27/09/11

De Mary Read e outras três Marias

[I Introdução]
Beijo de Mulata publicou há coisa de duas semanas uma definição de loucura de António Cunha em D. Maria, a Louca:
«A loucura não é uma porta que se fecha mas muitas janelas que se abrem, só que todas ao mesmo tempo...»
Tem visos de verdade.
Agora, diz o dito que há mais Marias na terra. Na História também, há muitas Marias. E juntar muitas Marias da História num texto só é capaz de ser como demasiadas janelas abertas – uma loucura. Ou uma maluquice, seja, que a loucura é capaz de não chegar … Mas enfim, seja uma coisa ou outra, há de ser algo que não convém à História, que é, em princípio, assunto sério. As histórias que conto a seguir, porém, sobretudo porque são de rainhas, são História a reinar…
Tudo nasceu de um acaso, já lá vai uma dezena de anos:
Um dia, quando acabei de reler a Historia Universal de la Infamia, decidi ver o que dizia a minha enciclopédia eletrónica dos heróis desse livro de J. L. Borges. Dos dois primeiros contos, a enciclopédia não conhecia nem protagonistas nem personagens secundárias. Chegado ao terceiro conto, “La viuda Ching, pirata”, antes de escrever no motor de pesquisa da enciclopédia o nome do malogrado marido da pirata, resolvi procurar a Mary Read que aparece na introdução à história. E já não procurei mais, porque fiquei fascinado com o resultado da pesquisa.
O nome da capitã de piratas era referido apenas uma vez na entrada “Dame Flore Robson”, como título de uma peça levada à cena no West End de Londres em 1934. Sabendo que a Historia Universal de la Infamia foi escrita entre 1933 e 1934, pode especular-se se J. L. Borges terá ou não assistido à peça e se não será dela que lhe veio a ideia de que, traduzo, “a palavra corsárias corre o risco de despertar uma recordação que é vagamente incómoda: a de uma já descolorida zarzuela, com as suas teorias de evidentes criadas, que faziam de piratas coreográficas em mares de notável cartão”.
Quanto aos outros artigos propostos, nenhum deles continha, de facto, o nome Mary Read, mas sim uma série de outras estranhas associações do nome Marie ou Mary com uma série de palavras que têm em comum apenas o começarem por “read…”. É dessas associações – e de outras de que a enciclopédia não dá conta – que trata o texto que segue. 

[II Maria Tudor]  
Como a maior parte de vocês saberá, Maria Tudor ou Maria I de Inglaterra, nasceu em 1516 e aos 37 anos tornou-se rainha de Inglaterra. No ano seguinte, casou-se com Filipe II de Espanha, que tinha 27 anos e tinha sido já casado com outra Maria. O casamento católico de Espanha com Inglaterra foi tão mal recebido pelos ingleses que houve logo quem armasse uma revolta para tentar pôr no trono, em lugar desta vendida Maria, a sua meia irmã Isabel. E não deixavam de ter alguma razão os revoltados: por causa da aliança de Maria I com Filipe II, a Inglaterra juntou-se a Espanha na guerra em que esta estava metida contra França, o que valeu àquela perder Calais, se é que me faço entender. 
Diz-se que, quando os generais da Tudor voltaram, desanimados, empoeirados e sedentos, da terrível batalha em que os franceses tinham recuperado o enclave inglês, a rainha perguntou, com voz gelada, cortante, a um dos chefes do seu exército: “Então, Calais?” E que, provavelmente para tentar aligeirar um pouco a atmosfera pesada do salão, este se teria rido, com um riso forçado, pateta, e teria respondido, abrindo os braços e virando para cima a palma das mãos, “Pas de Calais!”, o que lhe valeu, a partir de então, o cognome de O Belga (The Sprout) no seio do exército britânico. 
Maria Tudor respondeu séria, mas mais triste que despeitada, ignorando a idiotia do comandante das suas tropas: “Pois bem, quando eu morrer e me abrirdes o coração, aí encontrareis Calais!” Mas nem com a tirada teatral o povo inglês a desculpou… Não lhe perdoou Calais nem as perseguições religiosas que matrocinou. O vodka com sumo de tomate existe para no-lo recordar. 

[III Maria Rainha dos Escoceses]
A outra Maria a seguir é a Maria que os escoceses tiveram, que aos 16 anos e no ano da morte da Maria anterior, se casava, para cumprir um contrato que tinham feito por ela à nascença, com um Francisco de 14 anos que viria a ser Francisco II de França no ano seguinte..
“Father, dear father, you have done to me great wrong / You’ve married me to a boy who is too young…”
Assim conta uma canção que a jovem rainha se teria queixado, em inglês, a seu pai. E a mesma canção diz que o pai lhe respondeu como segue:
“Daughter, dear daughter, I have done to you no wrong / I married you to the French King’s son!”
A canção deve ter tido grande sucesso na época, a julgar por dois factos: um, o de ter chegado aos nossos dias, se bem que numa versão ligeiramente modificada; outro, o de serem conhecidas não apenas uma mas três versões portuguesas, com pequenas variações entre si, que não serão provavelmente muito posteriores ao original e das quais a mais famosa é a seguinte: 
“Pai, querido pai, tanto mal que me fizeste / Quando por esposo uma criança me deste… / Minha filha linda, sei quem por esposo te dei / Jovem será, mas também filho de um rei!”
Não se sabe se para contentamento de Maria ou não (é bem provável que se divertissem, apesar de tudo, a brincar um com o outro), Francisco II morreu no ano a seguir à coroação.
Sabe-se que foi feita na época outra canção, esta em francês, em que a rainha se queixa, mas agora da perda do seu jovem par. Esta canção não teve a fortuna da canção em inglês anteriormente referida e, ao contrário dela, não chegou aos nossos dias, fosse em que forma fosse. Se se sabe que ela existiu é porque existe uma tradução portuguesa dos finais do séc. XVI em que é referido um original francês com o título Ballade de la Jeune Reyne Marie d’Escosse. Além disso, o facto de esta canção portuguesa estar escrita num verso bem pouco comum entre nós, o de oito sílabas, parece confirmar que se trata de uma tradução de um original francês, língua em que essa medida é normal. A versão portuguesa, extensa demais para a transcrevermos aqui na íntegra, começa assim:
“Meu pai deu-me um rei por marido / Que me queria, mas que eu não quis / Mas agora que o hei perdido / Como sou, Deus meu, infeliz…”
Um famoso estudioso português da cultura portuguesa, que escuso de nomear aqui, recriou, a partir da tradução, o original francês. Era uma coisa que ele gostava muito de fazer (apesar de não conhecer bem a língua francesa...), sobretudo em ressacas de grandes bebedeiras que apanhava com os amigos, aos fins de semana, numa quinta que tinha ali para os lados da Várzea de Colares. Uma pessoa bem se pode perguntar como é que ele chegou dum texto ao outro, mas enfim, estranhos são os desígnios de alguns intelectuais…
“Mon père, vous m’avez fait grand tort / En me mariant à ce jeune roi / Dieu merci, le voilà qui est mort / Et je ris et chante de joie”
Quando lhe aconteceu essa desgraça de se ver assim viúva aos 18 anos, pobre Maria!, achou ela que o melhor era deixar aquela França onde tinha sido criada e voltar à Escócia de que era rainha desde o berço, mas a que nunca tinha dado muita importância… Depois de muitas voltas e reviravoltas – que dariam, como deram, textos bem mais interessantes do que este –, Maria foi, em 1567, presa e forçada a abdicar do trono. Podia ter tudo acabado aqui, mas ela era uma mulher de armas: fugiu da prisão e juntou um exército de 6.000 homens. Desafortunadamente, derrotada e obrigada a fugir para Inglaterra. E a Isabel que era lá rainha nesta altura – a que sucedeu à Maria da história anterior –, em vez de dar asilo à rainha dos escoceses, deu-lhe antes prisão perpétua. Maria dos Escoceses era maior do que ela própria, como acontece a muitas estrelas da música pop e a ídolos de outras áreas. Havia quem achasse que não devia ser só dos escoceses e que devia ser rainha dos ingleses também. É claro, perante isto, Isabel fez, como todos nós fazemos constantemente, o que as circunstâncias lhe mandavam fazer. Maria foi executada a 8 de fevereiro de 1587 em Inglaterra. Tinha 45 anos e uma exuberante cabeleira postiça vermelha, sobre a qual muito se tem especulado.

[IV Maria de Médici] 
14 anos antes, mudando agora de assunto, tinha nascido outra Maria – florentina de nascimento, mas não de costumes, para usar uma fórmula com que Dante se apresentou uma vez... Esta Maria era da família Médici, que mandou em Florença durante séculos, e foi rainha consorte de Henrique IV de França. Foi ela a responsável da escalada política de Richelieu, esse cardeal que faz papel de mau nos filmes de capa e espada e que, um dia, virou de repente a casaca de cetim e veludo e deixou de ser amigo dos espanhóis amigos da Maria. Maria montou uma intentona para o afastar do poder, mas o golpe falhou e foi ela que acabou por ser deportada o resto da vida. Nos últimos anos de exílio, poderia ter pensado assim, um pouco como uma cortesã que recordo de um velho poema chinês:
“Florença estava magnífica no último verão que lá passei…
Há quanto tempo foi isso? Não sei, já não sei…
Sei que nessa altura não fazia ideia do que era ter poder,
nem de quanto poder viria a ter.
E para, Deus meu, o quê?, afinal, para acabar aqui
a imaginar o que não fiz e o que não vi
desse mundo que deixei passar ao meu
lado, na tonta ilusão que era eu
que o fazia girar, pelo menos em parte
pela minha – como o cri eu? – estratégia, arte?
Devia ter amado antes, que me cantassem
como à rainha escocesa, que se lembrassem
de mim, arrebatada e triunfante,
mais que como rainha como amante…
Mas perdi de meia vida o tempo, e agora
nem os prazeres me restam de outrora
com que enfeitar em sonho a solidão,
a velhice e o exílio… E tempo não
tenho já para transformar em tempo de vida
o tempo que me resta pouco… Ofendida,
é assim que me sinto, mas não p’lo cardeal,
ou p’lo meu filho… Porquê?, se o mal
que me fizeram é menor que o que me fiz
ao não querer da vida apenas ser feliz…
Não, se me sinto ofendida é só por mim
própria. E espero ofendida o meu fim.”
[V Remate] 
Do ponto de vista do estilo, esta última parte do texto é claramente de inspiração arcádica, o que é estranho porque o estilo arcádico há muito que não inspira ninguém… Chamam-se também Três Marias às três estrelas em linha que se encontram no centro da constelação de Orion, por muito que elas se chamem de facto Mintaka, Alnilan e Alnitaka…  
Mas Três Marias há muitas...

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