26/11/12

Tradução: quando não há palavra, porque não há coisa

À primeira vista, pode parecer pateta não traduzir entrecôte ou rib eye steak – para quê usar palavras estrangeiras quando temos palavras portuguesas para referir uma coisa? Temos? Temos, com certeza!, porque havia de se deixar sem nome, em português, uma parte da carne?
Bom, acho que, normalmente, se chama em português europeu bife da vazia ao que se chama entrecôte em francês e rib eye steak em inglês: um bife da parte do lombo do bovino que, no português do Brasil, se chama capa de filé e, no Reino Unido se chama fore rib. Mas nem sempre… Não há, sobretudo, correspondência biunívoca entre vazia e entrecôte, enquanto termos para designar cortes de carne, e entre cada um destes termos e rib. Segundo a maior parte do que vi sobre o assunto, a vazia cobre a entrecôte (ou uma parte dela…), mas é muito maior. E rib também: designa a entrecôte, mas também a côte, que em português é acém. Já agora, para complicar: parece que o acém designa, além da côte, o que se chama veine grasse e, segundo alguns dicionários, a entrecôte (ou parte dela, pelo menos). Pois, porque há quem diga que é acém que se chama à entrecôte e não vazia… Não é fácil perceber onde acaba a vazia e começa o acém. Nem sempre condizem as designações, é um pouco confuso…
O problema não é linguístico em sentido estrito. As tradições de corte de carne são diferentes nos vários países e, por isso, as pessoas desses países usam palavras que referem partes diferentes do animal. De facto, não é só de uma língua para a outra que os nomes dos cortes de carne são difíceis de traduzir, mas podem sê-lo também de uma para outra variante da mesma língua: encontrei informação de que a palavra francesa entrecôte não designa a mesma parte da carne na tradição de corte francesa e belga, por exemplo. Da mesma forma, rib designa uma parte maior da carne do bovino nos EUA que no Reino Unido. A julgar pela informação contraditória que encontro sobre onde começa e acaba o acém ou a veine grasse, não me admirava nada que as designações de uma mesma parte da carne variassem também dentro do mesmo país. Se calhar, até de cortador para cortador. (Hmm, devo estar a exagerar…)
Como fazer então, quando se tem de traduzir « Une entrecôte maître d’hôtel bleue à la six, et que ça saute! »? Pois… «Sai um bife da vazia – ou do acém, acho que se pode escolher, conforme o bife que se tenha em mente – com manteiga de alho e salsa, e mesmo muito, muito mal passado para a mesa seis! E rápido!» Hmmm… Ok, pronto!
Quem fala de cortes de carne pode também falar de estabelecimentos onde se vendem bebidas alcoólicas. Alguém criticava, no outro dia, usar-se pub num texto em português, quando há, na nossa língua, tantas palavras para designar um estabelecimento desse tipo. É uma crítica justa: também acho que quem escreve em português não se deve limitar a aceitar, assim sem mais, todas as palavras estrangeiras que lhe apareçam à frente. A tradução de termos destes, porém, muitas vezes não é tão fácil como parece – porque, mais uma vez, é o próprio conceito expresso pela palavra na língua de origem que não existe no país ou nos países onde se fala a língua-alvo. É possível traduzir o inglês pub por taberna ou tasca, como já vi propor. Mas nem sempre fica bem. Funciona se a frase for do tipo «passava a vida na tasca com os amigos» ou «bebeu uma cerveja a correr na primeira taberna que encontrou», mas soa muito estranho em frases como «encontraram-se numa tasca vitoriana chamada A rosa e a coroa» ou «entrou na taberna, foi buscar ao balcão uma pinta de cerveja preta e um pacote de torresmos e foi refastelar-se numa das poltronas de veludo acastanhado».  
Saudades, toda a gente as tem, das pessoas e dos lugares de que gosta e de que está longe; e não há língua nenhuma em que não haja uma expressão simples para as dizer. Agora, acém e faux-filet, essas é que são as verdadeiras dificuldades culturais da tradução.

[Adenda a 19 de junho de 2015, revista a 23 de fevereiro de 2024]
Bacon é outro bom exemplo de uma palavra estrangeira que se adota com um produto novo. A minha avó conheceu o produto bacon na mesma altura em que eu o conheci e aceitou o nome inglês, que pronunciava beique. À pergunta “É mesmo necessária a palavra inglesa?”, a resposta é que não, como nunca é, nem que tenha de se criar uma palavra nova. Como se diz então bacon em português?
Em abstrato, creio que não se pode mesmo traduzir diretamente sempre da mesma maneira, porque a palavra inglesa não refere um produto apenas, mas vários e, ao que sei, não temos nenhum termo ou expressão que cubra os mesmos significados. A tradução toucinho fumado, que já vi proposta, pode funcionar às vezes, se for de smoked bacon que se está a falar, mas nem todo o bacon é fumado, e nem sequer curado, porque há bacon fresco (green bacon). O bacon do ombro e outros cortes de bacon não têm mesmo nada de toucinho.
Mas é certo que isto são produtos mais raros, não precisam tanto de tradução... Atenhamo-nos então ao bacon mais comum, o chamado streaky bacon, vá, para não nos perdermos em complexidades gastronómicas. Como a palavra toucinho é muito abrangente (fumado ou não, é às vezes fat, às vezes lard e às vezes bacon), para o streaky o melhor seria, provavelmente, usar entremeada, que é como se costuma chamar a esse toucinho entremeado. Até porque toucinho fumado só, sem mais, faz-me antes vir à mente um tipo específico de bacon com pouca ou nenhuma carne – que se encontra, sob várias designações, em vários países (como o que se vê nesta imagem). Posso, aliás, querer dizer que no outro dia (é verdade), o supermercado tinha bacon fumado (røget bacon) mais caro que (arrisco…) toucinho fumado (røget spæk). Não sei se se tinham enganado a pôr os preços, porque normalmente é ao contrário…
Entremeada curada, ou salgada e defumada, ou algo assim, tem poucas possibilidades de vingar e é mais realista aceitar, estou eu em crer, que bacon é palavra importada que veio para ficar em português e em muitas outras línguas. Talvez se possa começar antes a pensar numa maneira de aportuguesar a grafia, mas bêicone, hmmm, não me cheira… (E depois, em resolvendo isto do bacon, a ver se começamos a pensar em como chamar em português às costeletas kasseler…)

2 comentários:

Leonor disse...

Acabei de escrever um texto com pub lá pelo meio e não o podia substituir por nada mais. Um pub é um pub :)

Vítor Lindegaard disse...

É isso. Não serve tintinhos com mistura nem meias de leite, não pode ser taberna nem café. E nas tabernas e nos cafés ninguém nos pergunta se queremos muita ou pouco espuma na imperial...