04/06/10

Sociedades ideais e ideais de sociedade

Sob o pseudónimo de John Freeman [1], George Orwell publicou no Tribune, a 20 de Dezembro de 1943, um texto intitulado “Can socialists be happy?”, em que discute modelos de sociedade ideal, incluindo, como o título do ensaio indica, o modelo de sociedade ideal para os socialistas – a felicidade a que pretendem chegar.

Uma das conclusões a que Orwell chega é que «parece que os seres humanos não conseguem descrever, nem talvez imaginar, a felicidade senão em termos de contraste [2]» com o seu sofrimento. Orwell constata que as descrições do Paraíso, tanto cristãs como muçulmanas, deixam claro que o Céu é apenas o que a Terra não é: descanso, riqueza ou mulheres para todos – da mesma forma que o Natal dos pobres ou a chegada da Primavera são verdadeiros momentos de felicidade, porque são a interrupção de uma realidade de escassez e desconforto. Ninguém parece ter sido capaz de descrever pela positiva o Paraíso, «se bem que o Inferno ocupe um lugar respeitável na literatura e tenha muitas vezes sido descrito de forma extremamente minuciosa e convincente»: «Quase todos os escritores cristãos que lidam com o Paraíso ou dizem francamente que é indescritível ou invocam uma imagem vaga de ouro, pedras preciosas e o interminável canto de hinos”. Por isso, «é um lugar comum que o Paraíso cristão, como é normalmente descrito, não atrairia ninguém».

O mesmo a utopia. Centrando-se sobretudo em As viagens de Gulliver, Orwell passa em revista este género narrativo-filosófico, para concluir que, se bem que eficazes na crítica à realidade em que foram escritas, «[as utopias favoráveis] são invariavelmente pouco apetecíveis, e têm também, normalmente, falta de vitalidade»: os «nobres» Houyhnhnms, os habitantes da sociedade “perfeita” de Jonathan Swift, «são, apesar do seu elevado carácter e do seu infalível senso comum, criaturas entediantes. Como os habitantes de várias outras Utopias, o que os preocupa mais é evitar a confusão. Vivem vidas rotineiras, passivas, “razoáveis”, livres não apenas de qualquer tipo de conflito, desordem ou insegurança, mas também de “paixão”, incluindo o amor físico. Escolhem os seus parceiros com base em princípios eugénicos, evitam excessos de afecto e parecem de alguma forma satisfeitos de morrer quando chega a sua altura». E «mesmo um grande escritor como Swift, (…) quando tenta criar um super-homem, deixa-nos apenas com a impressão que menos nos queria dar, a de que os fedorentos Yahoos tinham neles mais possibilidades de desenvolvimento do os esclarecidos Houyhnhnms». Dito de outra maneira: «Todas as Utopias “favoráveis” parecem iguais no postular de perfeição sendo incapazes de sugerir felicidade» [3].

O que Orwell nota é o que notam vários estudiosos da utopia: a utopia é mais negativa do que positiva, ou seja, ela é mais negação de um estado de coisas do que uma proposta política de um estado de coisas outro. Mas pode argumentar-se também que não é só o seu carácter desenxabido, rotineiro, entediante que é criticável na “perfeição” utópica, que há verdadeiros horrores que, mais ou menos em germe, mais ou menos perfeitamente desabrochados, percorrem a utopia clássica – e se vieram, nalguns casos a materializar em ditaduras utopizantes. A utopia negativa, ou distopia, como muitas vezes se lhe chama, não é, pois, essencialmente diferente das “utopias favoráveis”. O que muda é antes o olhar sobre uma mesma proposta: o ideal de geometria, ordem e racionalidade deixou de ser encarado como desejável. Contemos entre esses horrores a uniformização absoluta (mesmo no sentido literal de uso de uniforme); a absoluta falta de privacidade; a férrea doutrinação e o culto do deificado fundador da utopia; a supressão radical de instintos, emoções, divertimentos e tudo o que não tenha um carácter “prático” e “racional”; o isolamento do resto do mundo e a arrogância relativamente aos outros [4]. Qual então a conclusão de Orwell? Como responde à pergunta que se coloca no título?

«É óbvio que os [actuais socialistas] não têm como objectivo o tipo de mundo que Dickens descreveu, nem, provavelmente, nenhum mundo que ele conseguisse imaginar. O objectivo socialista não é uma sociedade onde tudo acaba bem, porque simpáticos cavalheiros oferecem perus. Que finalidade é a nossa se não uma sociedade na qual a caridade seja desnecessária? Queremos um mundo onde Scrooge, com os seus lucros, e Tiny Tim, com a sua perna tuberculosa, sejam ambos impensáveis. Mas significa isso que temos como objectivo alguma utopia onde a dor e o esforço não existam? Correndo o risco de dizer algo com que os editores do Tribune possam não concordar, sugiro que o verdadeiro objectivo do socialismo não é a felicidade. A felicidade sempre foi um subproduto, e, ao que sabemos, pode continuar sempre a sê-lo. O verdadeiro objectivo do socialismo é a fraternidade humana. (…) O pensamento socialista tem de lidar com previsão, mas só em termos gerais. Muitas vezes, há que apontar para objectivos que só vagamente se podem divisar. Neste momento, por exemplo, o mundo está em guerra e quer paz. O mundo não tem, contudo, experiência da paz, nem nunca teve, a não ser que o Bom Selvagem tenha existido. O mundo quer algo que tem uma vaga consciência de que pode existir, mas não pode definir com rigor. Neste dia de Natal, milhares de homens esvair-se-ão em sangue nas neves da Rússia ou afogar-se-ão em águas geladas ou rebentarão uns com os outros em ilhas pantanosas do Pacífico. Crianças sem lar andarão a esgravatar à procura de comida entre as ruínas das cidades alemãs. Tornar impossível esse tipo de coisas é um bom objectivo. Mas dizer em pormenor como seria em mundo de paz é outra coisa».

Orwell é claro, mas nem por isso é fácil entender qual o seu programa político concreto a longo prazo – a sua visão, como agora se diz. Orwell acaba por fazer como os utopistas e os místicos religiosos: definir negativamente o bem, apenas como negação do mal que se conhece, da infelicidade por que se passa. Acredita que não é mesmo possível fazer de outra maneira e então não se deve entender como crítica a sua constatação do mesmo procedimento nos autores e textos que refere. Sabemos que «o verdadeiro objectivo do socialismo não é a felicidade», mas a única expressão que define pela positiva o programa político de Orwell é «human brotherhood». Que se pode concluir daqui?

O que me parece importante reter da reflexão de Orwell é que é necessário definir os objectivos políticos como princípios éticos suficientemente abstractos para serem inalcançáveis e poder ser permanentemente discutida a sua aplicação prática. Orwell fala do ideal socialista, mas esta minha proposta aplica-se, naturalmente, a qualquer ideologia política. Em política, qualquer pretenso “realismo” implica dogmatização e desmoralização [5] da própria política, no sentido em que deixam de estar em discussão ideias do que é bem e mal, do que se deve ou não fazer, para se limitar a política à discussão estratégica de como se sujeitar melhor à “realidade”, ao “inevitável”, quer se trate do rumo inelutável da História, das insuperáveis forças do Mercado ou dos valores tradicionais de uma sociedade. Ora, a valorização de forças “superiores” à vontade das pessoas de decidir as regras que devem reger as sociedades onde vivem é, com rigor, a despolitização da política. O “realismo” pode também levar a outra visão desmoralizadora da política, um perspectiva maquiavélica e relativista, em que se escusam os argumentos morais para as acções políticas, porque se encara a política como sendo apenas a defesa de interesses. E outra vantagem da definição de um projecto político a partir de ideais éticos inatingíveis é a recusa das propostas concretas de organização social inalteráveis, porque “perfeitas”, porque nos são dadas por líderes religiosos ou políticos “iluminados” (a tal soberba epistémica de que fala Desidério Murcho, ver abaixo) – que, por mais visionários que sejam ou possam ter sido, nunca podem, obviamente, ver, da História, senão o que o seu tempo os deixa ver…

***

Foi Desidério Murcho, que me deu a conhecer este texto de Orwell, no post “Orwell sobre a felicidade”, do seu blogue Crítica: blog de filosofia. Desidério Murcho remete aí para um texto seu, “Soberba epistémica, estatismo e legislação”, publicado a 17 de Janeiro de 2010 na Crítica: revista de filosofia.

Neste texto, Desidério Murcho defende a ideia liberal (no sentido político, e não necessariamente no sentido económico, especifica ele) de que, uma vez que «parece realmente impossível imaginar o que seria uma sociedade perfeita», como Orwell demonstra no seu ensaio, «devemos exercer alguma cautela perante todas as doutrinas que pretendam impor politicamente essa imaginada perfeição social — porque é diminuta a probabilidade de ser realmente perfeita. Se queremos melhorar as coisas, o melhor é fazê-lo por reformas sucessivas e perfeitamente delimitadas e concretas, não almejando a reestruturações gigantescas a partir do zero. E esta, parece-me, é a diferença radical entre a mentalidade estatista napoleónica, presente hoje em muitas pessoas, e a mentalidade liberal». E continua, explicando que diferenças fundamentais considera haver entre estas duas mentalidades:

«Do ponto de vista liberal, devemos legislar apenas quando temos boas razões para crer que não legislar seria realmente pior. Isto significa que o liberal (…) precisa que lhe mostrem as consequências causais maléficas concretas de não legislar; meras ideias vagas sobre vantagens sonhadas da legislação são vistas com desconfiança. Já o estatista não precisa de mostrar coisa alguma em concreto: basta o sonho de conquistas futuras, de uma perfeição resplandecente, de um futuro brilhante, e desata a legislar tudo e mais alguma coisa, para reconstruir a sociedade a partir do zero. É desta mentalidade que emerge a burocratização da vida contemporânea, e as grandes ditaduras do séc. XX — marxistas, fascistas ou nazis. A lei, o regulamento, a legislação são vistas pelo estatista napoleónico como instrumentos políticos para reformular a sociedade a partir do zero, de uma maneira mais “científica,” mais organizada, mais impessoal. Os seres humanos, membros dessa sociedade, acabam ironicamente por ser vistos como obstáculos à realização da perfeição social — e segue-se a polícia política, as perseguições, a higienização da vida pública.»

Parece-me importante notar que a posição de Murcho não é, porém, uma posição conservadora, no verdadeiro (e muitas vezes esquecido) sentido da palavra:

«Não se segue daqui um elogio da tradição pela tradição. Muitas tradições estão erradas e precisam de ser mudadas. Pensar que tudo o que herdámos nas nossas tradições é perfeito é tanto uma ilusão epistémica quanto pensar que podemos imaginar agora a partir do zero uma sociedade perfeita. O que precisamos é de casuística aristotélica, e não de axiomáticas hegelianas. Podemos e devemos rejeitar tradições por serem injustas, mas devemos igualmente desconfiar das utopias políticas. A mesma dose módica de cepticismo quanto aos poderes epistémicos dos seres humanos que é a cura para a soberba axiomática de querer recomeçar do zero é também a cura para o tradicionalismo cego que aceita tudo o que um ancião escreveu ou determinou no passado primevo.»

Concordo, no geral, com a perspectiva de Desidério Murcho, porque também não confio em ideais prefabricados de sociedade, também me aterrorizam as utopias geométricas (e, como ele muito bem diz, em última análise anti-humanas) e também repudio as formas concretas que estes projectos de utopia tomaram e possam vir a tomar. Há, no entanto, alguns pontos em que tenho uma opinião diferente da dele: como já expliquei atrás, não é o louvor do liberalismo que eu infiro do texto de Orwell, mas sim a defesa da abstracção e moralização dos ideais políticos; e não concordo que haja uma oposição entre estatismo e “reformas sucessivas e perfeitamente delimitadas e concretas, não almejando a reestruturações gigantescas a partir do zero”, isto é, reformismo. O reformismo opõe-se a revolução, não a estatismo. Ao abandonarem o modelo marxista [6] que preconizava a revolução como única forma de transformar a sociedade, Hjalmar Branting ou Thorvald Stauning, para dar o exemplo de dois ideólogos fundamentais do modelo social-democrata escandinavo, não estavam a abandonar uma forte ideia estatista, bem pelo contrário. E criaram, com o seu estatismo forte, as bases para sociedades que, embora longe de perfeitas, são das mais justas, mais livres, mais prósperas e mais felizes que a História humana conheceu – o que não quer dizer que eu considere a social-democracia escandinava o modelo político perfeito, nem sequer o único modelo possível para chegar aos mesmos resultados, até porque, como decorre naturalmente do que defendo neste texto, nenhuma sociedade concreta deve servir de modelo político.

Em princípio, também concordo plenamente com a ideia de que «devemos legislar apenas quando temos boas razões para crer que não legislar seria realmente pior», mas a discussão desta ideia e sobretudo a aplicação do princípio são extremamente complexas, porque é difícil estabelecer quando há «boas razões para crer que não legislar seria pior». A discussão, que passa também pela análise de experiências outras que não apenas as da sociedade a que a legislação diz respeito, prende-se, em última instância, com a concepção da natureza humana (velha e fundamental discussão!), que implica maior ou menor valorização da confiança relativamente ao controlo ou vice-versa… O que é curioso é que confiança e controlo, em vez de se excluírem, parecem caminhar antes de mãos dadas…

____________________________________________________________

[1] Assumirei aqui que foi Orwell que escreveu o artigo. Peter Davison, editor de Complete Works of George Orwell (London: Martin Secker & Warburg Ltd, 1998, 20 Volumes), justifica assim a inclusão do texto na obra, onde aparece com o título “Why Socialists Don’t Believe In Fun”: «A folha de pagamentos de George Orwell para o dia 20 de Dezembro de 1943 regista a soma de 5 libras e meia, referente a um artigo especial de 2 000 palavras para o Tribune. Este artigo nunca foi descoberto no Tribune com o nome de Orwell, mas parece agora certo que se trata de ensaio intitulado “Can Socialists Be Happy?”, por “John Freeman”». (Ver aqui, ao fim do texto, o resto da nota de Peter Davison.)

[2] Todas as traduções do texto de Orwell são minhas.

[3] Esta distinção, que alguns talvez achem contraditória, não é incomum. Estou a pensar, por exemplo, no conto “A perfeição”, de Eça de Queiroz, em que Ulisses recusa, por demasiado perfeita, a utopia da ilha de Ogígia – falta-lhe a imperfeição essencial que define a Humanidade. O processo retórico que funda esta desvalorização da “perfeição” é não usar o termo no seu sentido subjectivo habitual, que dá conta de um alto grau de aprovação, e usá-lo antes como descrição objectiva de um estado de coisas – que não se aprova, claro...

Outra coisa que me vem imediatamente ao espírito quando leio a crítica de Orwell ao tédio da Utopia é uma famosa frase de Raoul Vaneigem, que li na minha adolescência, mas de que nunca me esqueci (embora para a citar sem erros tenha tido de fazer uma pequena pesquisa na internete, claro está…). Em Traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations, o situacionista Vaneigem critica implicitamente os modelos de sociedade propostos pela esquerda tradicional: «Não queremos um mundo onde se troque a certeza de não morrer de fome pelo risco de morrer de tédio.»

[4] Pormenor frequentemente omitido na reflexão sobre a utopia: as utopias nascem muitas vezes da subjugação ou expulsão dos povos primitivos que habitavam antes a região. A ideia de que a utopia do período clássico é também uma justificação da colonização é desenvolvida por Christian Marouby em Utopie et primitivisme : essai sur l'imaginaire anthropologique a l'âge classique, Paris: Seuil, 1990.

[5] Com todo o rigor, o uso do termo desmoralização não é correcto, porque um dogma indiscutível é também uma proposta de código de comportamentos e, portanto, uma proposta moral em sentido lato, mas uso aqui desmoralizar no sentido de “furtar à discussão ética”.

[6] Isto é perfeitamente marginal para esta discussão, e é por isso mesmo que aparece em nota de rodapé, mas, se designarmos com a palavra marxismo a própria teoria de Marx e não uma tradição de programas políticos que se dizem seus seguidores, o marxismo é (ao contrário do que normalmente defendem as pessoas que se dizem marxistas e os seus críticos), uma teoria antiestatista de tipo anarquista. Um estudioso da obra de Marx, Lucien Séve, espanta-se, num texto que traduzi há uns anos (Mudar o Futuro, Lisboa: Campo da Comunicação, 2004), com uma curiosa omissão pela totalidade dos “marxistas” de uma ideia central do pensamento de Marx (e que é comum a outros pensadores da sua época):

«Com as precisões de Marx na sua Crítica ao programa de Gotha em 1875, o socialismo é uma forma social intermediária, uma pura transição para o comunismo», «em que será dado “a cada um conforme as suas necessidades” e em que a própria imposição que o Estado constitui acabará por desaparecer». «E eis então algo», acrescenta Séve, «que é de nos deixar realmente estupefactos: durante a sua longa existência – mais de 70 anos no caso da União Soviética –, não só nenhum país socialista passou para o comunismo, como também nem sequer, exceptuando alguns breves discursos de Khrutchov por volta de 1960, encarou a possibilidade de concretizar, nem que fosse parcialmente, uma tal transição. É este, se pensarmos bem, o mais extraordinário dos enigmas do marxismo: concebido expressamente como transicional, o socialismo recusou-se em todo o lado, de uma forma obstinada, a transitar para o comunismo».

Séve refere ainda que Engels, no prefácio ao Manifesto do partido comunista, explica que «Marx e ele próprio não poderiam ter intitulado socialista o dito manifesto», porque «socialismo caracterizaria uma atitude não só pequeno-burguesa e propensa às cedências, mas também estatista», que não era, portanto, a deles, mas sim a «tradição bem enraizada da Associação dos Trabalhadores Sociais-Democratas Alemães dirigida por Lassalle, que marcou toda a social-democracia. A ideia comunista, pelo contrário, é à partida operária, radical, mas também antiestatista».

Evidentemente, pode-se atribuir ao próprio Marx a culpa desta reiterada omissão pelos seus seguidores, uma vez que, como os pregadores cristãos nunca chegam a descrever o Céu, Marx nunca chega a descrever a sociedade sem Estado a que a História conduzirá o mundo…

O problema é sempre o mesmo: interrogado pelo seu discípulo sobre como é o estado de perfeição que surge pela anulação do Eu e sobre quem estará a contemplar o mundo como ele de facto é quando deixar de ser o engano da Mente a deturpar a percepção da realidade, o mestre zen limita-se, como única resposta, a descalçar um sapato e a colocá-lo em cima da cabeça. Pois…

1 comentário:

Desidério Murcho disse...

Muito obrigado pela lúcida discussão!