24/03/10

A arte e o resto

Na discussão de um post do blogue De Rerum Natura, afirma Desidério Murcho: «(…) Os escritores de historietas e poeminhas não contam como produção cultural sofisticada. Sei que isto é uma opinião polémica porque as pessoas tendem a pensar que romances e poesia constituem o zénite da sofisticação intelectual, mas não concordo com esta ideia. A literatura não tem, nem de perto nem de longe, a sofisticação cognitiva da física ou da filosofia ou da matemática.»

Não só estou de acordo com a afirmação de Desidério Murcho como acho que, sobretudo num país como Portugal, é necessário insistir nesta ideia. E a quem torcer o nariz às expressões “sofisticação intelectual” ou “sofisticação cognitiva”, proponho um outro olhar sobre a questão: comparadas com a produção científica, filosófica, matemática e afins, a literatura e as artes não têm importância nenhuma para a vida das pessoas (já aqui falei uma vez de uma parte desta questão).

Como o que vou dizer a seguir se baseia apenas numa impressão que não foi testada, espero, sinceramente, que apareça alguém a mostrar-me que se trata de uma impressão enganadora, mas, quando passeio ao acaso pela blogosfera made in Portugal, encontro centenas, milhares de páginas a falar de artes e literatura, mas muito poucas a falar de ciências, filosofia, matemática, história e economia... E eu, quando vejo tantas pessoas tão preocupadas com o analfabetismo literário dos portugueses sem se se preocuparem com o analfabetismo científico, tenho mesmo de pasmar. Em que é que contam mais para a vida das pessoas conhecimentos sobre epopeias, romances e poemas do que sobre lógica, estatística e biologia, por exemplo? É difícil compreender.

Não tenho nada contra novelas e poemas, notem. Até os escrevo. Mas, talvez por isso mesmo, tenho consciência de que (agora é que me vão cair todos em cima*) é muito mais fácil escrever e ler literatura do que escrever e ler ciência ou filosofia. Mais fácil e sem efeito na vida da gente.

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* Primeiro, tinha escrito “agora é que me vão cair tordos em cima”, que até era engraçado, mas decidi não deixar a gralha, perdão, o tordo. Conseguem identificar um tordo e uma gralha? Ah bom, também mal feito fora…

4 comentários:

Desidério Murcho disse...

Obrigado pela referência, Vítor. E pelo testemunho. Evidentemente, concordo.

E acrescento uma tentativa de explicação: o desequilíbrio entre o interesse pelas literatices (geralmente, de qualidade duvidosa) e a falta de interesse por outros aspectos mais sofisticados da vida intelectual é o resultado directo da falta de interesse genuíno na vida intelectual. Explico: ao passo uma pessoa se pode dar ares de superioridade social, sem grande trabalho, lendo umas coisas vagas ao fim-de-semana, não pode fazer o mesmo com a ciência ou a filosofia, ou pelo menos não é tão fácil (no caso da filosofia, lamento dizê-lo, há também quem a transforme em entretenimento de fim-de-semana, feito de jogos de palavras palermas).

Não posso avançar provas para dar plausibilidade à minha especulação, a não ser a minha observação assistemática das pessoas, que me leva a concluir que o interesse pela dita cultura é só para inglês ver; o único interesse real é a suposta superioridade social. É-me difícil conceber uma pessoa com interesses intelectuais genuínos que ao mesmo tempo os limite à literatice, desprezando um conhecimento, ainda que elementar, de cosmologia, por exemplo.

Anónimo disse...

Boa noite,

Eu descordo com o bloguista e a sua referência.
Seria uma ocupaçäo à longo prazo tentar defender a arte no tipo de questöes aqui levantadas.

Em traços largos so posso dizer que o Sr.Victor, se me permite, e o Sr.Desidério, estäo é a manifestar uma autentica negaçäo à diversidade intelectual.

Eu até hoje me assumo como um grande amante de 4 manifestaçöes artisticas: Artes visuais ("Plasticas"); literatura; Musica e cinema.
A altura da formaçäo artistica que tive, sou um consumidor näo passivo dessas artes, e ao mesmo tempo sou muito exigente na qualidade do que escolho para alimentar a minha alma, isto é, näo aceito consumir uma obra de arte que de arte nada tem, mesmo que seja uma obra vencedora das mais altas nomeacöes.

Voltando ao assunto, se a nocividade da criaçäo de alguma moda casou até suicidios, sem nos esquecermos que também alguns escritores do romantismo se suicidaram, as ciências exactas que os senhores glorificam, säo também responsaveis de uma grande desgraça humana.
Foi se baseando numa FILOSOFIA de uma raça pura que os NAZI cometeram a grande chacina, tendo usado muitos produtos oriundos da FISICA,QUIMICA e mais ciências.
Näo sei se os nomes HIROSHIMA e NAGASAKI vos dizem alguma coisa.

A arte e a ciência mudam a vida dos individuos, mas näo da mesma ordem.

Um individuo que desnecessariamente manifesta a sua "Sofisticaçäo intelectual" por ter consumido näo sei quantas obras de arte, esse näo percebeu a mensagem, de arte näo percebe absolutamente nada, assim, nada de o tomarmos como modelo para invalidarmos o que de bom as artes nos proporcionam.
Assim como näo devemos proclamar a inutilidade das ciências por apenas julgarmos a onde elas säo uma desgraça.

Para evitar ir mais longe de onde jà fui, concluo dizendo: Existe muita gente que faz arte mas hà muito poucos artistas, e muito poucos apreciadores da a arte. Jà os que querem fazer parecer, esses hà a sobrar.

Félix







Näo sou amante das telenovelas, publicidade, moda e outro muito "lixo" que passa nas televisöes.

Vítor Lindegaard disse...

Caro Desidério e caro Félix,

Muito obrigado pelos vossos comentários. Estou de acordo com as observações do Desidério e não tenho nada a acrescentar-lhes.

Relativamente aos comentários do Félix, porém, há alguns esclarecimentos que quero fazer:

Longe de mim a ideia de negar a diversidade intelectual. O que eu critico é que haja, precisamente, e sobretudo num país como Portugal, um excesso de concentração de actividade intelectual e de interesse nas áreas artísticas.

Como disse, não tenho nada contra as artes, apenas me surpreende que elas sejam mais valorizadas do que outras áreas de actividade intelectual que são 1) mais exigentes em termos de reflexão (cognitivamente mais sofisticadas, para utilizar a expressão de Desidério Murcho) e 2) mais importantes para a vida real de toda a gente.

Presumo que a história dos suicídios venha a propósito da referência a Werther, num texto antigo para o qual pus um link neste post. Mas leu-me mal, porque eu não digo que as obras literárias são nocivas – eu digo que elas são sem efeitos na vida das pessoas, e referia precisamente Werther de Goethe e On the road de Kerouac como possíveis (possíveis…) excepções, porque talvez tenham contribuído para influenciar estilos de vida… Talvez. Portanto, as obras literárias são como o chá de limão: não fazem bem nem mal…

A ciência também não faz, enquanto conhecimento apenas, nem bem nem mal. Mas é evidente que o conhecimento tem aplicações práticas, que podem ser, conforme os casos, boas ou más. O facto de o conhecimento científico poder ser usado de forma prejudicial devia ser mais uma razão para as pessoas se interessarem por ciência, para poderem avaliar os prós e contras de inovações tecnológicas em sentido lado, pelo que só me está a dar razão.

Melhores cumprimentos

Anónimo disse...

Bom dia Sr.Vitor,

Fiquei muito feliz ao ler a sua posiçäo em relacçäo ao meu comentàrio. Peço-lhe imensas desculpas se por uma mà percepçäo do que escreveu observei graficamente mal.
Nunca desejo escrever para perturbar a boa disposiçäo dos terceiros.

Sinceramente, tenho apreciado muitos dos pontos de vista que o senhor tem aqui postado.

Depois de reler, a postagem e o seu ùltimo comentàrio, percebo, näo sei se bem, que a sua posiçäo està mais para a literatura do que para as demais manifestaçöes artisticas, e também por se dar mais atençäo à arte do que as outras àreas do saber que säo mais eficazes para o desenvolvimento mais amplo de um pais.
O que me levou a comentar foi o facto de ter notado algumas palavras depreciativas no que toca às artes. Mas näo sei se as tais palavras säo mesmo depreciativas ou eu é que de uma maneira inconsciente escolhi assim percebé-las.

Consciente da subjectividade com que valoramos as coisas, digo-lhe que para mim as artes tambem têem um efeito na vida das pessoas

Respeito a sua posiçäo em relacçäo às artes, bem como a sua observaçäo no que respeita ao facto de se privilégiar mais as artes do que as outras àreas intelectuais.
Näo sou contra a priorizaçäo do que é mais urgente, sobretudo nos paises economicamente menos desenvilvidos.

Antecipo o meu perdäo caso escreva de uma maneira confusa.

Os meus melhores cumprimentos
Continuaçäo de um bom dia

Félix