26/01/10

Um pequeno aparte sobre democracia directa

Talvez a situação ideal em democracia fosse que toda a gente soubesse muito dos assuntos que se podem discutir no espaço público e relativamente a ele – que são muitos. Mas a realidade é bem diferente, e o que temos na prática – e que havemos de continuar sempre a ter – são pessoas que sabem umas mais e outras menos dos assuntos discutidos. É evidente que, nas decisões sobre a vida pública, é necessário, às vezes, ter em conta aspectos técnicos desconhecidos da grande maioria dos que participam na discussão; mas, para acreditar que a democracia é possível com algum sucesso, é preciso acreditar que as questões que mais importa discutir devem ser discutidas por todos, independentemente do seu grau de conhecimento técnico dessa questão ou da área em que ela se insere. Que é o que eu acredito.

Mas nem toda a gente acredita nisso. Há quem postule que a democracia se deve limitar a ser a escolha dos governantes pelos cidadãos, precisamente porque os próprios cidadãos não têm conhecimentos ou capacidade para governarem. Por outro lado, também há quem, mesmo não tendo da democracia esta visão “minimalista”, considere que uma há distinção essencial entre democracia participativa ou directa e democracia representativa ou indirecta. E o que quero defender aqui é que a ideia de democracia minimalista é paradoxal; e que não dois tipos de democracia, uma directa e outra indirecta. Por outras palavras, a “democracia” minimalista não é democracia, da mesma forma que, por exemplo, a “democracia” da Grécia clássica o não é, e toda a verdadeira democracia é, por definição, directa.

A questão de base é esta: se há cidadãos com capacidades para governar e outros apenas com capacidade para eleger os que governam, quem decide quem são uns e os outros? Que garantia tenho eu de que o facto apenas de se candidatar a um cargo público serve para definir essa capacidade? E em que é que a capacidade de escolher alguém que apresenta um programa de governação da coisa pública se distingue da capacidade de governar a coisa pública? Quer dizer, se eu duvido que alguém tenha a capacidade de governar, por que não hei-de também duvidar que essa pessoa tenha a capacidade de escolher quem o governe?

A resposta a estas interrogações parece-me tão óbvia que nem vou mais longe na argumentação que poderia ser extensa: não há solução senão assumir, como eu assumo, que toda a gente tem o mesmíssimo direito (já que a questão da capacidade, como vimos, não se pode pôr, a não se ser que se assuma alguma antidemocrática prerrogativa a priori) de participar na vida política a todos os níveis; que a democracia ou é total ou não é. O sentido último da democracia é ser directa: todos podem participar exactamente ao mesmo nível na tomada de decisões.

A democracia, para o ser de facto, só pode assumir formas representativas por necessidade de ordem prática, não porque a representatividade seja desejável por si. Se, numa associação de, digamos, 5 mil membros, já é difícil realizar uma assembleia-geral, é óbvio que numa associação com vários milhões deles, como costumam ser os estados, há que eleger representantes. Mas é muito diferente a representatividade ser uma necessidade da democracia em instituições muito grandes de a representatividade ser um traço essencial da democracia. Para o dizer com as palavras de André-Pierre Taguieff, que o diz muito bem, “a ideia de democracia directa deve ser conservada como horizonte, ou até mesmo como ideia reguladora, de toda a prática democrática.”

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