10/05/10

Por o Sr. Elias não poder vir…

Se há consultor linguístico que gosto de ler (já o disse aqui uma vez) é Cláudio Moreno, em Sua Língua. Não posso, porém, estar de acordo com o que diz no seu artigo “a hora DA/DE A onça beber água” sobre a contracção de proposição com o determinante de um sujeito de infinitivo.

Segundo este texto, a regra da proibição de contracção da preposição que rege a oração infinitiva com o determinante do sujeito do infinitivo [não “é hora da onça beber água”, mas sim “é hora de a onça beber água”] teria a sua origem num gramático do séc. XIX chamado Grivet, tendo depois sido difundida pelo respeitado Eduardo Carlos Pereira e, a partir daí, repetida por muitos autores de livros escolares». E continua Cláudio Moreno a explicar:
Podemos dizer que aquela velha regra nasceu de um silogismo que parece inatacável:
(1) As preposições sempre subordinam o termo que vem à sua direita (termo regido).
(2) O sujeito, assim como o predicado, é um dos termos “nobres” da oração e não pode, por isso mesmo, estar subordinado.
(3) Logo, o sujeito jamais poderá vir regido por preposição.
Seguindo esse raciocínio, uma frase como “hoje é dia DELE voltar para casa” seria inaceitável, porque o sujeito “ele” estaria regido pela preposição “de”; a forma adequada seria “hoje é dia DE ELE voltar para casa”.
Segundo Cláudio Moreno, tudo isto «parece muito lógico», mas assenta numa confusão:
Em “hoje é dia DELE voltar para casa”, o “de” não está regendo o pronome “ele”, mas sim toda a oração infinitiva, da qual o pronome é o sujeito: Hoje é dia DE + [ele voltar para casa]. Tanto Luft quanto Bechara perceberam que o equívoco dos velhos mestres nasceu da confusão entre sintaxe e fonética. A transformação da frase “a hora DE ELE voltar” em “a hora DELE voltar” é de ordem fonética (é a tradicional elisão), mas não afeta a ordem sintática (não houve a subordinação de “ele” a “dia”).
Quem me conhece, sabe bem que não sou exactamente um purista e não é, certamente, por a posição de Cláudio Moreno ser menos canónica que discordo dela. Aliás, não me choca nada que se faça essa contracção e, se não vou aqui recomendar que se faça, também não me ponho a arrancar os cabelos em desespero nem a gritar ó da guarda se alguém a faz. A razão para eu discordar de Cláudio Moreno é de natureza propriamente linguística: estou convencido de que há uma barreira estrutural a essa contracção, do mesmo tipo da que impede, por exemplo, que going to se contraia em gonna em «I’m goin' to Kansas City / Kansas City here I come», embora se possa contra contrair em «I’m gonna be standin' on the corner / 12th Street and Vine» (para usar um exemplo clássico, se não estou em erro de Noam Chomsky, adaptado aqui à famosa canção de Jerry Leiber and Mike Stoller.

Não conheço a demonstração de Sousa da Silveira, referida por Cláudio Moreno, de que, na fala, é obrigatória a elisão que transforma a frase “a hora DE ELE voltar” em “a hora DELE voltar”, mas parece-me que, pelo menos em português europeu, o segmento de ele voltar, pronunciado [diêlvoltar] é perfeitamente aceitável (o que acham os leitores da Travessa?). Agora, se a barreira estrutural que eu defendo que existe é, por razões de ordem fonética, pouco perceptível, ou mesmo completamente imperceptível, em frases como “é hora de ele voltar”, é clara noutro tipo de frases. Digo:

Por o Sr. Elias não poder vir, tive de chamar outro canalizador,

mas nunca ouvi, em variante nenhuma do português,

* Pelo Sr. Elias não poder vir, tive de chamar outro canalizador.

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