, e a análise das conclusões por um painel qualificado de advogados do diabo que não perfilhem a hipótese assumida pelo investigador. Mas não estamos aqui perante nada que seja verdade em ciência e não seja verdade fora dela. Os mesmos cuidados têm de se ter em qualquer inquérito para apurar a verdade, seja ele do domínio normalmente considerado científico ou não – embora, naturalmente, a própria natureza do que é investigado apele a problemas diferentes.

De uma forma talvez exageradamente poética, não sei, poder-se-ia até dizer que o facto de os problemas que se colocam ao investigador poderem variar em função do objecto de investigação é a prova mais concludente da dureza do real. Sim, porque o real é duro, para os cientistas e para as outras pessoas todas. Por isso é que não são só os cientistas a ter o cuidado de não ultrapassar em locais sem visibilidade…

Post Scriptum:
O real pode, em parte, ser transcrito em linguagem lógico-matemática. Mas é relativamente limitado o que se pode transcrever nessa linguagem – pelo menos enquanto não melhorarmos o método de transcrição… Também se calhar não vale a pena. A linguagem comum tem até agora chegado à investigação do mundo, se a acrescentarmos aqui e ali de termos novos, quando é necessário – como se faz, aliás, em todas as áreas de actividade humana – gastronomia, costura, serralharia…

O real também pode, em parte, ser medido. Mas há coisas do real que nós não sabemos medir e que não sabemos, por isso, se alguma vez haveremos de saber medir… Mas mesmo de medir coisas aparentemente tão imensuráveis como o sofrimento… já estivemos mais longe.

Não são só os números negativos e imaginários que não existem no real. Os números, como qualquer palavra (os números são palavras!), servem para dizer o real. Ou seja, na realidade o que há são seres contáveis e eu posso contá-los, positiva ou negativamente, da mesma forma que posso escolher uma lexicalização negativa ou positiva de uma proposição qualquer que descreva a realidade. Posso dizer “Não é verdade” ou “É falso”. Se tinha três maçãs e comi uma, posso transcrever “3-(+1)”, ou “3+(-1))”, quer dizer 3 menos uma maçã (que houve) ou 3 mais o desaparecimento de uma maçã… Evidentemente, pode ir-se muito longe na argumentação da exclusiva positividade do real. Nesse caso, não são só os números negativos que não existem, são todas as categorias negativas e afirmar que “ainda não comi” é uma descrição “desadequada” do real, porque não há ocorrências de “não-ingestão” de alimentos, apenas de ingestão de alimentos. Este facto simples tem às vezes implicações em discussões concretas (por exemplo, a impossibilidade de provar a não-existência de seres sobrenaturais) ou às vezes implicações metodológicas (por exemplo, na metodologia de identificação e resolução de problemas chamada Logical Framework Approach, exige-se a formulação positiva dos problemas, para não coincidir com a procura de soluções). Mas, na maior parte dos casos, este facto é sem interesse e determinado apenas pela escolha das palavras para dizer um estado de coisas – não há grande diferença entre dizer “o azul e o verde são cores diferentes” ou dizer “o azul e o verde não são a mesma cor”.

Dito isto, concordo que há uma grande ingenuidade nas definições de real de Galileu e Max Planck referidas. Mas é de perdoar-lhes essa ingenuidades. Afinal, Galileu e Max Planck, mesmo com as suas ingenuidades na definição do real, contribuíram muito mais, na minha modesta opinião, para o avanço do conhecimento humano do que muita gente com concepções talvez mais sofisticadas da realidade…
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* É difícil também aceitar a acusação que se faz à ciência de ser não-cumulativa – é óbvio que é cumulativa, porque quando as constatações anteriores relevantes para uma determinada investigação são suficientemente estáveis não se tenta verificá-las de novo, mas parte-se antes delas como pressupostos. Mais uma vez, a ciência não se distingue, nisto, de todo o conhecimento humano.

** Sim, porque é para avaliar o bom senso mais do que a cientificidade que serve a regra de Popper. Imaginem que, em vez da produção das formas irregulares dos verbos, o tema de investigação fosse outro: Foi a Siri que comeu o caju que estava em cima da casa de jantar? A minha “teoria”, por ter constatado que a Siri tinha sido a única pessoa a ir à sala depois de eu lá ter posto o caju e saber de antemão que a Siri é maluquinha por caju, era que sim. É refutável?? Claro que sim. Isso faz da minha teoria uma teoria científica? Talvez…

*** A frase é de Steven Pinker, na sua recensão do livro de divulgação científica The Canon, A Whirligig Tour of the Beautiful Basics of Science, de Natalie Angier (NYTimes, 27 de Maio de 2007). A frase completa de Pinker é: «Thankfully, [Natalie Angier] does not try to render something called “the scientific method” (a phrase that never passes the lips of a real scientist) but conveys the idea that science is just the attempt to understand the world with a special effort to ensuring that the things you say about it are true». [«Ainda bem que [Natalie Angier] não tenta expor uma coisa chamada “o método científico” (uma expressão que nunca passa pelos lábios de um verdadeiro cientista), mas transmite antes a ideia de que ciência é apenas a tentativa de compreender o mundo com um esforço especial para se certificar de que o que se diz sobre ele é verdade]. Ora aí está uma definição razoável do que fazem os cientistas.