25/12/12

Socas, integração cultural e o ideal conservador [Crónicas de Svendborg #13]

Ao contrário do que muita gente pensa, a integração noutra cultura começa de cima para baixo, da cabeça para os pés: as primeiras coisas que se adotam são palavras, conceitos, ideias; e as últimas são os sapatos. Quantas vezes não vi (por exemplo!) gente do Sul da Europa que, nos países do Norte, ao fim de lá viver dezenas de anos, ainda continua a usar daqueles corriqueiros mocassins a que o filho de uma amiga minha, nado e criado em Roterdão, chamava “sapatos à turco”, quando vinha nas férias a Portugal. Não são mocassins desses que uso, não é isso, mas onde quero chegar é que agora que tenho, finalmente, as minhas socas, posso considerar-me integrado na cultura dinamarquesa.
 
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[Nota 1: É mentira I] Não é verdade, já tive outras socas antes destas. Mas era uma maneira de compor o texto, se é que me faço entender, apresentar as coisas destas maneira…
[Nota 2: É mentira II] As socas não são um tipo de calçado especialmente dinamarquês. Como os barretes, as gaitas de foles e os torresmos, as socas são comuns a toda a Europa – e talvez também a outras partes do mundo… Agora, dos países que conheço, a Dinamarca é aquele em que se usam mais no dia-a-dia. Ainda hoje, por exemplo, quando entrámos na taberna local, aí por esse meio-dia, dos 5 homens sentados ao balcão em frente à sua cerveja de Natal, 4 usavam socas.
[Nota 3: A utopia conservadora] Deixem-me contar-lhes, a propósito, que, quando íamos pagar, o dono do estabelecimento explicou que não tínhamos de pagar nada, que o café e a cerveja eram por conta da casa, porque hoje era dia de Natal. É simpático, não é verdade? É simpático como o cordial “Feliz Natal!” que toda a gente diz a toda a gente que cruza na rua, aqui na aldeia. É este tipo de gestos e práticas que o imaginário e a ideologia dos conservadores elevam a ideal – o encanto da vida comunitária “de outrora”, que consideram ameaçado ou destruído pelo progresso e que propõem que se conserve ou se refaça. Mas esquecem sistematicamente o lado disfórico da medalha, que é incomparavelmente maior e tem mais de sombrio que de radioso têm as tradições idealizáveis: o outrora era (o outrora ainda é, tantas vezes…) miséria, trabalho, trabalho, trabalho, ignorância e superstição, desconforto e doença, maus tratos, violência, violências, e infindáveis etecéteras…

22/12/12

Raízes, de J. L. Corelli, traduzido por V. S. Lindegaard

[Uma história em poucas palavras ou ... Eu tenho para aqui estes textos e não sei o que hei de fazer deles]

 Já não me lembro do que estava a dizer. Sei que pigarreei no meio de uma frase e lhe pedi desculpa:
“Mas que coisa!, deve ser da chuva que apanhámos ontem e anteontem... Tenho uma rã na garganta...”
“Tem o quê?”, perguntou ela, os olhos negros muito abertos, “Uma rã?”
Rimo‑nos muito os dois.
“É uma expressão inglesa, não conhecia?”
“É provável que tenha ouvido, mas não me lembrava... É uma expressão um bocado nojenta, tem de concordar...”
Isto foi quando eu tomei pela primeira vez chá com Maria Lowell, em casa dela. A retórica não é nenhum adorno dispensável, é uma constante do falar de todos nós em todas as situações, por muito que não nos demos conta disso. E, entre formas de cortesia, frases feitas e várias figuras de estilo, há um sem número de palavras, expressões e frases que não devem, em princípio, ser literalmente entendidas, sob pena de daí resultarem situações caricatas como esta. O que também é muito engraçado é quando é ao contrário: quando deveriam ser compreendidas no seu sentido literal e, por falta de hábito, não o são.

***
Cheguei a Miri, na costa oeste, já muito perto do Brunei, em dezembro de 1941, exatamente no dia a seguir ao ataque japonês a Pearl Harbour.  Tinha vindo da Cidade de Sarawak, e feito um desvio grande pelo monte Mulu, para visitar o que dizem ser a maior câmara natural do mundo, a câmara de Sarawak, e a passagem da Gruta de Clearwater, que tem de comprimento nada menos de 51 km. Entre o Monte Mulu e Miri, tínhamos apanhado chuva forte, o que não era para admirar naquela época do ano, mas que nunca deixa de ser desagradável.
À noite, em casa do meu amigo Charles – que não via há muito tempo e que era a razão de ter vindo a Miri em vez de ter seguido diretamente do Monte Mulu para Bandar Seri Begawan –, os temas de conversa foram, como não podiam deixar de ser, a minha decisão de voltar à Austrália, o fim anunciado da dinastia de rajás brancos de Sarawak e a ameaça japonesa.
“Estou farto, Charles”, expliquei‑lhe eu, “farto de Sarawak, da Cidade de Sarawak, farto da companhia e farto do trabalho, farto de não ser capaz de me sentir em casa, compreendes? Sabes há quantos anos é que ando nesta vida assim, de um lado para o outro, sem ter aquele conforto... Que talvez seja mesquinho, pronto!, talvez seja ridículo, não sei, mas é uma coisa que nos faz falta, ou não?... Aquele  conforto de ter, eu sei lá... Um grupo de amigos, por exemplo... Um grupo de amigos já é importante, ou não?... E poder pensar assim: bom, esta é a minha casa, é aqui que vou passar o resto dos meus dias...”
“Uma mulher...”
“Porque não?”
“Não me digas que é preciso ir para a Austrália para arranjar uma mulher...”
“Talvez não. Também depende… Se o que tu queres é arranjar mulheres ou arranjar uma mulher... Não sei, nunca houve nenhuma que me interessasse, nem em Bombaim, quando lá estava, nem agora aqui em Sarawak... Por falar em mulheres, hoje fui dar uma volta até ao mercado enquanto estava à tua espera e conheci uma mulher extraordinária. Uma mulher da nossa idade, penso eu, um bocado mais nova, de pele escura mas vestida à europeia, muito bonita.”
“Maria Lowell? Meus Deus, não há dúvida, bonita mulher, para quem, como eu – e pelos vistos tu – saiba apreciar a beleza nativa. Uma beleza única, pode mesmo dizer‑se. E uma mulher interessante, também, não é? Misteriosa, fascinante… O que é mais impressionante é a educação dela, que muitas ladies invejariam… Não sei, deve ter lido muito, deve ter estudado muito, deve ter‑se empenhado muito em deixar de ser uma nativa e passar a ser uma verdadeira senhora europeia. Mas, mesmo assim, se tu soubesses tudo o que dizem dela...”
“O que é que dizem dela?”
“Coisas que não fazem muito sentido, pelo menos para mim. E com certeza que para ti também não...”
“Está bem, eu não insisto. Mas o que é que sabes mais dela?”
“Não sei muito. Sei que já vive aqui há bastante tempo, há mais de 15 anos, creio. Já cá vivia antes de eu me instalar aqui. Era casada com um comerciante inglês que morreu, um tipo chamado Peter Lowell, que eu ainda cheguei a conhecer. Ele era muito mais velho que ela. Morreu há uns cinco anos. Espera aí... Isso, coisa de cinco anos. Era bom homem, o Peter, muita gente aqui gostava dele …”
“Quer dizer, o que sabes dela é tudo sobre o marido, então?”, insisti eu.
“Mas não sei muito, o que é que queres que te diga? Acho que ela é de uma tribo Dayak do interior, Kenyah, se não estou em erro. Sei que ela e o Peter se conheceram aqui e casaram aqui, depois viveram algum tempo em Inglaterra, uns cinco anos, e depois voltaram para aqui…”
“Maria convidou‑me a tomar chá amanhã, em casa dela.”
“Morro de inveja. Caraças, porque é que nunca me convidou a mim?... Sabes, James, eu no teu lugar não perdia um convite desses.”
“Eu também não tenho intenções nenhumas de o perder, se te interessa saber... Mas deixemos isso agora, onde é que nós estávamos?”
“Dizias tu que te sentes sem raízes...”
“Bom, eu acho que não usei essa palavra, mas é, de facto, a palavra correta: raízes. No fundo, o que eu preciso, Charles, é de criar raízes!…”, concordei eu, e fiquei um bocado em silêncio, a meditar no peso daquela palavra. “Mas enfim..., mudemos mas é de assunto, até porque há assuntos bem mais interessantes que a minha pessoa: o que é que me dizes, por exemplo, ao facto de o nosso Charles Vyner Brooke ter abdicado dos seus poderes absolutos de rajá? Diz ele que quer que isso seja o primeiro passo para o estabelecimento de uma democracia em Sarawak…”
“É natural, depois do que aconteceu e está a acontecer na Índia e em todo o império.  O que eu não sei é se é apenas por isso,  ou se Charles Vyner Brooke se deu finalmente conta que isto de rajás brancos é uma coisa absurda, quase contra natura!...”
“Bom, Charles, tens de admitir que, se haver rajás brancos é contra natura, então todo o poder colonial também é contra natura…”
“Talvez, mas o poder colonial nunca quis ser poder tradicional, e é isso que é mais aberrante nesta história de Sarawak. Por outro lado, não sei até que ponto é que a democracia pode funcionar numa terra como esta… Resta esperar e ver como vão evoluir as coisas. Se os japoneses deixarem que alguma coisa evolua, naturalmente…”
O ataque a Pearl Harbour tinha, naturalmente, criado uma situação de enorme apreensão, quando não de pânico, em toda a região. Além disso, não tinha sido só Pearl Harbour que tinha sido bombardeado – os japoneses tinham também feito raids sobre Hong Kong, a Malásia,  as Filipinas, e as ilhas americanas de Guam, Wake e Midway. Para muita gente, era óbvio que Bornéu, sobretudo Victoria, estava na lista dos japoneses e havia muito quem esperasse uma invasão a qualquer momento.
“É o mais provável”, comentou Charles. “Se eles começaram o que começaram, é porque têm intenções de continuar, isso é certo…”
“E tu o que é que pensas fazer?”
“Vou esperar mais uns dias, de ouvido colado à BBC…”
“Pois, eu acho que vou fazer o mesmo. E acho que vou ter de abandonar o meu plano de continuar o meu passeio até ao Brunei e depois até Labuan antes de voltar para casa…”

***
Maria falava um inglês perfeito, com um ligeiro sotaque apenas – charmoso, por tal sinal –, mas não como os locais, que trocam sempre os “ff” por “pp” e os “vv” por “bb”.
“Como é que veio aqui parar?”, perguntei‑lhe.
“Como é que sabe que não sou daqui?”
“Bom, já me informei – sei tudo a seu respeito”, ri‑me eu.
Ela riu‑se também:
“Então já sabe que sou bruxa.”
“Não, isso ainda não sabia”, disse eu. E continuei, depois de uma pequena pausa: “Mas, agora que sei, não me desagrada nada… Nada mesmo, de facto…”
“Foi assim que vim aqui parar: tive de fugir da minha terra, porque as pessoas começaram a acusar‑me de tudo o que lá acontecia de mau – diziam que era eu que provocava doenças das pessoas e do gado, tempestades, males dos cultivos. Tinha só 18 anos e tive de abandonar tudo, família, amigos, porque senão matavam‑me.”
“E era verdade?”, brinquei eu com ela. “Quero dizer, isso de ser bruxa, de ser culpada das desgraças daquela gente?”
“Meu caro James, o que importa nestas coisas de bruxaria é se se acredita nelas ou não – neste caso, havia muita gente que acreditava que era verdade, e é isso que importa. Que importou, quero eu dizer…”
Curiosamente, não havia no rosto dela nada daquela expressão triste e meio distante que costuma acompanhar a recordação de acontecimentos dolorosos.
“Tirando isso”, continuou, “deve ser falsa a acusação que me faziam, se quer saber, porque não consigo fazer mal a muita gente ao mesmo tempo – só a uma pessoa de cada vez…”, e riu‑se outra vez. Era um riso sem o peso da ironia nem a futilidade do charme deliberado, apenas mais genuinamente alegre do que a maior parte dos risos, e era, por isso mesmo, terrivelmente sedutor.
“Ah, eu conheço uma lenda kenyah, sobre plantas mágicas”, disse‑lhe eu. Era uma história que me tinha contado uma vez um empregado da companhia na Cidade de Sarawak, já não me lembro a que propósito. “É verdade que existe uma planta que pode fazer que uma pessoa se apaixone por nós?”
“Foi só assim que lhe explicaram a lenda?”
“Foi. A pessoa que me contou isso disse que é uma planta que se dá na comida ou em infusão à pessoa que queremos que se apaixone por nós e que essa pessoa nunca mais nos abandona na nossa vida, nunca mais…”
“É uma versão muito simplificada da lenda, que é mais do que apenas uma história banal de poção de amor. Primeiro, é preciso que a pessoa que quer fazer o feitiço ingira a planta, se nunca a ingeriu. Quando se ingere a planta, ela começa a crescer no corpo, dentro do nosso corpo, e fica lá para sempre. Depois, é preciso tirar um bocado dessa planta do nosso próprio corpo e dá‑lo à pessoa que queremos que não nos abandone nunca mais. É assim.”
“É, de facto, uma versão sofisticada de um filtro de amor”, disse‑lhe eu. 
“Não creio que seja um filtro de amor. O que a lenda diz é que a pessoa nunca mais nos abandona, não que se apaixona por nós. Quer dizer, fica connosco, independentemente dos sentimentos que tem por nós. Pode mandar‑se na vida de uma pessoa, como você sabe, mas nos sentimentos ninguém manda, nem a magia…”
O sentido da lenda era, para mim, evidente. Aliás, a magia funciona quase sempre assim, por um esquema de relações evidentes. Um vegetal é símbolo de imobilidade. Vida, mas vida imóvel. Compartilhar com outra pessoa uma parte da vida que ela tem dentro de si significa, obviamente, uma espécie de simbiose com ela, uma espécie quase de fusão, uma comunhão dramática, como a de irmãos siameses.
“Mas então é uma poção ainda mais imoral que os filtros de amor vulgares”, propus eu. “Quero dizer, a supor que tais filtros existissem de facto, usá‑los seria sempre imoral: é agir sobre a vontade de uma pessoa, impor‑lhe uma escravidão; mas podemos pensar que, por outro lado, estamos a oferecer‑lhe aquilo que parece ser ambicionado por toda a gente em todo o lado, um amor eterno e indestrutível, e isso pode ser visto como uma compensação para o mal que estamos a fazer. Agora, sem que a pessoa sinta por nós amor eterno, Deus meu, é ainda mais cruel obrigá‑la a ficar connosco.”
“Para isso ser verdade, é preciso aceitar que seja bom esse sentimento que você diz que toda a gente quer sentir, essa paixão única e vitalícia… Para se contrapor ao mal que há em forçar alguém, em reduzi‑lo a uma eterna servidão. Eu não tenho essa certeza, que o amor assim seja uma coisa boa. Aliás, também não tenho a certeza que seja uma coisa a que todos aspirem. Nem toda a gente lê romances e poesia, James, nem toda a gente vive no mundo em que você e eu – eu, pelo menos até um certo ponto... – vivemos. Além disso, o que sei da paixão diz‑me que quando uma pessoa está apaixonada, a moral interessa‑lhe pouco. Não vale a pena discutir qual a maneira eticamente correta de agir quando se está apaixonado. É como quando se está a morrer de fome ou de sede, a mesma coisa. Desculpe‑me a banalidade da comparação, mas não conheço nenhuma mais eficaz.”
“Muito bem, então pergunto‑lhe assim: se você estivesse terrivelmente apaixonada e desejasse ardentemente ter a seu lado, para toda a vida, o objeto da sua paixão, diga‑me lá, sinceramente…”
Ela aproveitou a pequena pausa que fiz para completar a minha frase:
“Se era capaz de usar a magia keniah? É claro que era, James. Eu sou uma bruxa, não se esqueça.”
A conversa derivou para outros temas mais corriqueiros. Tinha a sensação, aliás, que, como acontece muitas vezes em situações deste tipo, a conversa não era senão um pretexto para estarmos ali os dois juntos e que a verdadeira comunicação entre nós era a um nível outro que não o das palavras. Começou a chover torrencialmente e tivemos de sair do terraço e correr para dentro de casa. Maria pôs música e dançámos. Uma canção francesa. Era inacreditável, tudo aquilo: eu a dançar ao som de uma canção francesa com uma dama de Bornéu…

***
Combinámos ver‑nos no dia seguinte, e no dia seguinte combinámos para o dia seguinte, e assim sucessivamente. Não havia notícias de nenhuma invasão japonesa em lado nenhum, mas a situação estava de dia para dia mais tensa. Charles decidiu que era altura de sair dali, pelo menos por uns tempos.
“Vou ficar mais uns dias, antes de voltar para a Austrália”, disse-lhe eu quando nos despedimos.
“Bom, enquanto quiseres ficar, ficas com a minha casa e com o meu pessoal à tua disposição, mas vê lá se não ficas muito tempo – não é o melhor momento para criar raízes, acho eu...”
Comecei a minha relação, digamos, mais íntima, com Maria na noite desse dia em que o Charles se foi embora. Jantámos em casa dela e, depois de jantar, dançámos uma canção apaixonada e lenta, como nos dias anteriores.
“Já chega, James”, disse ela, “não te escondo mais ­– se é que chego a esconder – a maneira como gosto de ti!”
Disse isto e beijou-me. A música continuava, mas nós tínhamos parado de dançar e beijávamo‑nos só, sôfrega e repetidamente. Quando o disco chegou ao fim, estávamos ainda ali no meio da sala, unidos ainda em beijos ansiosos, quase doridos de tanto desejo.
“Anda, disse ela, anda comigo!” Pegou na minha mão e levou‑me para o quarto.
“Vou dar‑te o meu corpo, que já é teu. Quero que o vejas e o toques e o sintas tremer, e o faças tremer ainda mais”, disse ela, com uma voz nervosa, de costas para mim, enquanto começava a despir‑se. Tinha um corpo mais bonito do que eu tinha conseguido imaginar nas dezenas de vezes em que tinha vivido mentalmente esta cena finalmente real. O que me surpreendeu mais foi a minha ausência de surpresa, como se o tivesse sempre sabido. Vi a mancha esverdeada que se estendia por parte do ombro e do antebraço e que um penso cobria parcialmente. Beijei‑lhe o pescoço e perguntei‑lhe calmamente:
“O teu corpo que já é meu, não é?”
“O meu corpo que já é teu.”
Não demorei muito a criar raízes em Miri. 
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Notas do tradutor:
To have a frog in one’s throat é, como muitos saberão, uma expressão inglesa que significa “estar com catarro”. Compreenderão que tive de a traduzir literalmente, uma vez que é num jogo sobre a sua compreensão literal que se baseiam os sete primeiros parágrafos do conto, que constituem como que uma introdução.
Traduzo Sarawak City por “Cidade de Sarawak”, sobretudo para evitar a confusão entre a cidade e a região de que é capital, que é hoje uma província da Malásia e que era, na época a que se refere o conto, um território independente. O nome atual da cidade de Sarawak é Kuching. Sarauaque seria, creio eu, uma grafia mais adequada, mas não me atrevi, como não me atrevo, muitas vezes, às grafias mais adequadas…
Alguns leitores terão notado que, na última parte do texto, o tratamento entre os dois protagonistas passa de “você” a “tu”, o que não pode ser justificado pelo original inglês, já que em inglês you cobre as duas palavras portuguesas. Decerto concordarão, porém, que tal mudança nesta parte do texto corresponde ao que aconteceria naturalmente se a língua de comunicação entre James e Maria fosse uma língua como o português, com duas formas de tratamento da segunda pessoa do singular que marcam, entre outras coisas, a maior ou menor proximidade da relação entre os interlocutores.

Camargo, 10 de setembro de 2000

Um vazio

Já não vamos a Portugal desde junho de 2010. Havemos de lá ir agora no verão, não sei ainda exatamente quando. Vai ser bom – é sempre bom – rever a família e os amigos. (E comer peixe.) Há 15 anos que não vivo em Portugal. Há hábitos e posturas que já estranho, e muitas rotinas novas que conheço mal – mas é claro que nunca me sinto, nunca me hei de sentir, forasteiro.
Portugal, disse-o muitas vezes nesta última década, foi um país que vi de facto mudar. Desenvolver-se realmente. É mais fácil notar desenvolvimento quando lá se vai de vez em quando que quando lá se vive todos os dias, creio eu. Mas é também muito fácil deixar-se enganar por impressões, dir-me-ão. É certo. Neste caso, porém, parece que as minhas impressões, quando cotejadas com os valores de vários indicadores de desenvolvimento, tanto económicos como sociais, não eram enganosas por aí além – Portugal desenvolveu-se mesmo muito desde que eu de lá saí. É certo que não se desenvolveu, nalguns aspetos, tanto como eu gostaria que se tivesse desenvolvido, ou tanto como poderia ter-se desenvolvido. Mas desenvolveu-se muito. Agora, a destruição enraivada do Estado social vai dar cabo de tudo, a pretexto da diz-que-necessária austeridade (a afinal mais-que-comprovadamente-inútil-para-os propósitos-que-dizem-que-serve, a calamitosa, perversa austeridade…): do desenvolvimento que se deu nos 15 anos em que vivi fora do país e do desenvolvimento que se deu antes.
Vamos no verão a Portugal para rever – é sempre bom – familiares e os amigos. Desses familiares e amigos, há uns quantos (dois dos meus irmãos, por exemplo) que entretanto saíram do país, porque não sabiam como ficar. Outros, se não encontrarem emprego até ao verão, hão de lá estar ainda, mas desempregados. Muitos, todos, creio eu, hão de estar tensos, revoltados. Hão de dizer-me que tu não sabes, Vítor, como é que isto anda por cá e o que é ter um governo assim, mas eu sei, posso não o sentir na pele, mas sei, então porque não havia de saber?
Vou contar-vos uma espécie de visão. É um exagero, dir-me-ão, e eu sei que é, mas a gente não manda no nosso inconsciente, pois não? Uma noite destas, não num sonho propriamente dito, mas naquele estado vago meio sonho, quase quase a adormecer, veio-me ao espírito uma imagem horrível, não sei se foi algum boneco que vi no Facebook ou o que foi: que, se continuar a este ritmo a destruição do país, quando lá chegarmos no verão, está lá só um vazio, um bocado de coisa nenhuma, no sítio onde havia Portugal… 


Jozef Israëls, Filhos do mar, 1872, Museu Nacional, Amesterdão
      

21/12/12

Desculpem lá! [Crónicas de Svendborg #12]

Apanhei o autocarro das 9:04 para Svendborg, para ir ao dentista. A viagem demora cerca de 20 minutos e custa 22 coroas (3 euros). O autocarro nunca tem muitos passageiros. São, na maior parte, reformados, que vivem aqui na zona (há aqui muitas “casas protegidas”, como lhes chamam, para idosos) e que vão a Svendborg dar uma voltinha.
O autocarro tem também um ecrã, que dá anúncios e notícias. A notícia que repetiram hoje durante toda a viagem, para lá e para cá, era esta, que traduzo e resumo:
Numa crónica no jornal Politiken, o diretor  do Danske Bank [o maior banco dinamarquês] assume a parte de responsabilidade que cabe ao seu banco na crise financeira:
«Nos anos de euforia que precederam crise, quando tudo avançava muito depressa, a maior parte dos bancos ficou cega com a velocidade. O Danske Bank também.»
E pede desculpa por o banco ter vendido produtos financeiros que só muito poucos clientes e empregados do banco compreendiam. Além disso, reconhece muitos investimentos falhados e refere em especial as incursões altamente deficitárias no mercado irlandês.
“Para correspondermos às expectativas de crescimento dos mercados e dos investidores, e para nos proporcionarmos a nós próprio e aos nossos clientes lucros a curto prazo, perdemos em certa medida a perspetiva dos valores a longo prazo. Reconhecemos isso e lamentamo-lo.»
«É um pedido de desculpas?», perguntou-lhe mais tarde um jornalista.
«Sim, pode considerar-se um pedido de desculpas.»
Foi esta a notícia que vi muitas vezes no autocarro para Svendborg. Estava frio, hoje, perto dos zeros graus, mas o autocarro está sempre quentinho, agradável.  

20/12/12

A Missão de Coisa Nenhuma

[Uma história em poucas palavras ou ... Eu tenho para aqui estes textos e não sei o que hei de fazer deles]



Uma das seitas mais curiosas que conheço é a Missão de Coisa Nenhuma, de que não sei se já terão ouvido falar. É uma seita relativamente antiga e está bastante espalhada pelo mundo inteiro, mas não há, ainda assim, muita gente que a conheça. Não é seita nem religiosa nem política. O melhor, para compreender de que tipo de seita se trata, é tomar literalmente o seu nome – uma missão, no sentido de “corpo de pessoas enviadas para propagar uma fé”, mas cujos missionários divulgam, em vez da palavra de um deus ou dos seus profetas e santos, apenas... coisa nenhuma!
Sabe-se que o grupo foi fundado nos fins do séc. XVIII – imediatamente antes do Tratado de Paris em que a Grã-Bretanha reconhecia a independência dos Estados Unidos da América – por Ulrich B. Zilch, um advogado americano de origem suíça, de cuja vida se sabe muito pouco. O que se conhece dele são apenas alguns textos panfletários, de tom radical, em que critica duramente tanto o colonialismo inglês como o movimento independentista, e um minúsculo texto que condensa toda a filosofia da Missão de Coisa Nenhuma e cujo conhecimento é a única coisa exigida aos seus missionários.
Afirma-se muitas vezes que “quanto menos se disser, mais depressa se pode corrigir o que se disse”. A mesma ideia é também veiculada por um outro e não menos famoso provérbio, que diz que “quanto mais se fala, mais se erra”. Ora, este postulado – que implica, em última análise, que o melhor é não dizer nada para não errar – peca por uma inadmissível falta de lógica. É verdade que, se eu não disser absolutamente nada, não tenho nenhuma possibilidade de errar, mas não é menos verdade que a minha possibilidade de acertar é também nula. Pelo contrário, se disser muito, tenho, ao mesmo tempo que mais possibilidades de estar errado, também mais possibilidades de estar certo. Poder errar é a contrapartida inevitável de tentar acertar, admitamo-lo. Mas o nosso objetivo é apenas não errar ou é, pela positiva, acertar o mais que se possa? Se aplicarmos a lógica destes provérbios a outras ações que não apenas a de falar, teremos de concluir que o ser humano deve fazer o menos possível, para não correr o risco de fazer coisas más ou mal feitas, posição essa que, creio, nenhuma pessoa com o mínimo de bom senso poderá defender. Segundo a lógica dos provérbios que citei, poderia defender-se, em última análise, que o melhor seria, por exemplo, não comer, apenas porque se sabe que é a alimentação a fonte de muitas das nossas doenças...
Diz-se que errar é humano, mas, contra essa asserção, pode argumentar-se com facilidade que acertar não o é menos – e o progresso é bem a prova de que se acerta mais do que se erra. Aquilo de que ninguém pode duvidar é que falar é humano – o ser humano é o único animal que fala e é essa a principal fonte da sua superioridade relativamente aos outros animais. Falemos, então!
É difícil saber qual a prática de U. B. Zilch e dos primeiros missionários de Coisa Nenhuma, porque não há dela nenhum registo. A prática que os atuais dirigentes da Missão esperam dos seus missionários, porém, resume-se bem na frase com que termina a cerimónia da sua iniciação: “Ide pelo mundo e falai!”
A primeira vez que tive contacto com a Missão de Coisa Nenhuma foi em Guadalupe, uma vez que lá estava a passar férias. Bateu-me à porta da casa que tinha alugado por uma semana um homem de meia-idade, do tipo crioulo local, sorridente e acho que já um bocadinho tocado.
“Chamo-me Balthazar”, disse ele, “e sou missionário de Coisa Nenhuma. Venho anunciar-lhe uma boa nova!”
Fiquei a olhar para ele com cara de parvo, um bocado aturdido por tão invulgar apresentação. Lembro-me de que me chamou a atenção ele ter dito “uma boa nova” e não “a boa nova”. Mas, está claro, o que me veio primeiro à cabeça é que ia ter de aturar mais uma tentativa de me converterem a alguma nova e estapafúrdia religião, se eu não fosse suficientemente enérgico para pôr fim à evangelização antes de ela começar. A curiosidade foi, no entanto, mais forte que o sentido de preservação da minha tranquilidade e acabei por lhe perguntar:
“Que boa nova?”
“Não sei... O que é que se tem passado de bom ultimamente?”
“O que é que se tem passado de bom ultimamente?”
“Sim!, o que é que se tem passado de bom ultimamente?”, insistiu ele. “Falemos um pouco disso!”
Evidentemente, eu fiquei, como acho que qualquer pessoa ficaria, bastante desconfiado relativamente às intenções de tão estranha personagem, mas, não sei por quê, talvez só porque a curiosidade ia também aumentando à medida que aumentava a desconfiança, não o impedi de entrar.
“Com a sua licença!”, disse ele, embora eu não lhe tivesse dado explicitamente licença nenhuma.
“Posso sentar-me?”
E sentou-se sem esperar a minha resposta.
“Bem vê, não há nada melhor que um ti-ponch para molhar a palavra. Eu não queria abusar da sua hospitalidade, de maneira que o rum já eu trouxe.”
Sempre sorridente, tirou de um saco de plástico que trazia na mão uma garrafa cheia, que me estendeu. E continuou:
“A única contribuição que peço é um bocadinho de limão e um xaropezito, se tiver. Ou, se não, só açúcar, também dá...”
Mais uma vez – e mais uma vez sem saber bem por quê... – não lhe disse que não. Acho que agora, para além de ser pela curiosidade, era também pelo ponche. Fui buscar copos, xarope de groselha, limão e gelo, e ele preparou a bebida. Enquanto fazia o cocktail, insistia na conversa que tinha proposto:
“Mas então, não me diga que não lhe aconteceu nada de bom nos últimos tempos... Ou talvez queira falar de outra coisa!”
“Não há dúvida, é uma abordagem original da evangelização”, disse eu por fim. “Normalmente, o único tema de discussão proposto é a Bíblia e pouco mais...”
“Evangelização?”, riu-se ele, “Mas você pensa que eu sou algum mórmon ou alguma testemunha de Jeová? Qual evangelização, caro amigo, eu estou aqui só para conversar!”
“O quê?, não me diga que quando se sente sozinho agarra numa garrafa de rum e vai bater à porta da primeira casa que encontra e começa a conversar com quem lhe abrir a porta...”
“Não se trata de solidão, meu amigo, mas antes de uma missão – a nossa missão, minha e dos outros missionários de Coisa Nenhuma, é conversar. Diga lá, de que é que gosta de falar? De futebol? Tenho-me apercebido, no meu trabalho, que o futebol é um dos temas favoritos de conversa das pessoas... Quer dizer, mais dos homens, isso é verdade... Mas olhe que também de algumas mulheres, o que é que pensa? De que clube é que você é? Do Nantes? Do Marselha? Do Paris Saint-Germain? Seja lá qual for, algum deles lhe deve ter dado alguma alegria ultimamente...”
“A primeira coisa é que eu não sou francês, sou português, por isso não sou de nenhum desses clubes...”
“Português? Bèneficá? Spòrtinhe de Lissebone? Pôrtô?”
“Ouça”, cortei-o eu, “eu sou de um clube de que você nunca ouviu falar, de maneira que já pode daí concluir que é um clube que não dá grandes alegrias a ninguém... E mesmo pequenas alegrias, também dá muito poucas... Mas deixe lá isso! Que história é essa dos missionários de Coisa Nenhuma? Confesso que tenho uma certa curiosidade relativamente a essa vossa Missão. Explique-me lá então quais é que são as vossas crenças, a vossa filosofia...”
“Quer dizer, crenças, cada um tem as suas... Eu cá, por exemplo, acredito no vudu. E digo-lhe: acredito, porque já vi muita coisa que me obriga a acreditar! Mas tenho muitos colegas, mesmo antilhenses, que não acreditam... E quanto a filosofia, é igual: cada um tem a sua... Ou então não tem nenhuma, é conforme. Eu cá, de filosofia não sei nada... E também não é muito importante para o meu trabalho, quase nunca se encontra ninguém que queira discutir filosofia. Diga lá, e você?, acredita no vudu?”
“Muito sinceramente, não sei se acredito ou não, porque não sei nada sobre o vudu, mas você ainda não respondeu à minha pergunta. Quer dizer, vocês têm de ter uma ideia qualquer que queiram divulgar, senão não andavam assim de porta em porta a falar com as pessoas...”
Ele fez uma pequena pausa, com uma expressão estranha, cobrindo quase completamente o lábio superior com o inferior.
“Não, acho que não... Pelo menos, nunca ninguém me disse que eu tinha de divulgar uma ideia. O que a gente tem é de conversar.”
“Só conversar, seja lá do que for?”
“Só conversar.”
“Mas é porque vocês acham que as pessoas não conversam o suficiente e deviam conversar mais?”
O Balthazar ficou um bocado calado, de sobrolho franzido e olhar de esguelha, a refletir.
“Já estou a perceber onde é que você quer chegar... Quer dizer, isto não é nenhum SOS Solidão! Eu não ando à procura de quem precise de desabafar, ‘tá a perceber? Aliás, isso até já seria... como é que se diz.?... “discrimação” [ele dizia discrimation em vez de discrimination] e a gente não faz “discrimações” – toda a gente tem de conversar!”
Fez outra pequena pausa, e continuou, já num tom completamente diferente:
“Oiça lá, e de guisado de lambi, você gosta ou não?”
Lambi é um tipo de búzio grande das Antilhas, que se come sobretudo guisado com batatas. A pergunta era completamente a despropósito, mas a verdade é que eu gosto muito de lambi, e foi isso que lhe respondi:
“Ena, se gosto! Mas você está com fome ou quê?”
“Não, porque comi agora mesmo um guisadinho de lambi. Por isso é que eu me lembrei...”
A conversa continuou sempre nesta alegre falta de disciplina. Não a vou agora reproduzir toda, porque prezo o suficiente os meus leitores para não lhes impor uma seca dessas. Mas vocês sabem como é: palavra puxa palavra, cigarro puxa cigarro, copo de ponche puxa copo de ponche. Acabámos por ficar ali na conversa um bom bocado. Falámos de Clichy, nos arredores de Paris, porque ele esteve lá uma temporada em casa de um irmão que é peixeiro e eu tenho um grande amigo que vive lá; falámos dos sobrinhos dele e dos meus, do tress das grandes cidades [ele dizia tress em vez de stress], de engarrafamentos, de segurança social, de coisas assim. O Balthazar era cheio de bom senso e de bom humor, e eu comecei a simpatizar com ele.
“Sabe o que é que eu lhe digo, Balthazar?”, disse eu depois de dar o último gole no último copo de ponche. “O ponchezito não está nada mau! Ou seja, estava, que a garrafa já lá vai, sem a gente dar por isso... E eu já ‘tou a ficar um bocadinho alegre, sabe?... Diga lá, e se a gente fosse dar uma volta e beber mais qualquer coisinha? Uma cervejinha fresca, por exemplo, até que nem caía nada mal com este calor... Pago eu, ‘tá a ouvir? Você comprou o rum, agora eu pago as cervejas!”
“Ora aí está! Por exemplo! Assim, já tenho uma boa nova para lhe anunciar!”
“Uma boa nova?”, surpreendi-me eu.
“Você não diz que já está alegre? Então pronto, na falta de outra, pode ser essa a boa nova que lhe vinha anunciar!”


 

Imagens fortes do voluntarismo extremo: Corto Maltese, os Maias e Zenão de Bruges

A mãe de Corto Maltese, a célebre cigana Niña de Gibraltar, disse um dia ao filho que devia ter cuidado, porque não lhe via na mão a linha da sorte. Corto Maltese riu-se, foi buscar uma navalha e talhou uma longa e profunda linha da sorte na mão esquerda: “Não te preocupes, Nina”, disse ele à mãe, “a minha sorte sou eu que a faço”!
A história é justamente famosa[1], na minha opinião – o gesto de Corto Maltese é uma metáfora bem achada da vontade de tomar em mãos a sua vida. Agora, mesmo com muita garra e navalhas afiadas, nunca é muito, quanto mais total, o controlo que se tem da própria vida… De facto, parece-me tão insensato acreditar num destino inalterável como acreditar que a vida de cada pessoa será aquilo que ela dela quiser fazer. E, se da passividade que resulta do fatalismo não vem nenhum bem ao mundo, também a crença oposta pode ser perigosa, porque pode facilmente levar a considerar a vontade e as ambições dos outros um obstáculo apenas que há que vencer para concretizar a sua própria vontade e as suas próprias ambições. Apesar disso, este voluntarismo extremo, como lhe chamo, é uma atitude que muitas vezes me fascina…
Quando era rapaz jovem, li, como toda a gente, alguns livros da coleção Enigmas de todos os tempos, da editora Bertrand, uma série de livros sobre ciências e teorias alternativas, ocultismo, parapsicologia e afins, a que muitas vezes se chamava “livros de capa preta”. A popularidade do calendário maia fez-me agora recordar um deles, Descobertas na terra dos maias, de Pierre Ivanoff[2], e a sua tese sobre o fim da civilização maia:
O etnólogo Pierre Ivanoff estudou o povo Lacandon e que foi um dos primeiros forasteiros a chegar ao que é hoje o sítio arqueológico Dos Pilas, na Guatemala. A explicação de Ivanoff para o mistério do chamado colapso do período clássico maia[3] não é política, nem ecológica nem demográfica – segundo ele, os sacerdotes teriam anunciado, com base na estrutura cíclica do seu calendário, o fim próximo da civilização dos hach winik, “os verdadeiros homens” (os maias, leia-se). Abandonando as cidades, as populações das cidades maias confirmam a verdade das profecias – ou, se se preferir, tornam-nas realidade!
Pode não ter grande interesse como teoria histórica, mas é uma ideia fascinante. Uma grande ideia para um romance ou um filme, por exemplo. No fundo, nem sequer é uma ideia fantástica, quando a transpomos do plano de um povo inteiro para o plano de uma seita religiosa ou de um indivíduo: de forma ainda mais dramática, mais violenta, é o que aconteceu a todos os fanáticos crentes de teorias milenaristas que, chegados ao dia em que o mundo devia acabar, se suicidaram, confirmando assim a profecia – é que o mundo acaba, para cada um de nós, no momento em que nós acabamos, não é verdade?
O suicídio não é sempre, é claro, uma tentativa radical de controlo do destino. (É muitas vezes, sei lá, um acidente provocado por um gesto impulsivo; uma elementar desistência; um apelo, um grito, uma maneira bruta de se fazer ouvir; ou uma forma desajeitada de resolver um problema qualquer.) Mas pode às vezes sê-lo, não é? Lembro-me de que foi assim que interpretei, quando li há muitos anos L'Œuvre au noir, de Marguerite Yourcenar[4], o suicídio de Zénon Ligre, a personagem principal do romance: Para um prisioneiro condenado à morte por se recusar a renegar aquilo em que crê, a morte talvez seja, como vi alguns defenderem, a libertação possível e o recuperar da dignidade. Mas que esse prisioneiro decida a sua própria morte no dia anterior àquele em que vai ser executado é mais que isso, é assumir de repente controlo de tudo, é deixar claro, mesmo antes de o mundo acabar (que o mundo acaba, para cada um de nós, no momento em que nós acabamos, não é verdade?), que é ele que vence, que o mundo acaba porque ele quer, quando ele quer.
__________
[1] Agradeço esclarecimentos sobre a autoria da cena: não consigo descobrir se é do criador de Corto Maltese, Hugo Pratt, ou se foi criada por Alberto Ongaro, num prefácio a uma das aventuras do célebre marinheiro.
[2] Amadora: Bertrand, 1968, tradução de Découvertes chez les Mayas, Paris: Robert Laffont,1968
[3] O colapso das cidades do segundo período maia dá-se num período curto na segunda metade do século VIII. Nem toda a gente, porém, concorda com esta ideia de colapso da civilização maia, porque, ao mesmo tempo, surgem novos centros de cultura urbana maia noutros lugares. 
[4] Paris: Gallimard, 1968

01/12/12

Vida e obra de Jan Neumann

[Uma história em poucas palavras ou ... Eu tenho para aqui estes textos e não sei o que hei de fazer deles]


Viveu na Boémia, entre o Império Austro-Húngaro onde nasceu e a República Checa onde morreu em princípios de 1995, um homem chamado Jan Neumann, de que duvido que alguma vez tenham ouvido falar.
Jan Neumann foi um homem pacato e solitário, sempre indiferente a todos os acontecimentos importantes que se iam dando no seu país e no resto do mundo. Nunca quis saber de política, como nunca quis saber de desporto, nem de música, nem de ciência. Nunca casou, nem lhe é conhecida nenhuma relação amorosa, por fugaz que fosse. Jan Neumann viveu toda a vida para uma coisa apenas, que, desde a juventude, lhe ocupou todo o tempo que não passou no trabalho (foi, durante 45 anos, empregado de escritório no centro de Praga), a tratar das tarefas caseiras, a comer ou a dormir: a literatura. E foi, nesta área, um dos maiores eruditos de todos os tempos e de todos os lugares.
É incalculável o número de obras que leu: não havia nenhum clássico, fosse de que período fosse, que não tivesse lido e relido; das obras de culto a que se chama muitas vezes malditas ou incompreendidas, não havia nenhuma que não conhecesse a fundo; conhecia todas as corrente e autores importantes que foram surgindo ao longo da sua vida, até porque se mantinha sempre a par de tudo o que se ia escrevendo, através de revistas especializadas, e mandava vir do estrangeiro as últimas novidades editoriais (lia muito bem em várias línguas); e tinha ainda lido muita literatura considerada secundária ou até de cordel, classificações de que a sua vasta erudição o obrigava, por vezes, a discordar – literatura de viagens, literatura antiga e tradicional de todo o mundo, ficção científica ou romance policial, nada havia que Jan Neumann não conhecesse a fundo.
Mais: A paixão de Jan Neumann pela literatura não o levava apenas a ler obras literárias. Lia também muitas biografias de escritores e muitas obras críticas de todas as épocas e de todas as correntes, além de obras de análise e de reflexão sobre a escrita literária. Também neste campo a sua erudição era enorme; e tinha formado as suas próprias teorias sobre a essência da coisa literária e sobre a sua função, e também sobre o papel da crítica e sobre a metodologia que esta deveria adotar.
Além de ler muito, Jen Neumman escreveu também muito, e desde muito novo. As primeiras coisas que escreveu, ainda no princípio da adolescência, foram poemas e contos. Entre familiares e professores, toda a gente que lia o que ele escrevia lhe augurava um futuro brilhante. De facto, era óbvio para toda a gente com um mínimo de conhecimentos de literatura que o jovem Neumann tinha aquela coisa que distingue os grandes escritores das outras pessoas todas e que se pode definir, de uma forma muito simplificada, como a capacidade de escrever muito melhor que elas.
O jovem Neumann aceitou que o seu destino era tornar-se escritor, e, provavelmente, um grande escritor. E, a partir do momento em que o aceitou, foi invadido por uma estranha sensação de desconforto: haviam de vir os críticos e interpretar a sua obra segundo a disposição do momento ou os ditames dos modelos teóricos a que se submetiam... Não, isso não o podia permitir! E tomou uma decisão que iria marcar profundamente a sua vida: havia de ser o seu próprio crítico! Havia de fechar o espaço à facilidade e ao devaneio, analisando a sua própria obra de várias perspetivas críticas, mas sempre com um rigor tal que tirasse a vontade ao mais afoito de trilhar depois dele esse caminho. E dedicou, daí para a frente, uma grande parte da sua energia a essa tarefa: a crítica das suas obras por escrever.
É claro, não lhe sobrou grande tempo para escrever as obras que criticava. Para além dos referidos poemas e contos do princípio da adolescência (que deitou fora, porque os considerava menores, ou, como ele dizia, imaturos), escreveu apenas seis obras em toda a sua vida, cinco contos curtos e uma pequena novela. Dessas obras, apenas as duas primeiras foram publicadas, no jornal da Universidade Carlos IV, pouco depois da sua reabertura após a Libertação. Nenhuma delas se inseria bem nas correntes que nessa época dominavam os gostos e as ideologias, mas a sua qualidade literária impunha-se de tal forma que os responsáveis pelo jornal universitário não tiveram dúvidas em publicá-las. O primeiro desses contos, num exercício de profecia de que há quem diga que só os grandes escritores são capazes, conta a história de um homem de tal maneira obcecado com a perfeição e o enquadramento teórico da sua própria escrita que se vê impossibilitado de escrever seja lá o que for. Quanto aos outros três contos e à novela, se nunca chegaram a ser publicados, não foi por não haver quem os quisesse publicar, que haveria com certeza, mas antes porque o autor nunca chegou a dar-lhes forma definitiva – à sua morte, estavam ainda a repousar, como ele dizia, à espera de algumas pequenas modificações que haveriam, sem dúvida, de os melhorar bastante.
A imensa obra crítica de Jan Neumann é, então, sem valor algum, porque se refere a obras inexistentes. Não se encontra, em nenhuma das dezenas de milhares de páginas datilografadas que deixou, crítica alguma aos seis textos que dele se conhecem. E é curioso: ao contrário do que ele previa, a sua obra não foi até hoje objeto de nenhuma crítica – muito provavelmente, porque é praticamente desconhecida…
Camargo, 3 de abril de 2000