14/02/11

Duas histórias de tradução e de tradução de traduções

[A primeira parte do que aqui vem a seguir é adaptada de um dos primeiros posts desta Travessa do Fala-Só, de Dezembro de 2007, que eu apaguei na altura em que resolvi que aqui não se falava mais de literatura. Como, armado em ONU, acabei por não ligar grande coisa a essa minha própria resolução, decidi que posso desapagar agora esse texto. É que ele encaixa bem, acho eu, noutro que decidi começar a escrever ontem, quando, pelas razões que explico mais adiante, fui obrigado a desistir de uma tradução que tanto me apetecia fazer. Às histórias de tradução, então:]

I
Deixem‑me contar‑vos uma coincidência engraçada. Naquela grande colectânea de poesia de “todos” os tempos e lugares que a Assírio & Alvim editou há uns anos, Rosa do Mundo, há só dois poemas dinamarqueses. O segundo dos dois, e penúltimo da antologia, é de um dos mais famosos poetas da Dinamarca, Henrik Nordbrandt. Agora, vejam lá, das centenas e centenas de poemas que ele tem escritos, tinha de ser escolhido para a Rosa do Mundo precisamente um dos poucos poemas dele que eu tinha traduzido para português em 1997:

Pragmata

As coisas que estavam aqui antes da tua morte
e as coisas que vieram depois:

Às primeiras pertencem, antes de mais,
a tua roupa, as jóias e as fotografias
e o nome daquela de quem te deram o nome
e que também morreu jovem...
Mas também uns quantos recibos, a disposição
de um certo canto do rés-do-chão
uma camisa, que me passaste a ferro
e que eu guardo, meticulosamente
debaixo da pilha de camisas
certas peças musicais, e o cão
sarnento, que ainda se perfila
e ri estupidamente, como se estivesses aqui.

Às segundas, pertencem a minha nova caneta de tinta permanente
um perfume familiar
na pele de uma mulher que eu mal conheço
e a lâmpada nova que eu pus no candeeiro da mesinha de cabeceira
à luz do qual leio sobre ti
em todos os livros que tento ler.

As primeiras lembram‑me que exististe
as últimas que já não existes
É essa quase ausência de diferença
que me é difícil suportar

A tradução de José Alberto Oliveira que vem na Rosa do Mundo (e que se encontra online
), de facto, pouco difere da minha. Por curiosidade, resolvi comparar ambas com o poema original, mas, como não o tinha à mão (tinha traduzido de um livro emprestado, entretanto devolvido), procurei-o na internet. E, quando o encontrei, descobri logo como se explicavam as diferenças entre a minha tradução e a da Rosa do Mundo: é que, juntamente com o poema em dinamarquês, apareceu-me uma tradução em inglês e tornou-se claro que a tradução de José Alberto Oliveira não tinha sido feita directamente do dinamarquês, mas sim da tradução inglesa [1].

Agora, parece-me que as diferenças mínimas de significado entre as duas traduções não modificam praticamente o poema – ou a sensação que o leitor tem à sua leitura, se quiserem. O que me chamou mais a atenção foram as diferenças na forma dos dois versos finais. Enquanto eu traduzi

É essa quase ausência de diferença
que me é difícil suportar,

José Alberto Oliveira traduziu

Que sejam quase indistinguíveis
é o mais difícil de suportar.

A tradução de José Alberto Oliveira, embora menos literal [2], é muito mais fluida e mais… portuguesa. Prefiro-a sem dúvida à minha.

Uma moral da história é que, afinal, isso que se costuma dizer de ser muito difícil traduzir poesia, porque é um tipo de texto tão subjectivo, nem sempre é verdade. Se a minha tradução é muito, muito parecida com a que vem na Rosa do Mundo, é só porque nos limitámos, José Alberto Oliveira e eu... a traduzir o que lá estava! O que há é poesia fácil de traduzir, como este poema, e poesia muito difícil de traduzir. Como a prosa, como tudo o resto. E diversos graus de qualidade de tradução: pode traduzir-se bem, mal, assim-assim. Pois…

E outra moral da história é que não há que desprezar, por principio, as traduções de traduções: podem até, nalguns casos, ser melhores do que uma tradução directa do original.

II
Uma vez, vi uma conversa com o linguista Claude Hagège num programa de televisão. Quando o apresentador do programa lhe perguntou se era verdade que falava umas cinquenta línguas, Hagège respondeu-lhe que isso era um enorme exagero – falava cerca de vinte; as outras, conhecia-as, compreendia-as, sabia lê-las, mas não se podia dizer que as falasse…  [Refiro o episódio de cor, por isso não me citem – não garanto que os números sejam exactamente estes, mas a conversa não andou muito longe disto.]

E a inveja que temos todos de gente assim… Tive uma vez um aluno francês que me disse que o seu maior sonho era um dia conseguir ler Dostoiévski em russo (não sei se conseguiu ou não...). Todos gostávamos de ler Dostoiévski em russo, não é?, ou, sei lá, Mika Waltari em finlandês (eu gostava!). Mas mortaizinhos comuns que somos, hélas!, falamos duas ou três línguas, se as falamos, e quando queremos ler textos de línguas que desconhecemos, o que podemos fazer senão recorrer a traduções? E o mesmo quando queremos traduzir textos de línguas que desconhecemos: temos de traduzir de traduções.

Ontem de manhã, encontrei um poema de que gostei e fiquei com vontade e o traduzir. O poema era do grande poeta chinês Wáng Wéi (699-761) e conheci-o numa tradução castelhana. Podia tê-lo traduzido dessa tradução, sem mais, mas achei que, para conseguir a melhor tradução possível, devia comparar várias versões, se as houvesse. E havia mesmo. Encontrei outras três traduções online [3]: mais uma em castelhano e duas em inglês.

Mais valia que não me tivesse posto a comparar traduções, porque o resultado desse trabalho foi desistir de traduzir o poema. É que as traduções diferem não só na forma, mas também no significado (sobretudo na interpretação do último verso, mas não só) e eu fiquei sem saber o que traduzir na minha tradução...

A primeira tradução que vi, de Pilar González España, foi esta (escuso-me de a traduzir, esclarecendo só que sauces mortecinos significa “salgueiros mortiços”):

nueva casa
cerca de los muros de Meng

viejos árboles
algunos sauces mortecinos

me pregunto

quién habitará este lugar
después de mí

por quien ya lo habitó
inútil es la tristeza

A outra tradução castelhana, de Clara Janés, não difere muito desta no conteúdo dos três primeiros versos, mas dá do último uma versão diferente. A tristeza continua a ser inútil; mas quem era, na tradução de España, a sua causa, passa agora a ser quem a sente: a tristeza não é aqui por quem habitou na casa, mas de quem a habitou:

Vana fue la tristeza
de los que partieron.

Já as duas traduções inglesas não referem em absoluto a inutilidade da tristeza. O último verso de Wáng Wéi é, na tradução de Mark Alexander,

He must feel sorrow for those in the past (“[Ele, quem vier depois] Deve ter pena dos que aqui viveram antes”)


it still has just sorrow for the previous tenant (“Ainda tem pena, e com razão, do inquilino anterior” (?) ou “Ainda tem só pena do inquilino anterior (?), não sei como interpretar o verso…).

Para complicar mais as coisas, quem sente pena, nesta última tradução, não é uma pessoa, mas sim o salgueiro. E o salgueiro que sente pena não está na casa nova, mas sim na casa antiga:

I have a new house, at the mouth of the Mengcheng. / The tree at the old one – the willow – feels more sorrow; (“Tenho uma casa nova à entrada de Mengcheng. / A árvore da casa antiga – o salgueiro – sente mais pena;”)

Bom, é certo que Wiliam P. Coleman não tem pretensões a fazer uma verdadeira tradução do poema. «A gramática do chinês», escreve ele, «permite aos poetas deixarem abertas escolhas interpretativas e é um ideal inatingível da tradução revelar possibilidades sem fechar outras. Tento usar o meu sentido do inglês para, pelo menos, vos intrigar. Se o consegui, o melhor — mesmo que não saibam chinês, como eu também não sei — (…) é ver a tradução original palavra a palavra a partir da qual trabalhei. Será mais rica do que aquela que vos dei. Para compreender o poema o melhor possível, tentem criar a vossa própria tradução.»

A “tradução original palavra a palavra” a que Wiliam P. Coleman se refere é a tradução “literal” que se encontra no página de Mark Alexander:

new•house•meng•cheng•entrance
old•tree•surplus•sorrow•willow
come•person•again•for•who
only•sorrow•former•person•be

[nova•casa•meng•cheng•entrada
velha•árvores•
excesso•pena•salgueiros
vir•pessoa•outra vez•para•quem
só•pena•anterior•pessoa•ser]

Sem saber chinês, esta tradução carácter a carácter não me ajuda muito a decidir-me pela maior ou menor justeza das várias traduções. Posso aceitar a proposta de interpretação criativa de Wiliam P. Coleman, mas isso não me resolve a pergunta, irrespondível talvez, mas insistente, que me faço a mim mesmo desde ontem de manhã:

O que é que Wáng Wéi escreveu quando escreveu

 
?
__________________


[1] Actualizado a 17.06.2013: desapareceu entretanto o texto original dinamarquês com a tradução em inglês que encontrei quando escrevei este post. Essa tradução para o inglês, vim depois a descobrir, é de Thom Satterlee, um tradutor e poeta americano que ganhou (com as suas traduções de Nordbrandt, precisamente!) o pr,émio de tradução da American-Scandinavian Foundation em 1998. O que, na tradução de José Alberto Oliveira, me permite concluir que ele traduziu do inglês é ter traduzido kvitteringer por “receitas”. Esta tradução estranha só se pode explicar se não tiver sido kvitteringer que ele traduziu, mas o receipts da tradução inglesa. A tradução de receipts por “receitas” é um erro de um tipo comum, que se dá indo atrás do som da palavra, que é um falso amigo. Quero, já agora notar que eu tinha, originalmente, traduzido kvitteringer por facturas, o que também estava errado: kvitteringer são de facto recibos, e recibos não são facturas (“este recibo não serve de factura”). Estes erros resultam ambos do desrespeito de uma regra fundamental: quando se traduz de uma língua que não se domina bem, verificam-se e voltam a verificar-se todas as palavrinhas, para não fazer disparates…

[2] Ou que a de Thom Satterlee (“It is the near indistinguishableness / I find hardest to bear”). No original, Nordbrant inventa uma palavra, næstenforskelsløshed, que se pode traduzir literalmente como quasindistinguibilidade.)

[3] Não é muito, se comprararmos com outros poemas chineses conhecidos. De “A rã”, o mais famoso haiku de Matsuo Bashō, escrito provavelmente em 1686, encontram-se dezenas e dezenas de traduções. Só a página que lhe é dedicada na Wikisource em inglês regista 40 traduções do poema para esta língua. Para português, encontrei cinco traduções bastante diferentes, desde uma clássica quadra rimada do orientalista Wenceslau de Moraes

Um templo, um tanque musgoso;
Mudez, apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água, mais nada.

até uma muito menos convencional (claro!) de Haroldo de Campos

o velho tanque
              rã salt’
                        tomba
                                   rumor de água

2 comentários:

Daniel Alabarce disse...

Então, cara, eu não conheço o poeta dinamarquês que você citou, rs!

Mas uma coisa que eu sempre discuti e ainda discuto é sobre tradução. E esse seu post me fez lembrar de um livro que li do Schopenhauer, A Arte de Escrever.

Depois que li esse livro uma dúvida permaneceu na minha mente: é possível compreender, captar o que "o outro" quer me dizer? É possível mesmo que haja compreensão do que se fala num sistema de linguagem diferente do que nós fomos ensinados?
Como os árabes, que não possuiam um conceito de "ser" (tal qual os gregos), puderam traduzir Aristóteles e divulgá-lo durante a Idade Média? E por aí vai... kkkk ad infinitum!

Realmente, traduzir e trair são uma e mesma coisa.

Vítor Lindegaard disse...

Caro Daniel,

Muito obrigado pelo seu comentário, que passo a comentar:

Não é sempre possível captar o que o outro quer dizer. Depende do que ele quer dizer. Se o outro lhe disser "Está a chover" ou "Cheguei atrasado ao trabalho", não há problema nenhum; se ele lhe tentar explicar o medo que sentiu durante um terramoto, provavelmente não lhe conseguirá transmitir exactamente ESSE medo - ainda assim, compreenderá o que é medo, porque também o sente...

O que é possível captar é o que o outro diz, independentemente do que ele quer dizer, se partilhar com ele o conhecimento da língua em que ele fala: se tiver interiorizadas as mesmas regras linguísticas e o mesmo vocabulário, percebe o significado do que ele diz. Compreender o sentido, aquilo que ele quer dizer, é mais complicado, e depende de muitos factores extralinguísticos (até a cor da camisa pode ser importante, como dizia um professor que eu tive).

Agora compreender um sistema de linguagem (uma língua, presumo que seja isso que quer dizer) que não aprendemos é impossível. Como poderia ser isso? Se alguém falar em wolof comigo, eu não compreendo. Mas se me falarem em francês, por exemplo, compreendo, porque é uma língua que eu aprendi.

Quanto às traduções de grego clássico para árabe medieval, não são, em princípio, mais difíceis do que de mandarim para húngaro ou de português para suaíli, contanto que o tradutor seja competente nas línguas de que traduz e para que traduz. Todas as línguas são, no fundo, semelhantes (naturalmente, visto que resultam de uma capacidade ou de bcapacidades comuns a todos os humanos) e, como eu digo no post, há apenas traduções mais ou menos difíceis, consoante o seu conteúdo.

O verbo ser é, na maior parte dos casos, desprovido de significado. É uma cópula, como se chama em gramática, serve só para dar coesão sintáctica, nas línguas que não admitem frases sem verbo, e para indicar tempo, completude da acção, etc. Quando ele não existe, tudo isso é marcado de outra forma. (Pode ver aqui um pequeno texto sobre o verbo ser: http://llindegaard.blogspot.com/2010/12/ser-ou-nao-ser-eis-questao.html).

Seja como for, o que se traduz não são palavras isoladas, são frases (regra fundamental de tradução!) e não é, normalmente, difícil traduzir uma frase com o verbo ser para uma língua que o não tenha. [Embora isso de "não ter o verbo ser" não seja exactamente assim, há é línguas que não têm um verbo que corresponda ao nosso verbo ser em todas os contextos em que ele se usa, o que é uma coisa diferente; mas, se se vai por aí, também o verbo ser em português não corresponde a 100% ao verbo ser em castelhano, a être em francês ou a to be em inglês...].

Não conheço a obra de Schopenhauer que refere, mas acabo de a descarregar do Projecto Gutenberg e lê-la-ei mal tenha tempo. Se a sua leitura me sugerir algum comentário, deixá-lo-ei aqui.

Saudações