26/09/12

Filosofia de algibeira #3

Moral vem do latim moralis, relativo a mores; e alguns dicionários dizem que mores significa “costumes”, outros que significa “maneiras, comportamentos”. Seja lá como for, e por muito que influam sempre nos comportamentos, os costumes são maus argumentos morais, isto é, são maus argumentos quando se discute um código de comportamentos, o que é bem ou mal, o que se pode ou não fazer. Nem sequer é argumento, aliás, defender que algo se possa fazer ou se deva proibir porque é ou não é tradição fazê-lo – é antes uma falta de argumento, precisamente, uma injustificação.

Se estão certos os dicionários que dizem que a moral começou por ser relativa aos costumes, para ela deixar de ser algo indiscutível e podermos todos ter algo a dizer sobre as regras a que devemos obedecer (para que haja, em suma, uma moral democrática), podíamos então dizer que há que desetimologizar a moral: podemos achar que uma tradição é boa ou má, mas não a invoquemos como justificação do valor de uma proposta moral, sim?

Lugares demasiados comuns #2

E oiço amiúde: “O importante é estarmos em paz connosco próprios” – ou qualquer frase semelhante.



Por muito que dê voltas à frase, não consigo encontrar-lhe outro sentido que não seja uma proposta, que não me agrada nada, de não julgarmos as nossas próprias ações, crenças e ideias. Então não é em guerra connosco que devemos estar sempre?

Filosofia de algibeira #2

Acho que quem cultiva o espírito competitivo o deveria levar às últimas consequências e devia querer ganhar em tudo: ser o mais rápido, mas também o mais lento; o mais rico, mas também o mais pobre; ter as notas mais altas; mas também as mais baixas; ser o mais sabedor, mas também o mais ignorante; e assim sucessivamente.

*

[Não é nenhum texto zen, é só uma brincadeira, pouco mais que um disparate. O facto é que ignorar é igual a não saber, não esquecer a lembrar, jejuar a não comer; mas não é por a mesma coisa se poder dizer tanto de uma forma afirmativa como negativa que positivo e negativo passam a ser só uma questão de como as coisas se dizem. Existem mesmo fora das palavras. Ah, e não se consegue fazer uma competição para ver quem chega em último, mas isso talvez seja outra conversa. Os livros de recordes, porém, e várias enciclopédias estão cheios de “o mais pequeno”...]

Lugares demasiado comuns #1

E oiço amiúde: “O importante é tu seres tu próprio” – ou qualquer frase semelhante.



Bom, x é sempre igual a x e não pode ser diferente de x. A proposta não faz sentido: uma pessoa é sempre ela própria; e, mesmo quando não acredita que o é, é ela própria que o não acredita, obviamente.

*

[A palavra próprio parece dispensável, pelo menos neste tipo de frases. Porque se usará? E donde virá a ideia de que uma pessoa pode não ser ela própria? A explicação pode ser que, como há quem proponha, a consciência de si deriva da consciência dos outros.]

24/09/12

Filosofia de algibeira #1



“Carpe diem! Carpe diem!”, ouço propor, e penso assim:
“Mas não seria a vida um lugar melhor se, em vez de nos preocuparmos com o que dela levamos, nos preocupássemos antes com o que nela deixamos?”

Palavras, pensamento e perceção, mais uma vez (2) [e um estudo fantástico]

Falava eu no texto anterior do ressurgimento da ideia de que a língua condiciona a nossa perceção do mundo e de como estava disposto a rever a minha posição relativamente a essa ideia: se até há pouco a recusava liminarmente, algum trabalho feito ultimamente leva-me a aceitar, em determinadas casos, essa possibilidade[1].
O que quero agora acrescentar é que, se alguns trabalhos destes novos relativistas linguísticos[2] me impressionam pelo seu rigor, fico também por vezes com a sensação de que nem sempre repensam suficientemente os conceitos linguísticos com que trabalham. No tratamento do tempo linguístico, encontram-se muitas vezes exemplos desta ligeireza teórica, como eu digo[3]. Eis um deles: no artigo “Does Your Language Shape How You Think?”, publicado no New York Times de 29 de agosto de 2010, diz-nos o linguista Guy Deutscher (traduzo eu):
Se quiser contar em inglês um jantar com o meu vizinho ou com a minha vizinha (…), tenho de dizer alguma coisa sobre a localização temporal do evento: tenho de decidir se jantámos, se estivemos a jantar, se estamos a jantar, se havemos de jantar, etc. O chinês, em contrapartida, não obriga a especificar o tempo exato da ação desta maneira, porque se pode usar a mesma forma verbal para ações passadas, presentes ou futuras.
A maneira como Deutscher apresenta a questão, por muito que seja seguramente convincente para a maior parte dos leitores do artigo, é demasiado simplificada, ao ponto de ser incorreta. Em primeiro lugar, mistura – ou confunde – tempo com outras categorias: a diferença entre have eaten e have been eating (que só em contextos específicos, note-se, correspondem às formas portuguesas que usei para as traduzir) não é de caráter temporal, mas aspetual, ou seja, não tem a ver com tempo, mas como a ação nos é apresentada, como vista do exterior ou do interior, como terminada ou em curso, etc. Esta falta de rigor, porém, pode desculpar-se-lhe, admitindo que não queira complicar as coisas para o leitor do New York Times. Já mais grave me parece que chame a exprimir tempo linguístico “especificar o tempo exato da ação”. O tempo linguístico tem muito pouco a ver com o “tempo exato” e o tempo exato exprime-se com recurso a horas, dias e meses, não a formas verbais. Mas, em última análise, também isto se lhe pode desculpar, aceito-o perfeitamente. O que vem a seguir, já não.
O tempo linguístico (ou a combinação de tempo e outras categorias, para ser mais rigoroso) não se exprime só através da forma verbal, longe disso, e eu já vi trabalhos sobre marcações de tempo e aspeto em chinês. Deutscher não refere (porquê?) as teorias linguísticas que consideram, e demonstram com bastante subtileza, que o tempo é uma categoria universal, presente em todas as frases de todas as línguas, independentemente de ser ou não marcado nas formas verbais. Não me quero alongar nesta questão nem entrar em pormenores muito técnicos, mas, quando se fala de tempo, há que ter conta não só o verbo e a sua flexão, mas também as propriedades dos seus sujeitos e complementos, os adverbiais, as relações lógicas entre a frase e as frases anteriores do discurso, etc.
O que é estranho no ressurgir das teses de condicionamento do pensamento e da perceção pela língua é que se parece repetir um erro simples do primeiro whorfianismo, que é identificar categorias linguística e formas da língua: Whorf argumentava que em hopi (a língua ameríndia que descreveu) não havia “tempo” como em inglês, mas antes uma diferença entre “manifestado” e “não manifestado”, mas essa afirmação resulta obviamente de uma incompreensão das categorias tempo e modo. Para dar um exemplo óbvio (que não corresponde de maneira alguma ao das categorias verbais do hopi, quero deixar claro), um dos eixos de organização do sistema verbal nas línguas latinas é a oposição entre indicativo e conjuntivo que, embora suficientemente misteriosa para não haver nenhum tipo de consenso entre estudiosos quanto ao seu significado, não é seguramente do tipo temporal e poderia até definir-se (com alguma boa vontade, eu sei…) como um tipo de oposição entre manifestado e não manifestado, pelo menos se se assumir que manifestado pode significar “assumido como factual pelo locutor”… O facto é que, deixando de lado o poder de sugestão que traz agarrada a ela a referência à língua de um povo distante, com uma mundivisão seguramente muito diferente, não parece haver grande diferença na conceção do tempo, e do mundo em geral, entre uma francófona de alguma povoação do cantão suíço do Valais e uma falante do alemânico de uma povoação próxima no cantão de Berna, que tem um sistema verbal muito “temporal” e que não faz diferença nenhuma entre “ando à procura de um restaurante onde fazem bom rösti” e “ando à procura de um restaurante onde façam bom rösti”. De facto, que as formas verbais reflitam direta e essencialmente o tempo é uma característica das línguas germânicas que não se encontra nas línguas latinas, por exemplo, em que o sistema verbal, embora contenha marcas de tempo, é organizado em torno de noções de aspeto (fez vs fazia, etc.).

Um estudo fantástico
Um exemplo extremo, mas muito curioso, da falta de rigor no tratamento do tempo linguístico num trabalho whorfiano é o do estudo de M. Keith Chen “O efeito da língua no comportamento económico[4]”. Assim resume Chen o seu trabalho (traduzo eu):
Testo a hipótese de que as línguas que não distinguem gramaticalmente entre eventos presentes e futuros (o que os linguistas chamam línguas de futuro fraco) levam os seus falantes a realizarem ações mais orientadas para o futuro. Primeiro, mostro como esta previsão decorre naturalmente quando a efeitos bem documentados da língua na cognição se juntam modelos de tomada de decisão ao longo do tempo. Em seguida, mostro que, corroborando esta hipótese, falantes de línguas de futuro fraco poupam mais, guardam mais para a reforma, fumam menos e têm menos probabilidades de ser obesos, e gozam de melhor saúde a longo prazo. 
Nem mais: o estudo “demonstra” que há uma influência tão grande das formas linguística de futuro na maneira como as pessoas concebem e sentem o porvir que quem fale uma língua com formas específicas para o futuro não poupa e complacentemente se lança em comportamentos suicidas. Evidentemente, a primeira coisa que nos vem à cabeça é que há que substituir urgentemente a segurança social por uma reforma linguística que proíba o uso dessas formas verbais altamente nocivas para a sociedade. A tese é suficientemente disparatada para merecer ser ignorada com um sorriso apenas ou uma grande gargalhada, consoante o estado de espírito da altura, mas não é assim que um linguista procede. Como diz Julie Sedivy[5],
[a proposta de Chen] é demasiado intrigante para se resistir a falar nela. Na realidade, lembra-me as palavras de um proeminente linguista que uma vez afirmou durante uma palestra: “A explicação em questão é quase de certeza falsa. Se fosse verdadeira, porém, seria incrivelmente interessante, de maneira que não temos outra escolha que não seja explorá-la.”
E depois não é só isso: pode aproveitar-se para mostrar a fragilidade da classificação de Östen Dahl aqui usada por Chen – mas que pode também ser usada em quaisquer outros estudos menos fantásticos que este…
Há muitas críticas que se podem fazer – e foram feitas – ao trabalho de Chen. Críticas sobre a metodologia do trabalho, sobre inferências forçadas, sobre efeitos estatísticos incontrolados, etc. Todas elas são válidas e podem facilmente encontrá-las online com uma pesquisa simples. Muitas delas, aliás, encontram-se nos textos do Language Log para que vos remeto aqui. Mas, como no-lo recorda Geoffrey K. Pullum[6], todas essas críticas são desnecessárias, se pensarmos que a hipótese inicial de Chen dificilmente se tem de pé [tradução minha]:
Chen usa dados descritivos das línguas que vêm do projeto EUROTYP de Östen Dahl, e adota uma classificação do inglês como tendo futuro forte. Mas o inglês usa constantemente, e de forma notória, o presente para referir o tempo futuro:
Meg's mother arrives tomorrow. [“A mãe da Meg chega amanhã”. Negritos meus.]
If the phone rings, don't answer it. [“Se o telefone tocar, não atendas.”]
My flight takes off at 8:30. [“O meu voo parte às 8:30.”]
IBM is declaring its fourth-quarter profits tomorrow. [“A IBM apresenta amanhã os lucros do último trimestre do ano.”]
No próprio exemplo que Berreby dá, usa-se o inglês I am going to + verbo, alegadamente ilustrando uma marcação gramatical do futuro; mas, claro, am é o presente do verbo, por isso teria de defender-se que o uso do verbo de movimento go no seu sentido idiomático de futuro próximo conta como marcador gramatical de tempo verbal, o que levanta questões sobre se o mesmo se deve dizer de am about to e de am on the point of e por aí fora. Se o inglês tem marcadores do futuro verbal, tem pelo menos uma dúzia; mas o uso simples do presente dos verbos é uma maneira muito comum de referir o tempo futuro, e o que havemos de pensar disso? Pela minha parte, desconfio muito que se possa descrever com rigor o inglês como uma língua de “futuro forte”. Quase todos os gramáticos tradicionais descrevem o inglês como tendo um sistema de tempos verbais que inclui uma forma verbal de futuro, mas isso não é bem verdade; will é um auxiliar modal que também tem diversos outros usos. Se a apresentação dos factos é pouco sólida relativamente ao inglês, que probabilidade tem de ser rigorosa em línguas que não foram estudadas de forma tão intensiva?
Podemos ver o caso do português. Mas, primeiro, há que detalhar mais a perspetiva de Chen. Na sua demasiado ligeira introdução à questão da problemática do futuro, diz-nos ele no estudo referido (traduzo eu):
As línguas diferem no facto de exigirem ou não que os seus falantes marquem eventos futuros. Por exemplo, um falante do alemão que preveja chuva pode, de forma natural, fazê-lo no presente, dizendo: Morgen regnet es o que se traduz por “Chove amanhã”. Em contrapartida, o inglês exigiria a utilização de um marcador do futuro como “will” ou “is going to”, como em “It will rain tomorrow”.(…) Desta forma, o inglês obriga os seus falantes a codificar a distinção entre eventos presentes e futuros, ao passo que o alemão não o faz.
E acrescenta, em nota de rodapé:
É possível em inglês a referência ao futuro sem marcadores de futuro em certos contextos: especificamente com acontecimentos programados ou acontecimentos que resultem de propriedades do mundo que sejam como leis (…). Na minha análise, deixo de lado estes casos, porque, como [Dahl] mostra, “em muitas, se não todas, as línguas, este tipo de frase é tratada de uma forma que não a marca gramaticalmente como tendo referência temporal não presente (...), mesmo em línguas em que a referência ao futuro é, noutras situações, altamente gramaticalizada.” Por outras palavras, a forma como os acontecimentos programados são tratados não reflete o tratamento geral da referência ao futuro numa dada língua.
Ora bem, na classificação de Dahl, o português europeu é classificado como língua de futuro forte e o português do Brasil como língua de futuro fraco. Em português, no registo oral quotidiano, cada vez mais a forma verbal do futuro tem um uso a que chamarei exclusivamente modal para simplificar («Onde andará agora a Rita?») e só é usado temporalmente num registo mais cuidado (situações formais, língua escrita)[7].
Como podem facilmente constatar prestando atenção ao que se diz ao vosso redor, usam-se, para indicar o tempo futuro, além das formas chamadas perifrásticas ir+infinitivo e haver de+infinitivo, o presente do indicativo. Mesmo que consideremos as perifrásticas “marcas gramaticais de futuro”, elas não são sempre obrigatórias, longe disso, e o presente parece até ser a forma mais utilizada em frases em que há uma referência temporal explícita no futuro:
«O que é que fazes hoje à tarde/no Natal?»
«Não faço nada de especial, porquê?»
Não é perfeitamente natural em português, digam-me lá, eu perguntar a uma pessoa «Então, amanhã chove ou não?» e essa pessoa responder-me «Chove, pois, de certeza absoluta»?
Então, aceitando as restrições de Chen de não contar subordinadas (porquê?) nem eventos programados, continua a ser muito duvidoso que o português europeu seja classificado como língua de futuro forte, não é verdade? Mesmo sem analisar como se chegou a esta conclusão, posso constatar, pelo que explico atrás, que é fácil considerá-la de rigor extremamente duvidoso. Como é, aliás, extremamente duvidoso que haja na marcação verbal do futuro diferenças tão grandes entre o português dos dois lados do oceano que o português americano seja, ao contrário do português europeu, uma língua de futuro fraco[8].
Podíamos continuar a analisar a expressão do futuro em muitas línguas, em todas até, muito provavelmente para chegarmos sempre a mais dúvida do que aprovação relativamente aos axiomas de que Chen parte. Tenho uma atitude muito mais radical que Pullum ou menos diplomática, se preferirem: a divisão entre línguas de futuro fraco e de futuro forte é impossível de provar. “Os linguistas” não chamam futuro fraco a nada. Há linguistas que usam esse conceito, mas são, obviamente, uma minoria e o conceito é de produtividade duvidosa. O trabalho que Chen se propõe fazer não pode ser feito. E Chen devia referir muitos outros linguistas além de Östen Dahl, para ficarmos então a saber o que dizem “os linguistas” sobre o futuro linguístico e os seus marcadores.
Quero com isto tudo chegar a uma conclusão simples: quem queira estudar uma relação entre um fenómeno linguístico e um fenómeno percetivo ou social deve ter sempre também o cuidado de pensar e repensar muito bem os aspetos linguísticos da questão a estudar – sobretudo os pressupostos linguísticos em que a hipótese assenta… Que o que acabo de escrever é disparatado, por demasiado óbvio? É certo. Mas a verdade é que nem sempre assim se faz…
__________________
[1] Ver também, sobre o tema, este meu texto,  e este e este, todos aqui na Travessa do Fala-Só.
[2] Ou neowhorfianos, como lhes chamo – de Benjamin Lee Whorf, conhecido por propor esta tese, nos anos 30, juntamente com Edward Sapir. Links para 4 resumos da hipótese de Sapir-Whorf: Wikipédia em português (muito pobre), Wikipedia em castelhano, Wikipedia em inglês e Stanford Encyclopedia of Philosophy (em inglês).
[3] O tempo é uma área por que tenho especial interesse e, por isso, reparo mais nas incorreções nessa área e analiso-as com mais facilidade. Já aqui tinha referido a falta de rigor de Lera Boroditsky no tratamento do tempo linguístico: ver a segunda parte deste texto, que começa com “O trabalho de Boroditsky é, repito, um trabalho científico cuidado…”.
[4] Chen, M. Keith. The Effect of Language on Economic Behavior: Evidence from Savings Rates, Health Behaviors, and Retirement Assets, Yale University, School of Management and Cowles Foundation, agosto de 2012. Aqui.  
[5] Em “Thought experiments on language and thought” de no site Language Log. Quem queira aprofundar a discussão do trabalho de Chen pode perfeitamente partir daqui, porque ele foi muito discutido no Language Log.
[6] No seu artigo “Keith Chen, Whorfian economist”, também no Language Log.
[7] Muita gente argumentará que raramente ou nunca se pode isolar o valor “exclusivamente temporal”, mas não quero lançar-me agora nessa discussão.
[8] Pode ser que os brasileiros poupem mais que os portugueses, não sei, mas isso é – pelo menos, para mim – uma questão muito diferente (smile).

12/09/12

Palavras, pensamento e perceção, mais uma vez (1)


A  adoção de uma atitude racionalista implica predispor-se a mudar de crenças a qualquer momento e passar às vezes a defender o que antes se atacou, em função, claro está, da força dos argumentos e provas que vão sendo apresentados numa discussão. Se há pessoas a quem causa grande desconforto aceitar a volubilidade das suas convicções e que preferem, para o evitar, perfilhar certezas perenes, para outras ‒ para mim ‒, essa instabilidade é a vantagem não só epistémica como moral do racionalismo.
Para banalidade, não está mal. Mas é uma introdução apenas, espero que o que se segue seja menos corriqueiro. Já mudei de campo duas vezes na discussão da influência da língua sobre o pensamento. Quando comecei a interessar-me pela questão e a refletir sobre ela, tomei, de uma maneira algo ingénua, o partido dos chamados whorfianos, o relativismo linguístico: as categorias linguísticas, pensava eu, como muitos pensam, introduzem cortes no continuum da realidade e a maneira como percebemos e concebemos o mundo é, por isso, determinada pela língua que falamos. O bilinguismo, dizia eu ‒ e sentia-o ‒, resulta numa cisão da personalidade: é-se de uma maneira numa língua e de outra maneira noutra.   
Quando comecei a estudar linguística, comecei a compreender melhor o que, sob a superfície da diferença, há de invariável nas línguas todas. Comecei também a compreender a ingenuidade da abordagem de Whorf e a dar-me conta da enorme falta de observáveis que a sustentassem. A pouco e pouco, de whorfiano ingénuo, fui-me tornando um antiwhorfiano com cada vez mais (boas) razões para o ser. Isto resultou em centenas de discussões acaloradas, em conversas de café, jantares de amigos e situações afins: o discurso whorfiano é extremamente sedutor e, o whorfianismo, embora tivesse praticamente desaparecido das teorias e dos trabalhos de linguística, tinha-se, pelos vistos, tornando senso comum entre um vasto grupo de gente educada.
Surgiu depois, porém, uma vaga de neowhorfianos, que, ao contrário de Whorf e de muitos whorfianistas clássicos, começou a fazer trabalho experimental sério e a defender uma versão fraca da teoria, muito mais razoável que as suas primeiras formulações. Estes neowhorfianos têm vindo a trazer à discussão argumentos mais sólidos que os que até aí tinham sido apresentados  a favor da hipótese de influência da língua na cognição e eu predispus-me a aceitar que o léxico possa, de facto, determinar certas capacidades ou hábitos cognitivos. Mas claro, não o aceito sem certas reservas: creio, por um lado, que, em muitos casos, está ainda por demonstrar essa influência; e não sei até que ponto é que é a influência do léxico se pode sempre considerar uma influência propriamente linguística.
Já o disse aqui uma vez, a propósito da constatação de uma relação entre língua materna e discriminação de cores ao nível percetivo[1]:
[O léxico] é a parte menos linguística da língua. O léxico, comparado com as estruturas sintático-semânticas e sobretudo as estruturas fonéticas, é facilmente alterável, e em qualquer língua se podem introduzir, com grande rapidez e sempre que seja necessário, novas palavras para dizer novas coisas (também cores…). Além disso, o rigor na classificação das cores (...) pode variar muito de indivíduo para indivíduo entre os falantes de uma mesma língua – pode haver quem saiba o que é azul ultramarino e quem não o saiba e seria interessante comparar como afeta a cognição das cores a maior ou menor educação cromática, digamos assim…
Ao contrário das estruturas morfossintática e fonético-fonológica, o léxico muda com facilidade, tanto na sua disponibilidade na língua como na utilização que cada um dele faz, e é ao nível do léxico que as línguas mais interagem umas com as outras, e com mais facilidade, importando e exportando palavras. Por ser a menos linguística parte da língua, ou a mais superficial, se preferirem, o léxico é o que de menos próprio tem cada língua. Não considero, por exemplo, que seja fator definidor do português ter as palavras unto ou malandrice, mas é com certeza definidor do português ter a possibilidade de flexionar em pessoa o infinitivo, ter uma estrutura silábica independente da estrutura morfológica, ter redução de determinadas vogais átonas, etc[2]. Bem vistas as coisas, a tese neowhorfiana não parece ser que a língua influencia a conceptualização e a perceção, mas antes que o hábito de usar determinadas palavras o faz. Ora isto é, com rigor, independente da língua em sentido estrito
Pode haver argumentos fortes a favor da hipótese de que a interiorização de um conceito lexicalizado pode influenciar determinadas capacidades ou perceções. Por exemplo, que existe uma ligação direta entre as categorias cognitivas de cor e as palavras usadas para as descrever e que, por isso, as pessoas que falam línguas em que se distingue azul e verde conseguem mais rapidamente perceber mais nuances nessa zona do espetro das cores. Mas a variação do léxico não se faz só de língua para língua. Ela faz-se também no interior de uma língua, como a imagem abaixo mostra de forma claríssima; donde que, quando se estuda a influência da “língua” na perceção das cores, um dos primeiros testes de controlo a fazer para saber até ponto essa influência é efetivamente da “língua”, em sentido estrito, devia ser estudar a influência nessa perceção de léxicos diferentes interiorizados por falantes de uma mesma língua. Parecerá evidente, mas nunca tal vi. Se se faz, faz-se muito pouco. Obviamente, a temática das cores é um só exemplo, talvez o mais imediato, e o mesmo se aplica a outros campos lexicais.


Sobre a figura: Não consigo saber qual é a origem desta imagem que circula pela Internet. As versões com melhor definição estão escritas em russo, pelo que talvez seja uma adaptação de uma imagem russa, não sei. A imagem pretende dar conta das diferenças de género da perceção das cores (também não descobri ainda em que estudo ou estudos se baseia), mas não é para esse fim que a uso, mas para demonstrar o facto simples de que duas pessoas que falem a mesma língua podem ter léxicos diferentes, e com diferentes graus de sofisticação, para descrever as cores – e outras categorias cognitivas. Os nomes de cores que aparecem à esquerda não são, muitas vezes, as suas designações mais comuns (parecem ser antes uma designação intuitiva baseada sobretudo em frutos e plantas), mas todas estas cores têm nomes que, apesar de relativamente correntes, estão longe de ser conhecidos por toda a gente. Agora, para verem que sou, como afirmava no início, um racionalista efetivamente aberto a ser convencido do contrário do que penso, vou dar aos neowhorfianos argumentos (que, curiosamente, nunca vi por eles referidos – o que não quer dizer que o não tenham feito, claro está) para defender impactos prováveis na perceção de fatores profundamente linguísticos e que apenas se podem adquirir relativamente cedo, como sejam a estrutura fonológica da(s) língua(s):
No seu livro Musicophilia (London: Picador, 2008) Oliver Sacks refere (p. 136) um estudo de Diana Deutsch et al.[3], sobre a incidência de ouvido absoluto[4] em duas populações de estudantes de música:
“Entre estudantes que tinham começado a receber educação musical entre os 4 e os 5 anos, (…) cerca de 60% dos estudantes chineses [do Conservatório Central de Música de Beijing] obedeciam ao critério de ouvido absoluto, ao passo que só 14% dos estudantes dos Estados Unidos, falantes de línguas não tonais, obedeciam aos critérios.” Entre os que tinham começado a receber educação musical entre os 6 e os 7 anos, os números dos dois grupos eram proporcionalmente mais baixos, cerca de 55% e 6%. E entre estudantes que tinham começado a receber educação musical ainda mais tarde, com 8 ou 9 anos, “cerca de 42% dos chineses obedecia aos critérios, ao passo que nenhum dos estudantes falantes de línguas não tonais dos Estados Unidos o fazia”. Não havia diferenças de género em nenhum dos grupos. Esta patente discrepância levou Deutsch et al. a conjeturar que, “se lhes for dada essa oportunidade, as crianças jovens podem adquirir ouvido absoluto como característica do discurso, transportando-o depois para a música.”
O fator que aqui está em causa é a tonalidade do chinês, isto é, o facto de uma mesma sílaba dita com diferentes “melodias” (ascendentes, descendentes…) ter diferentes significados. Se se puder confirmar que a competência tonal na língua pode influenciar a capacidade de reconhecer altura absoluta de um som musical, aí sim, temos verdadeira influência da língua nas capacidades cognitivas de uma pessoa. Now, you’re talking, como diz o outro.
_______________
[1] Ver, por exemplo, o estudo de Jonathan Winawer et al. cujo resumo está disponível aqui; e também os outros estudos que o referem e para os quais há links disponíveis ao fim da mesma página.
[2] Embora nenhuma destas caraterísticas seja exclusiva do português, note-se. Não considero aqui definidores os traços exclusivos, até porque não sei se tal coisa existirá, mas sim a maneira única como se agrupam traços que existem também noutras línguas.
[3] “Absolute pitch among American and Chinese conservatory students: prevalence differences, and evidence for a speech-related critical period” in Journal of the acoustical society of America 119(2) (2006), pp. 719-722
[4] Ouvido absoluto é a capacidade de reconhecer a altura absoluta de um som e, por conseguinte, de o situar imediatamente na escala standard: “o meu pai assoa-se em lá”.

[O texto foi revisto e aumentado a 12 de julho de 2023]

Os caminhos da vida, como se costuma dizer


Mais uma metáfora vazia, ou seja, que não o é de nada em especial, mas que provavelmente se pode aplicar a vários acontecimentos ou a vários aspetos da vida ‒ ou à vida em geral, se é que tal coisa existe…:
Pode escolher-se encher mais ou menos os pneus de uma bicicleta. Se se os encher mais, a fricção no solo é menor e a bicicleta torna-se mais leve, mas sente-se mais qualquer irregularidade do pavimento; se se os deixar mais vazios, sente-se menos ao passar por pedrinhas, lombas ou buracos, mas tem de se fazer mais força ao pedalar.
Já uma vez, há muitos anos, tinha escrito em Moçambique uma coisa semelhante, também sobre pneus (mas pneus de carro) e as estradas da Alta Zambézia:
A vida é assim: se andamos na lama, temos de ter pneus fininhos, porque não há maneira de ficar à superfície e então o melhor é ir ao fundo o mais depressa possível, para agarrar solo firme; se andamos na areia, o melhor é ter pneus tão largos quanto possível, para não irmos tanto ao fundo, porque não há solo firme lá em baixo e, se nos enterrarmos mesmo, já não saímos. E vão sempre alternando, pela estrada fora, lama e areia, mas não se pode andar a mudar de pneus de cinco em cinco minutos...

01/09/12

E quem é que fala connosco?

Há uns meses, a minha mulher explicou à mãe dela o que faz no emprego que agora tem:
«Em 2020, haverá, na Dinamarca, mais 200.000 idosos que agora e menos 200.000 trabalhadores a prestar assistência direta a idosos e portadores de deficiência. Temos de começar a fazer alguma coisa. E então, nós promovemos o que se chama “tecnologia do bem-estar”, que é tudo, desde máquinas a sistemas de comunicação, o que contribua para que as pessoas idosas, sobretudo, possam ter uma vida melhor e mais independente em casa, sem terem tantas pessoas a ajudá-las. Pode ser desde sistemas que detetem automaticamente quedas ou outras situações de emergência até robôs que as ajudem a tomar duche ou lhes aspirem a casa. Os robôs-aspiradores são, precisamente, um bom exemplo de um melhoramento com redução de pessoal, porque fazem o trabalho que é agora feito por um trabalhador da assistência social, mas, enquanto esse trabalho só é feito atualmente de duas em duas ou três em três semanas, depois poderá passar a ser feito quando a pessoa quiser... »
«Mas então», interrompeu a minha sogra, que recebe, precisamente, assistência domiciliária, «e quem é que fala connosco?»