09/02/12

A mercearia antiga e outros ideais

Há dias, uma amiga minha partilhou, no Facebook, uma fotografia – bonita, por sinal – de uma mercearia antiga, com os antigos armários de madeira, as antigas caixas para cereais e legumes secos, e as antigas bilhas de azeite, em metal; e, a acompanhar a foto, o também já muito antigo louvor bucolista da qualidade de vida e da autossuficiência dos tempos idos, destruídas pela terrível modernidade…
Quem não se lembra da mercearia da sua juventude? Eu cá, lembro-me perfeitamente da mercearia do Sr. Mário. Lembro-me bem de que escarafunchava, o sem vergonha, o narigão vermelho enquanto roubava no peso do flamengo. Do feijão cheio de bicho, que tinha de se escolher, também me lembro perfeitamente. E do toucinho sempre um bocadinho rançoso, ao gosto da altura, que remédio..., naquele alguidar de barro, dias, semanas a fio. Lembro-me das compras embrulhadas em papel de jornal, sem pagar mais pelas notícias – para quem soubesse ler... E lembro-me do carrascão do Bombarral e do azeite cheio de acidez, ambos diretamente do produtor… Mas vendiam-se bem, mais o tinto que o azeite, porque a mercearia também era tasca. E quando o Sr. Mário estava mal disposto, o melhor era nem se entrar lá, para não se levar roda do que calhasse. Mas isso era na mercearia do Sr. Mário, porque na outra que havia ao pé de minha casa, a do Sr. Manel... era ainda um bocadinho pior.
* * *
As mercearias antigas são o menos. Nem guardo rancor nenhum ao Sr. Mário, por muito trafulha e pouco asseado que fosse, e nem sequer à falta de controlo de qualidade da comida da altura. A questão é que o louvor da mercearia antiga é uma das inúmeras formas que reveste a ideologia do antigamente é que era bom. E combater a idealização do passado é uma das minhas ocupações favoritas – uma das minhas lutas, se posso dizer assim. O passado não foi tão bom como o pintam, digo eu. Digo e redigo, e continua a haver muito quem não acredite em mim…
Defendia uma vez o meu amigo Nuno, num comentário que aqui deixou, que “as nossas memórias do que foi são muito seletivas”. “Eu tenho tendência para lembrar-me das coisas boas”, dizia ele. Ele e muita gente. Toda a gente até, se calhar. Mas é bom lembrarmo-nos também do resto, para perspetivarmos melhor de onde vimos e para onde queremos ir; para repensarmos se é mesmo o passado que nos há de servir de mira quando apontamos ao futuro.
A mercearia do Sr. Mário: imagem artificialmente dourada de um passado não muito distante [Foto de Pedro Malaquias]
A verdade é que Portugal, que agora tem uma esperança de vida acima da média da OCDE, ganhou 15,6 anos de média de vida desde 1960 – é o 9º país da OCDE que mais anos de vida ganhou desde a altura em que eu era pequenino fazia compras na mercearia do Sr. Mário. A verdade é também que, quando eu era pequeno e fazia compras na mercearia do Sr. Mário, havia em Portugal 30% de analfabetos, um número muito pouco europeu, e agora há 5%, o que, sendo ainda alto, é um número bem mais apresentável. Podia dar-vos dezenas de indicadores de quanto a vida melhorou em Portugal desde o tempo da mercearia antiga, mas vocês também os podem encontrar com facilidade. É que é mesmo fácil verificar que o passado não era como a sua fácil idealização nos quer fazer crer… 
Agora, talvez o passado tivesse mesmo alguns aspetos louváveis, quem sabe?, mas quais seriam? E haverá quem queira trocar o que se ganhou em tempo de vida e de lazer, saúde, conforto, liberdade e saber por… sei lá… sardinha de barrica, bolacha americana e fava-rica?

15 comentários:

Helena Araújo disse...

Concordo em parte, discordo em parte.
Olhar para o passado é sempre um exercício subjectivo. Por exemplo: o senhor Oreste da mercearia da minha infância era simpático, até me dava rebuçados (!!!), e vendia a fiado. É verdade que o fiado abre as portas a muita prepotência, mas também representa laços sociais, confiança e generosidade que não encontras em nenhum Continente. Isso era na altura em que a minha avó distribuia pelas redondezas os melhores pedaços do porco, no dia da matança. Era um tempo de "I care about you".
Vamos chamar-lhe caridadezinha? Penso que era mesmo mais que isso: era apostar em manter laços com as outras pessoas da comunidade, sentir-se responsável pelo que acontece aos outros. Claro que podemos dizer que, no limite, compete ao Estado redistribuir para que ninguém tenha de depender da generosidade de uma vizinha, mas eu moro num país onde o Estado cuida para que todos tenham um mínimo de bem-estar, e não me parece que a maior parte dessas pessoas se sintam mais felizes que os tais vizinhos da minha avó. Há aqui uma rede social que se perdeu, e que me parece fundamental para o equilíbrio das pessoas.
Falo em mercearias da minha infância, e a primeira coisa que me ocorre é o lixo: na casa da minha avó não havia lixo. Não havia plásticos, latas. E o lixo biológico ia para o porco, as galinhas, a terra ao fundo do quintal. As actuais lojas biológicas estão a voltar a isso o melhor que podem: tentam evitar o exagero de embalagens, e sobretudo as embalagens não biodegradáveis.
Penso que podemos ir ao passado buscar o que é positivo, se perdeu e nos faz falta hoje (laços sociais, maior integração das pessoas na sua comunidade; comércio de produtos locais, uso reduzido de embalagens, embalagens não poluentes; etc.). Mas - como dizes - não podemos embarcar numa ilusão: voltar àquilo que só existe dentro da nossa cabeça. O caminho é para a frente.

Voltando à questão da generosidade dos vizinhos versus Segurança Social: tenho uma vizinha, em Portugal, que vive com muito menos dinheiro (e conforto, obviamente) que qualquer dependente da Segurança Social alemã. Mas parece-me que o facto de viver num meio social onde está plenamente integrada lhe dá uma qualidade de vida que estes alemães mais pobres não têm. Porque (parece-me) a pobreza é sempre relativa (e eles são sempre os mais pobres da sua sociedade, apesar de terem um nível de vida bastante aceitável) e porque lhes falta um lugar digno na sociedade.
Na Dinamarca acontece o mesmo?

Vítor Lindegaard disse...

Fico muito contente de haver conversa, que é que eu peço no canto superior direito desta Travessa. Muito obrigado, Helena, e passo a responder às tuas observações.

Creio que o maior nível de integração social e uma relação mais pessoal entre os membros da comunidade decorre naturalmente do número. É algo típico de comunidades pequenas, e, por isso, mais típico de comunidades rurais, mas está longe de ser exclusivo destas comunidades: as cidades antigas tinham (e há partes de cidades modernas que continuam a ter) esquemas sociais de bairro muito semelhantes a aldeias – continua a ser o número de membros da comunidade a contar. Se isto tem as vantagens que referes, tem também enormes desvantagens, como o peso da pressão social e o controlo dos comportamentos. É muito mais difícil introduzir inovações em comunidades deste tipo e não é por acaso que toda a moral igualitária e democrática moderna (digamos assim para simplificar, acho que me entendes), que tu e eu defendemos, nasce nas cidades – é burguesa no sentido primeiro do termo. Também o bucolismo ruralista e os ideais de preservação da natureza, não é verdade?

Quanto ao fiar, todas as mercearias antigas o faziam (o Sr. Mário também, e o Sr. Manel), mas não creio que tenha a ver com fomento de laços entre as pessoas, era simplesmente assim que funcionava na altura: o poder de compra era muito mais baixo, as poupanças eram inexistentes e nenhum merceeiro tinha clientes se não fiasse. E era um risco relativo, por causa da tal força do controlo social em comunidades pequenas. Também o facto de a tua avó distribuir pedaços de porco pela matança, provavelmente não deve ser interpretado à luz de nenhuns sentimentos de solidariedade, mas antes como o cumprimento de um dever num quadro bem codificado de relações sociais. Mas posso, evidentemente, estar enganado. Digamos que, na maior parte dos casos, não são sentimentos de desinteressada solidariedade que justificam estas ações solidárias. A minha avó, por exemplo, sentia que tinha de dar esmola aos pobrezinhos da sexta-feira, não era nada que fosse deixado à decisão dos seus sentimentos de solidariedade.

Sobre a questão da segurança social e da assistência à terceira idade, vou publicar aqui qualquer coisa, um dia destes. A minha posição é muito diferente da tua: acho que redes de segurança social que dependam de pessoas com quem se tem uma efetiva relação pessoal (família, amigos, vizinhos, etc.) têm todas as possibilidades de virem a causar problemas e sofrimento. É a isso que assisto na minha família e nas famílias que conheço de perto. Há demasiados sentimentos envolvidos, bons e maus, e a justiça só pode resultar de abstração, não de sentimentos concretos. Além de que (mas tudo isto o desenvolverei), como não há controlo da contribuição efetiva de familiares, resulta muitas vezes num abandono real das pessoas, o que não acontece quando são estruturas públicas a assumir a responsabilidade desse tratamento. A relação entre as pessoas é sempre mais saudável, penso eu, quando ninguém se sente um peso para o outro e quando ninguém sente que o outro é um peso. Temo bem que, neste aspeto (também no post que farei sobre isto), tenha de ficar-me pelo que observo, infelizmente, porque não conheço estudos nem números reais. O princípio ético de abstração que defendo, porém, não tem forçosamente de ser justificado estrategicamente, embora esteja disposto a abandoná-lo se se mostrar contraproducente na prática.

[Continua no comentário seguinte, porque não me cabe aqui tudo

Vítor Lindegaard disse...

[Continuação do comentário anterior]

Sobre o lixo e a questão ecológica: Ainda bem que o esquema de reciclagem funcionava bem na tua aldeia, e é possível que funcionasse e funcione assim noutra aldeias. A experiência que eu tenho de comunidades pequenas, porém, é exatamente a contrária – se houve sítio onde o lixo abundava a pontos de causar repulsa foram os dois lugares mais rurais e mais remotos onde vivi, campo mesmo campo: o Alto Molócuè, em Moçambique, e Camargo, na Bolívia. A ideia que eu tenho é que foram feitos, precisamente, muitos progressos a esse nível, nas últimas décadas e nos países mais ricos. E depois é difícil de medir o impacto ambiental do saco de papel que me dão na loja ecológica contra a garrafa de plástico do supermercado, já para não falar dos custos energéticos da produção ecológica, de maneira que não me meto por aí (nota que isto não é criticar a produção biológica, é mesmo dizer que a questão é demasiado complexa para eu ter muitas certezas). Também quem tenha trabalhado com agricultura menos moderna (como a minha mulher) te dirá que a agricultura do tempo da tua mercearia, ou muita da agricultura atual, em países pobres, não era e não é forçosamente mais ecológica do que é a agricultura industrial moderna. Nem queiras saber os tipos de pesticidas e adubos que se usavam. Se há sítio onde se deve ter cuidado com o que se compra para comer é um mercado rural do terceiro mundo... E tenhamos consciência de que o consumo de produtos locais não é apenas louvável: é-o, em parte, seguramente, mas a produção agrícola altamente subsidiada dos países ricos é, como tu sabes, um dos entraves ao desenvolvimento da agricultura em países onde 85 ou 90% das pessoas vive do setor primário. Também o controlo de qualidade moderno funciona muitas vezes como um obstáculo à produção para exportação em países pobres. Tudo isto é uma longa conversa…

Por último, a questão da felicidade. É muito difícil comparar felicidades, porque é muito difícil avaliar, medir seja lá de que forma for, a felicidade de cada um. A felicidade é, em grande parte, resultante da satisfação de necessidades e do cumprimento de deveres que são historicamente determinados (eu poderia dizer “culturalmente determinados”, mas a noção de “cultura” teria, nesse caso, um sentido diferente daquela que tem quando aplicado à “cultura alemã” ou “cultura portuguesa”). É muito difícil postular, por exemplo, que eu sou mais feliz que uma moçambicana pobre de Chimoio, mas eu prefiro ter a minha vida a ter a vida dela – e, no geral, ela também preferia, se pudesse (a aplicação deste tipo de pragmatismo é mais complicada do que parece e sei que isto é uma simplificação abusiva, mas fica o desenvolvimento da questão para outra altura, sim?). Parece-me preferível tentar tornar mais objetiva a discussão dos rumos a apontar – a discussão do projeto político, digamos assim –, utilizando uma ética negativa, como eu lhe chamo: centremo-nos em eliminar o mais possível o que tem uma elevadíssima probabilidade de ser considerado negativo por todos os seres humanos (morte, doença, dependência e incapacidade de decisão própria, opressão, excesso de trabalho, solidão, etc.) e deixemos a construção da felicidade, signifique ela o que significar para além da negação destes males, para a esfera do individual.

Na Dinamarca, para responder à tua pergunta (e creio que se passa o mesmo noutros países ricos da Europa), os velhos têm, normalmente, conforto, atividade e vida social (relativamente, claro está, dentro do limite das suas capacidades físicas, porque, enfim, quando se é velho…), mas sentem muito a falta da vida profissional. A situação é capaz de se alterar se/quando vierem a ter menos dinheiro…

Mais uma vez obrigado pela discussão!

P.S. Na Dinamarca, diz-se obrigado por tudo: “obrigado pela comida”, quando acabamos de comer; “obrigado pela última vez”, quando encontramos alguém com quem estivemos há pouco tempo; “obrigado por agora”, quando nos vamos embora; “obrigado pelo jogo”, no fim de um jogo de cartas ou de bilhar, etc. Na Alemanha também?

Helena Araújo disse...

Olá Vítor,
Já cá volto. De momento não tenho nem tempo de ler o que escreveste - desculpa!
Pois: queria só avisar que não sou bate e foge, é mesmo só por absoluta falta de tempo. Até já.

Vítor Lindegaard disse...

Nunca me passou pela cabeça que fosses uma coisa dessas! Mas também não te deves sentir obrigada a nada, mal feito fora. Eu sei bem que o tempo é escasso para as conversas todas. Tenho, porém, o maior gosto em continuar a troca de ideias, se for caso disso. Até já, então! :)

Silvana Marques disse...

Passado que é, passado que foi…
Passado espapaçado: nem esmiuçado…
O que se terá passado?
Passou-se... Passou-te… Passaste-te…
Passas-te, ainda, a cada passo dado…
Em passo descompassado…
Ao passado?
Que importa?
Como tens passado.
Mais nada.

Vítor Lindegaard disse...

Olá Silvana!

Silvana Marques disse...

Olá V:-)

Apeteceu-me falar no fala-só. Sem bjeca nem nada...

Penso que o passado não está tão lá atrás assim.
Nas nossas recordações do passado tendemos, por vezes a dizer que foi “há séculos” e que era tão bom, não tinha nada a ver com a labuta fajuta de agora, enfim… Estávamos mais jovens, mais bonitos, mais parvos (consideramos que se tratava de uma doce parvoíce). Ou então, como não o chegámos a viver porque ainda não teríamos nascido, fantasiamos sobre o seu bucolismo poético, a sua simplicidade pueril, a sua beleza naive…
Não concordo nada com isto, com esta visão estupidificante da realidade, alizando altos e baixos passados simplesmente porque já não nos pertencem, já nada temos a temer deles e então, colorimo-los qual foto a preto e branco retocada ou obra revista e melhorada.
Eu tenho boas e más recordações do meu passado, tenho sentimentos e arrependimentos, saudades e suspiros de alívio, nostalgias e alegrias. Como qualquer pessoa, acho. Não é por isso que ele foi pior ou melhor do que “devia ter sido”. Foi o que foi, não lhe mexo mais. Quanto muito (quanto muito ou quando muito, Vitinha?), faço como o outro, lembro-me muito melhor e com muito mais nitidez das coisas boas. Ou, pelo menos, julgo-as agora assim, boas, doces, intocávelmente bem feitas, moldadas na perfeição que só o passado consegue.
Em relação ao passado social, ao passado de todos, também não me parece que tenha tido coisas melhores que as que temos agora. Excepcionalmente, sim, acredito. Estragámos alguns “brinquedos” que estavam à nossa mercê; sobretudo, estragámo-los irremediavelmente, como tem acontecido com tantas paisagens naturais, nichos ecológicos, ecologias humanas, também, porque a humanidade tem penetrado nos buracos mais reconditos do planeta Terra. Logo, hoje não existe, para muitas pessoas, aquela ribeira translúcida onde se bebia água fresquinha e mergulhava de contente ou aquele pinhal onde apanhávamos as pinhas e lambuzavamos os dedos a tentar sacar os pinhões, ou… tantas outras recordações do género que não podemos mostrar aos nossos filhos porque o pinhal era ali mas já não existe ou porque a ribeira cheira mal e não nos podemos dela aproximar, etc.
Uma das minhas filhas comentou uma frase num teste da escola: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Ela, corajosamente, adolescentemente, disse que não concordava, se os tempos pareciam ser outros, as vontades nem por isso – os homens continuam iguazinhos na senda de mais poder e na ganância de um lugarzinho no paraíso do euromilhões. Está na altura de mudar de atitude, escreveu ela. Eu concordo com ela e repito: penso que o passado não está lá tão atrás assim. Quanto à vontade, insisto com Kant, na força da razão. Haja força de vontade, em qualquer lugar e em qualquer tempo.
Em relação à atitude, calma, não necessitamos de megalomanismos.
Agora era suposto entrar aqui uma citação, penso que de Saramago, que dizia qualquer coisa sobre um engraxador de sapatos. Ou antes, ele é que dizia qualquer coisa de muito importante, do género, “Eu? Eu engraxo sapatos.” Mas não me lembro agora onde a li….

Silvana Marques disse...

Esqueci-me de dizer "Obrigada!".
Perguntaste à Helena se se diz muito "obrigado/a" na Alemanha.
Eu passo a vida a dizer "obrigada" - penso, no entanto, que não é é um traço português, mas silvanês e reveste-se de sentidos vários, consoante as aplicações contextuais. Bom, esta ficará para outra "conversa" na Fala-Só.
Obrigada.

Silvana Marques disse...

errata (grandes gafes): onde se leu "alizando" leia-se "alisando"; onde se leu "intocávelmente" leia-se "intocavelmente"; onde se leu "naive" leia-se "naïve"; onde se leu "reconditos" leia-se "recônditos"; onde se leu "iguazinhos" leia-se "iguaizinhos". Outras são de propósito. E outras virão (esperemos que sim;-)

Vítor Lindegaard disse...

Eu compreendo-te muito bem, Silvana: também não sei escrever nada sem gralhas e, de cada vez que releio um texto meu, encontro uma ou duas - ou mais. Mas as gralhas contam pouco, o que conta é o que se diz. Muito obrigado pelos teus comentários e um beijinho.

Helena Araújo disse...

Vítor,
tanta coisa para conversar!

Não me parece que temos de escolher entre Estado Social e "caridadezinha". Mas há que recolocar algumas questões:
1. As limitações do Estado Social: por exemplo, quando se espera mais do Estado do que se contribui (fugas aos impostos e às contribuições, subsídio-dependência e outros abusos do sistema, o adiamento da idade da reforma porque não há como pagar pensões a tanta gente, o problema grave do custo dos cuidados médicos para os idosos), uma burocracia cara e muitas vezes ineficiente, etc.
2. Se deslocamos a assistência para o Estado, não nos tornamos insensíveis às pessoas ao nosso lado? Eu sinto um bocado o impulso de encolher os ombros e entender que deve haver um assistente social que trate daqueles casos (depois envergonho-me desse comodismo egoísta).
3. "Caridade" é uma palavra com uma conotação terrível. Mas "solidariedade" e "sentir-se responsável pelos outros" já é mais aceitável. Eu não sou adepta de uma "caridadezinha" de tia, mas pergunto se não podemos treinar uma maneira responsável de estar uns com os outros.

Helena Araújo disse...

Tenho a sensação que tu tendes a ver com cores muito negativas o que eu vejo com cores positivas. Por exemplo: a minha avó também tinha um pobre que vinha às sextas-feiras. De algum modo, fazia parte da nossa vida: era tratado com respeito, a minha avó tinha um cesto preparado com coisas boas para lhe dar. Bom, se falo disto agora, até me arrepio com a ideia de alguém ter de viver da boa-vontade dos outros, ter de pedir comida. Mas mesmo assim vejo os laços humanos que havia entre aquelas duas pessoas, e que me parece que iam muito para além daquilo que desvalorizas como respeitinho pelo controle social da aldeia. Tal como dar os melhores pedaços do porco: não era só porque a minha avó pensava que era isso que esperavam dela. Penso que o fazia por ser aquilo que esperava de si própria.

Posso fazer o exercício inverso, e ver os lados negativos do sistema de Estado Social que tu defendes: as famílias que já vivem há gerações na dependência da Segurança Social, e a dificuldade de incutir nos mais novos a ideia de que trabalhar é um modo de vida; o modo como se abusa dos sistemas de apoio com todo o tipo de artifícios legais (como a família que processou a câmara municipal alemã por esta ter comprado um lote de máquinas de lavar a roupa, de modo a reduzir custos: em vez de pagar as máquinas uma a uma, tinha-as disponíveis para entregar a quem precisasse, e ficava-lhe bem mais barato. Mas a família entendeu que isto era um atentado ao seu direito de livre escolha do modelo de máquina, e não é por serem pobres que a câmara os pode tratar assim - e ganharam o processo!); dos desempregados que correm as empresas em busca de um carimbo apenas para provar que passaram por lá à procura de emprego (mas só procuram realmente emprego quando o período a que têm direito de receber subsídio está a chegar ao fim), dos velhos nos lares de terceira idade e de cuidados continuados que são vítimas de sistemas de gestão que os reduz a números (1 pessoa = 5 minutos para banho + 7 minutos para lhe meterem a comida na boca + 2 minutos para mudar a cama + etc., tudo somado custa x), as crianças que morrem de fome ou de pancada e os vizinhos que se perguntam porque é que ninguém fez nada para o evitar, e os assistentes sociais a explicar porque é que não podiam ter feito nada.
Há muita coisa que funciona mal.

Contra isso, eu estaria capaz de propor mais empenhamento individual, mais atenção aos outros e também mais controle social. Embora me custe a ideia de uma sociedade de delatores. Mas também me custa a ideia de saber que o sistema está cada vez mais fragilizado devido aos abusos.
Sinceramente: não sei.

Só sei que o fundo de reformas não recebe contribuições suficientes para pagar o que as pessoas depois vão receber; que os fundos para a saúde também não têm o suficiente para pagar cuidados de medicina de ponta a todos os membros de uma sociedade cada vez mais envelhecida (aqui, há um debate urgente a fazer); que há muitos desempregados de longa duração (sobretudo na área da antiga RDA) que entendem que o Estado tem obrigação de olhar por eles, e não se disponibilizam a mudar de região, mesmo dentro da Alemanha (e eu compreendo, claro que compreendo, mas isso implica que o Estado terá de aumentar o volume de contribuições sociais).

Em suma: parece-me que o modelo de Estado Social está a mostrar os seus limites, e temos de debater propostas de solução. Que não passam, evidentemente, por demitir o Estado Social e passar a confiar na boa-vontade das tias. Mas pode passar por uma maior responsabilização de nós todos (e passará também por denúncias de abusos? ai!).

Helena Araújo disse...

Também falei na felicidade pessoal. Pobrezinhos mas felizes?

Parece-me que comparei coisas que não são comparáveis: a integração numa malha social que dá sentido (e felicidade) à vida; a falta de integração e de sentido nos casos que conheço dos pobres alemães, que recebem do Estado o básico (habitação, alimentação, cuidados médicos) mas vivem em solidão e numa certa condição de párias.

Contudo, penso que é um bom exemplo dos limites do Estado Social: não basta cuidar do bem estar material das pessoas.

Quanto à poluição e ao meio-ambiente: tens razão, claro, e temos aí também para uma longa conversa. Eu falei-te de um tempo em que ainda não havia coisas para deitar ao lixo, e de uma aldeia tão pobre que nem havia dinheiro para comprar químicos...

Finalmente, os agradecimentos: aqui na Alemanha não se agradece tudo, e alguns agradecimentos soam-me estranhos: "obrigada por me teres telefonado", por exemplo.
É um prazer debater contigo!

Helena Araújo disse...

Só mais um apontamento, de que me lembrei agora: outro dia, um primo meu, que vive na Holanda, falava do trabalho dos jovens. Todos eles tentam arranjar maneira de compor a mesada com trabalhos esporádicos na vizinhança (ir fazer as compras ao vizinho que partiu a perna, apanhar as folhas no outono, cortar a relva, etc.). Em princípio, dizia o meu primo, isto está bem. Mas arrasou a ideia da gratuidade: nenhum miúdo ajuda seja quem for sem pensar quanto é que isso lhe vai render.
Prefiro o modo como o meu filho ajuda a vizinha idosa a levar as compras para casa, por exemplo, e até se admira de esta lhe querer dar um chocolate em troca.