28/09/11

Bom e interessante

Karim, a personagem principal de The Buddha of Suburbia, de Hanif Kureishi, tem de escolher entre o pai e a mãe que se separam. E acaba por escolher o pai, porque o ambiente de atores, músicos, festas e sexo em que este vive com a sua namorada Eva é muito mais interessante do que o insípido universo doméstico da sua mãe. Traduzo eu:
Pensei na diferença entre as pessoas interessantes e as pessoas boas. E como não podem ser sempre as mesmas. As pessoas interessantes, queríamos estar com elas – tinham espíritos fora do vulgar; com elas, víamos coisas de uma forma nova e não era tudo morte e repetição. (…) E depois havia as pessoas boas, que eram desinteressantes e não queríamos saber o que elas pensavam, fosse lá do que fosse. Eram como a minha mãe, boas e simples, e mereciam mais amor. Mas eram as pessoas interessantes, como Eva com a sua personalidade bem definida, atraente, que acabavam por ficar com tudo (…).
Já antes, Karim, tinha confessado: “Comecei a considerar o charme, e não a cortesia nem a honestidade, e nem sequer a decência, o dom social de base. E até comecei a gostar de pessoas frias ou más, desde que fossem interessantes.”
Estas linhas ficaram-me sempre na cabeça; e surpreende-me, quando penso agora nisso, não me lembrar de outras reflexões sobre a questão, que é das mais fundamentais na vida de qualquer pessoa e sobre a qual, por isso mesmo, já todos refletimos muito, não é verdade?

Que, para seduzir os outros seres da espécie, exibamos sinais que nos saem caros, como diz Amotz Zahavi, isto é, que façamos coisas difíceis e por isso interessantes, eis a causa de muitas coisas bonitas – e de muitos problemas. Como seria tudo mais simples se a nossa estratégia primeira para seduzir os outros fosse sermos bons para eles… 
[Foto de Jebulon. Wikimedia Commons]


Chaudrées, chowders, caldeiradas

Em português moderno e corrente[1], a palavra caldeirada tem, como se sabe, dois sentidos distintos: 1. guisado com batatas, cebola, tomate e pimento e 2. Embrulhada, salsada, confusão, balbúrdia[2].
Parece provável que o sentido 2. do termo derive do sentido 1, mas esta deriva metafórica tem de ter origem na associação de caldeirada a miscelânea, passando-se daí ao sentido de confusão, porque se há ideia que não pode derivar de uma caldeirada é a de rebuliço – uma caldeirada não se mexe, numa caldeirada não se mexe.
Bom, é verdade que caldeiradas há muitas (muitas!), tantas que parece, à primeira vista, impossível encontrar traço comum a todas elas, que defina, portanto, a essência da caldeirada. Talvez se possa, porém, ir por esta ideia de que uma caldeirada não se mexe. É uma maneira de alargar o conceito de caldeirada de modo a incluir as chowders dos Estados Unidos e do Canadá, que também não se mexem, como bem explica a primeira receita impressa de chowder que se conhece[3]:
De cebola, uma camada, p’ra o toucinho não queimar,
Que depois, na caldeirada, já não se pode tocar;
E pronto, traduzi chowder por caldeirada. Porque ficava feia uma palavra inglesa ali e porque me deu jeito para rimar; e sobretudo porque, bem vistas as coisas, as chowders da América do Norte são mesmo caldeiradas de pleno direito. Até no nome: segundo o site Etymology online, que parece de confiança, a chowder (palavra atestada pela primeira vez em 1751, talvez na receita que acabo de referir e grafada ainda chouder nessa altura), foi aparentemente nomeada pela panela em que se cozinhava: do francês chaudière, "caldeira", do latim tardio caldaria (de onde vem, claro está, a palavra caldeira). Segundo este mesmo site, “a palavra e a prática teriam sido introduzidas na Terra Nova por pescadores bretões, tendo daí chegado à Nova Inglaterra”.
Quando quiserem variar da caldeirada portuguesa, experimentem uma chowder. Já fiz e gostei. Podem experimentar, por exemplo, esta receita de Lydia Maria Child, no livro The American Frugal Housewife, de 1829[4]:
Quatro libras de peixe são suficientes para fazer uma chowder para quatro ou cinco pessoas; meia dúzia de fatias de carne de porco salgada no fundo do tacho; pendure o tacho alto, para a carne de porco não queimar; tire-o quando estiver muito tostado; ponha uma camada de peixe, cortado em tiras no sentido do comprimento, e depois uma camada de bolachas de água e sal, cebolinhas pequenas ou cortadas às rodelas, e batatas cortadas em rodelas com a espessura de uma moeda de quatro pence, misturadas com os bocados de carne de porco que fritou; em seguida, mais uma camada de peixe e assim sucessivamente. Seis bolachas são suficientes. Deite um pouco de sal e pimenta por cima de cada camada; por cima de tudo, deite uma tigela de farinha, e água, até ficar ao nível  dos ingredientes que tem no tacho. Um limão às rodelas dá mais sabor. Uma chávena de catsup de tomate é também excelente. Há quem ponha cerveja. Umas quantas amêijoas são também um agradável suplemento. Deve-se tapar de modo a não deixar sair nem uma partícula de vapor. Não destape, a não ser quando estiver quase pronto, para provar se está bom de temperos.
É uma receita difícil, eu sei, de tão vaga que é: Que carne de porco é esta? E estas bolachas? Bom, o porco salgado não sei que seria; as bolachas são as antigas bolachas muito duras que eram a base de alimentação da gente de mar e que creio que já não se encontram em lado nenhum; como também é agora praticamente impossível encontrar este ketchup à moda antiga… Simplifiquemos, então: uma camada de bacon, depois cebolas e batatas e peixe, como as nossas caldeiradas, com tomate e outros legumes, conforme se queira ou não ou não. E no fim juntar, dois minutinhos antes de tirar do lume, um bocadinho de nata? Há de também ficar bem, não vos parece[5]?

__________

[1] Digo “em português moderno e corrente”, porque os dicionários registam outras aceções de caldeirada em que a palavra raramente ou nunca é usada: “conteúdo de uma caldeira”; “pancada de água, bátega, chuvarada.”, “grande porção de líquido que se despeja”... E é, evidentemente, do significado “conteúdo de uma caldeira” que derivam os outros. Em castelhano, a palavra calderada tem também este significado, tendo derivado dele um outro, o de “cantidad exagerada de algo, especialmente de comida”, que a palavra não tem em português.
[2] Jogando com os dois sentidos da palavra, mas sem nunca usar a palavra caldeirada no seu segundo sentido, Luís Miguel Oliveira fez este fabuloso fado que Raul Solnado cantou:
Fado Maravilhas
Fui no domingo a Cacilhas
Mais o Chico Maravilhas
Comer uma caldeirada.
A gente não nada em taco
Mas vai dando pr’ò tabaco
E p’ra regar a salada.

É po’que ist’ é me’mo assim
A gente morre e o pilim
Não vai para a cova c’a gente.
E antes gastá-lo no tacho
Que na farmácia, é que eu acho
Qu’isto é que é, principalmente.

Terminada a refeição
Ao entrar na embarcação
Começou a grande espiga.
Um mangas abriu o bico
Pôs-se a mandar vir c’o Chico
O Chico arriou a giga.

Eu, para acalmar a tormenta
Ainda disse ao Chico «Òguenta!»,
Mas o mangas insistiu.
E o Chico sem intenção
Deu-lhe um ligeiro encontrão
Atirou c’o tipo ao rio.

Um sócio do outro meco
Quis-se armar em malandreco
A gente já estava quentes.
Vei’ p’ra mim desnorteado
Eu dei-l’e c’o penteado
E pu-lo a cuspir os dentes.

Veio outro, eu dei outra ideia
Desarrumei-lhe a plateia
Mais outro, fui-lhe ao focinho.
E o Chico pelo seu lado
Só para não ficar parado
Aviou quatro sozinho.

Fez-se uma grande molhada
Desatou tudo à estalada
Eu e o Chico no centro.
Naquela calamidade
Apareceu a autoridade
E meteu-nos todos dentro.

Não tenho vida p’ra isto
E de futuro desisto
De me meter noutra alhada.
Nunca mais vou a Cacilhas
Mais o Chico Maravilhas
Comer outra caldeirada!


Quero agradecer a António Gameiro, que me informou da autoria do "Fado Maravilhas", que eu desconhecia quando aqui publiquei este texto.


Notem, já agora, que a caldeirada tem batatas e molho e que batatada e molho são, precisamente, sinónimo de caldeirada, quando, como neste caso, é estalo que a palavra refere.  

[3] Segundo Jasper White, no seu livro 50 Chowders. A receita, curiosamente em verso, é do Boston Evening Post de 23 de setembro de 1751. Eis o texto original dos dois primeiros versos que traduzi:
First lay some Onions to keep the Pork from burning
Because in Chouder there can be not turning; 
Encontrei esta informação na página "History of Chowder" do site What’s cooking America.

[4] O livro encontra-se, em edições mais recentes, na Amazon (por exemplo, esta de 1999); mas, como já prescreveram os direitos de autor, está também disponível, em versão eletrónica, no Projeto Gutenberg (versão revista de 1832). Descobri a receita não nesse livro, mas em Cod, de Mark Kurlansky (Londres: Vintage Books, 1999), que, além de contar a história da pesca e do consumo de bacalhau, traz muitas receitas do dito, de vários tempos e vários lugares.

[5] Numa versão bretã de caldeirada, referida também por Kurlansky em Cod, usa-se aipo e alho francês, por exemplo. Não pode senão ficar bem. Também se propõe, nessa receita, juntar crème fraîche à caldeirada, na altura de a comer. Quanto à ideia das natas, também não é minha: há várias receitas de chowder em que entram natas. Só mais uma palavra-como-as-cerejas: esta caldeirada bretã chama-se bouillabaisse de Fécamp (porque a palavra original chaudrée entretanto desapareceu, diz Kurlansky), mas não tem nada a ver com bouillabaisse no sentido normal da palavra. A verdadeira bouillabaisse, porém, embora seja muito mais complicada, porque implica a preparação prévia da sopa onde vão cozer os peixes, talvez se possa também considerar uma caldeirada… ou talvez não…

27/09/11

De Mary Read e outras três Marias

[I Introdução]
Beijo de Mulata publicou há coisa de duas semanas uma definição de loucura de António Cunha em D. Maria, a Louca:
«A loucura não é uma porta que se fecha mas muitas janelas que se abrem, só que todas ao mesmo tempo...»
Tem visos de verdade.
Agora, diz o dito que há mais Marias na terra. Na História também, há muitas Marias. E juntar muitas Marias da História num texto só é capaz de ser como demasiadas janelas abertas – uma loucura. Ou uma maluquice, seja, que a loucura é capaz de não chegar … Mas enfim, seja uma coisa ou outra, há de ser algo que não convém à História, que é, em princípio, assunto sério. As histórias que conto a seguir, porém, sobretudo porque são de rainhas, são História a reinar…
Tudo nasceu de um acaso, já lá vai uma dezena de anos:
Um dia, quando acabei de reler a Historia Universal de la Infamia, decidi ver o que dizia a minha enciclopédia eletrónica dos heróis desse livro de J. L. Borges. Dos dois primeiros contos, a enciclopédia não conhecia nem protagonistas nem personagens secundárias. Chegado ao terceiro conto, “La viuda Ching, pirata”, antes de escrever no motor de pesquisa da enciclopédia o nome do malogrado marido da pirata, resolvi procurar a Mary Read que aparece na introdução à história. E já não procurei mais, porque fiquei fascinado com o resultado da pesquisa.
O nome da capitã de piratas era referido apenas uma vez na entrada “Dame Flore Robson”, como título de uma peça levada à cena no West End de Londres em 1934. Sabendo que a Historia Universal de la Infamia foi escrita entre 1933 e 1934, pode especular-se se J. L. Borges terá ou não assistido à peça e se não será dela que lhe veio a ideia de que, traduzo, “a palavra corsárias corre o risco de despertar uma recordação que é vagamente incómoda: a de uma já descolorida zarzuela, com as suas teorias de evidentes criadas, que faziam de piratas coreográficas em mares de notável cartão”.
Quanto aos outros artigos propostos, nenhum deles continha, de facto, o nome Mary Read, mas sim uma série de outras estranhas associações do nome Marie ou Mary com uma série de palavras que têm em comum apenas o começarem por “read…”. É dessas associações – e de outras de que a enciclopédia não dá conta – que trata o texto que segue. 

[II Maria Tudor]  
Como a maior parte de vocês saberá, Maria Tudor ou Maria I de Inglaterra, nasceu em 1516 e aos 37 anos tornou-se rainha de Inglaterra. No ano seguinte, casou-se com Filipe II de Espanha, que tinha 27 anos e tinha sido já casado com outra Maria. O casamento católico de Espanha com Inglaterra foi tão mal recebido pelos ingleses que houve logo quem armasse uma revolta para tentar pôr no trono, em lugar desta vendida Maria, a sua meia irmã Isabel. E não deixavam de ter alguma razão os revoltados: por causa da aliança de Maria I com Filipe II, a Inglaterra juntou-se a Espanha na guerra em que esta estava metida contra França, o que valeu àquela perder Calais, se é que me faço entender. 
Diz-se que, quando os generais da Tudor voltaram, desanimados, empoeirados e sedentos, da terrível batalha em que os franceses tinham recuperado o enclave inglês, a rainha perguntou, com voz gelada, cortante, a um dos chefes do seu exército: “Então, Calais?” E que, provavelmente para tentar aligeirar um pouco a atmosfera pesada do salão, este se teria rido, com um riso forçado, pateta, e teria respondido, abrindo os braços e virando para cima a palma das mãos, “Pas de Calais!”, o que lhe valeu, a partir de então, o cognome de O Belga (The Sprout) no seio do exército britânico. 
Maria Tudor respondeu séria, mas mais triste que despeitada, ignorando a idiotia do comandante das suas tropas: “Pois bem, quando eu morrer e me abrirdes o coração, aí encontrareis Calais!” Mas nem com a tirada teatral o povo inglês a desculpou… Não lhe perdoou Calais nem as perseguições religiosas que matrocinou. O vodka com sumo de tomate existe para no-lo recordar. 

[III Maria Rainha dos Escoceses]
A outra Maria a seguir é a Maria que os escoceses tiveram, que aos 16 anos e no ano da morte da Maria anterior, se casava, para cumprir um contrato que tinham feito por ela à nascença, com um Francisco de 14 anos que viria a ser Francisco II de França no ano seguinte..
“Father, dear father, you have done to me great wrong / You’ve married me to a boy who is too young…”
Assim conta uma canção que a jovem rainha se teria queixado, em inglês, a seu pai. E a mesma canção diz que o pai lhe respondeu como segue:
“Daughter, dear daughter, I have done to you no wrong / I married you to the French King’s son!”
A canção deve ter tido grande sucesso na época, a julgar por dois factos: um, o de ter chegado aos nossos dias, se bem que numa versão ligeiramente modificada; outro, o de serem conhecidas não apenas uma mas três versões portuguesas, com pequenas variações entre si, que não serão provavelmente muito posteriores ao original e das quais a mais famosa é a seguinte: 
“Pai, querido pai, tanto mal que me fizeste / Quando por esposo uma criança me deste… / Minha filha linda, sei quem por esposo te dei / Jovem será, mas também filho de um rei!”
Não se sabe se para contentamento de Maria ou não (é bem provável que se divertissem, apesar de tudo, a brincar um com o outro), Francisco II morreu no ano a seguir à coroação.
Sabe-se que foi feita na época outra canção, esta em francês, em que a rainha se queixa, mas agora da perda do seu jovem par. Esta canção não teve a fortuna da canção em inglês anteriormente referida e, ao contrário dela, não chegou aos nossos dias, fosse em que forma fosse. Se se sabe que ela existiu é porque existe uma tradução portuguesa dos finais do séc. XVI em que é referido um original francês com o título Ballade de la Jeune Reyne Marie d’Escosse. Além disso, o facto de esta canção portuguesa estar escrita num verso bem pouco comum entre nós, o de oito sílabas, parece confirmar que se trata de uma tradução de um original francês, língua em que essa medida é normal. A versão portuguesa, extensa demais para a transcrevermos aqui na íntegra, começa assim:
“Meu pai deu-me um rei por marido / Que me queria, mas que eu não quis / Mas agora que o hei perdido / Como sou, Deus meu, infeliz…”
Um famoso estudioso português da cultura portuguesa, que escuso de nomear aqui, recriou, a partir da tradução, o original francês. Era uma coisa que ele gostava muito de fazer (apesar de não conhecer bem a língua francesa...), sobretudo em ressacas de grandes bebedeiras que apanhava com os amigos, aos fins de semana, numa quinta que tinha ali para os lados da Várzea de Colares. Uma pessoa bem se pode perguntar como é que ele chegou dum texto ao outro, mas enfim, estranhos são os desígnios de alguns intelectuais…
“Mon père, vous m’avez fait grand tort / En me mariant à ce jeune roi / Dieu merci, le voilà qui est mort / Et je ris et chante de joie”
Quando lhe aconteceu essa desgraça de se ver assim viúva aos 18 anos, pobre Maria!, achou ela que o melhor era deixar aquela França onde tinha sido criada e voltar à Escócia de que era rainha desde o berço, mas a que nunca tinha dado muita importância… Depois de muitas voltas e reviravoltas – que dariam, como deram, textos bem mais interessantes do que este –, Maria foi, em 1567, presa e forçada a abdicar do trono. Podia ter tudo acabado aqui, mas ela era uma mulher de armas: fugiu da prisão e juntou um exército de 6.000 homens. Desafortunadamente, derrotada e obrigada a fugir para Inglaterra. E a Isabel que era lá rainha nesta altura – a que sucedeu à Maria da história anterior –, em vez de dar asilo à rainha dos escoceses, deu-lhe antes prisão perpétua. Maria dos Escoceses era maior do que ela própria, como acontece a muitas estrelas da música pop e a ídolos de outras áreas. Havia quem achasse que não devia ser só dos escoceses e que devia ser rainha dos ingleses também. É claro, perante isto, Isabel fez, como todos nós fazemos constantemente, o que as circunstâncias lhe mandavam fazer. Maria foi executada a 8 de fevereiro de 1587 em Inglaterra. Tinha 45 anos e uma exuberante cabeleira postiça vermelha, sobre a qual muito se tem especulado.

[IV Maria de Médici] 
14 anos antes, mudando agora de assunto, tinha nascido outra Maria – florentina de nascimento, mas não de costumes, para usar uma fórmula com que Dante se apresentou uma vez... Esta Maria era da família Médici, que mandou em Florença durante séculos, e foi rainha consorte de Henrique IV de França. Foi ela a responsável da escalada política de Richelieu, esse cardeal que faz papel de mau nos filmes de capa e espada e que, um dia, virou de repente a casaca de cetim e veludo e deixou de ser amigo dos espanhóis amigos da Maria. Maria montou uma intentona para o afastar do poder, mas o golpe falhou e foi ela que acabou por ser deportada o resto da vida. Nos últimos anos de exílio, poderia ter pensado assim, um pouco como uma cortesã que recordo de um velho poema chinês:
“Florença estava magnífica no último verão que lá passei…
Há quanto tempo foi isso? Não sei, já não sei…
Sei que nessa altura não fazia ideia do que era ter poder,
nem de quanto poder viria a ter.
E para, Deus meu, o quê?, afinal, para acabar aqui
a imaginar o que não fiz e o que não vi
desse mundo que deixei passar ao meu
lado, na tonta ilusão que era eu
que o fazia girar, pelo menos em parte
pela minha – como o cri eu? – estratégia, arte?
Devia ter amado antes, que me cantassem
como à rainha escocesa, que se lembrassem
de mim, arrebatada e triunfante,
mais que como rainha como amante…
Mas perdi de meia vida o tempo, e agora
nem os prazeres me restam de outrora
com que enfeitar em sonho a solidão,
a velhice e o exílio… E tempo não
tenho já para transformar em tempo de vida
o tempo que me resta pouco… Ofendida,
é assim que me sinto, mas não p’lo cardeal,
ou p’lo meu filho… Porquê?, se o mal
que me fizeram é menor que o que me fiz
ao não querer da vida apenas ser feliz…
Não, se me sinto ofendida é só por mim
própria. E espero ofendida o meu fim.”
[V Remate] 
Do ponto de vista do estilo, esta última parte do texto é claramente de inspiração arcádica, o que é estranho porque o estilo arcádico há muito que não inspira ninguém… Chamam-se também Três Marias às três estrelas em linha que se encontram no centro da constelação de Orion, por muito que elas se chamem de facto Mintaka, Alnilan e Alnitaka…  
Mas Três Marias há muitas...

01/09/11

improvérbios (provérbios improváveis)








Mais vale cair na Graça do que ser um desgraçado.

Dia santo na loja, patrão fora. [A não ser que faça questão em ostentar, pela sua presença na loja em dia santo, o seu ateísmo.]

Pode levar-se a mula ao rio, mas não se a pode obrigar a beber aquela água toda.

Água mole em pedra dura mais tempo mole do que água fresca em barro dura fresca. [???]

Casa roubada, trancas à porta; marralhos, pés à parede.

Mais vale um mal só do que um mal acompanhado. [Só que um mal nunca vem só. E a morte, quando vem... Trás! ...Sempre uma desculpa!]
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