30/08/13

Heavylogia

Pode ler-se na entrada “Sing a Simple song” da Wikipedia em inglês* (traduzo eu):
A linha de baixo desta canção [de Sly and the Family Stone] foi usada por Jimi Hendrix e pela Band of Gypsys dois anos mais tarde na canção de 1970 “We Gotta Live Together”. Se a linha de baixo foi conscientemente plagiada é tema de muito debate por estudiosos da música.
A palavra que traduzo por estudiosos é scholars, que traz agarrada à ideia de estudo a ideia de erudição. Neste contexto, deve subentender-se depois da palavra música a palavra popular, porque, sem mais, somos levados a pensar nos estudiosos da música mais habituais, que são os estudiosos da música erudita e não é disso que se trata, mas sim dos estudiosos da música pop, incluindo rock, soul e géneros afins. Ah, mas isso existe?

Claro que existe, há estudiosos de tudo. Não acredito que tenha especial importância entre eles o debate do eventual plágio por Billy Cox, em “We Gotta Live Together”, de uma linha de baixo de Larry Graham**, mas claro que existem. E há até vários tipos de eruditos do rock. Há, por exemplo, estudiosos de solos de guitarra. No outro dia, encontrei um vídeo de análise musical, por um rapaz chamado Ben Higgins, de licks de alguns virtuosos de guitarra heavy e afins*** e fiquei impressionado. Notem que, se há coisa a que, na maioria dos casos, não acho gracinha mesmo nenhuma, são solos de guitarra. Se forem solos de hard rock, heavy metal e afins, então, ainda menos graça acho, porque já não são só os solos, mas também os géneros musicais, que me desagradam. Mas, mesmo assim, fiquei impressionado.

Aconselho-vos a porem o vídeo no início da lição, aos 4:45, para não terem de ouvir um solo de guitarra de quase cinco minutos… Vejam a explicação da técnica de Yngwie Malmsteen (o primeiro de 30 guitarristas analisados no vídeo). Ben Higgins parte do princípio que toda a gente sabe o que o modo frígio dominante, embora pressupondo que alguns o conheçam como modo frígio maior (acho que é disto que ele está a falar). Mesmo que não seja esse o vosso caso, não desistam. Podem continuar, com as explicações das tercinas de Van Hallen e por aí fora, até estarem fartos de shredding. Se forem como eu, mesmo impressionados com os conhecimentos e a técnica, fartam-se depressa...

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* Passamos a vida a ler críticas aos aspetos negativos da Wikipédia (que os tem, sem dúvida), mas não se costumam ver louvores dos seus aspetos positivos, de maneira que aqui vai um: Pela primeira vez, há uma enciclopédia com uma quantidade enorme de entradas sobre canções e discos. Diz-me a minha experiência que são, no geral, bastante fiáveis e constituem, portanto, uma excelente ferramenta para quem se interessa pela história da música popular.

** Sim, sim, a Wikipédia tem destes disparates, pois tem. E piores.

*** Para uma definição e historial do termo shredder, o melhor é ir à Wikipédia, a tal enciclopédia que, além dos defeitos, tem coisas que não se encontram em mais enciclopédia nenhuma…

29/08/13

Também há bolos europeus?

Há muito tempo que o meu bolo preferido é o wienerdrøm med pecan. Este bolo que aqui veem. Mais exatamente, é o meu bolo favorito desde que o conheci, há cerca de 12 anos, quando vim morar para a Dinamarca pela primeira vez. Como talvez consigam ver na imagem, se não o conhecem, é um pastel de massa folhada fina (donde ser um wienerdrøm, um sonho de massa folhada fina, literalmente um sonho vienense, já que se chama, em dinamarquês, pão vienense à massa folhada fina), com nozes-pecã. O recheio, que não se vê na fotografia, é de xarope de ácer, essa especialidade canadiana. Sempre pensei, como há de decerto pensar mais gente e também pensa a Wikipédia, por exemplo, que fosse um bolo dinamarquês. E talvez seja, não sei. Não sei se hei de mudar de ideias depois desta história que vos passo a contar. O certo é que, se for dinamarquês, não é, pelo menos, um bolo que se encontre com facilidade na Dinamarca. De facto, só o encontro nas padarias de uma cadeia de supermercados específica. Bom, e em Évora. E na Tapada das Mercês.

Quando vi wienerdrømme (é o plural) med pecan no café do terminal rodoviário em Évora, tive de comer um para saber se era mesmo o bolo que eu conhecia. Chamavam-se agora bolos de mel com nozes. Nunca tinha visto tal bolo em Portugal… E era exatamente a mesma coisa: tamanho, textura, sabor, tudo. As nozes eram pecã e o mel não era mel, era xarope de ácer. Tive de perguntar à senhora do café de onde lhe vinham aqueles bolos. Ou era ela que os fazia? A senhora ficou obviamente embaraçada. Que não sabia bem. Não, não era ela que os fazia, mas não sabia bem quem os fazia… Expliquei-lhe por que lhe perguntava. E ela confessou, por fim, que os recebia congelados já prontos, só tinha que os cozer no forno. Donde vinham, era mesmo verdade que não sabia.

Voltei a encontrar os mesmos bolos num supermercado na Tapada das Mercês. Exatamente iguais. Tenho a certeza que os compram congelados, como a senhora de Évora. Deve haver quem os exporte congelados, se calhar para toda a Europa, não sei… Será uma firma dinamarquesa? Ou será que os supermercados dinamarqueses os importam de outro país qualquer? Que na padaria do meu supermercado local os recebem congelados e só têm de os cozer no forno, disso não tenho dúvidas nenhumas. Mas continuam a saber-me bem. Wienerdrøm med pecan continua a ser o meu bolo favorito. Ou bolo de nozes com mel, se preferirem.

P. S. Já depois de escrever o texto, acho que descobri quem os faz. Mas decidi não vos dizer quem é, entretenham-se com um bocadinho de trabalho de detetive, vá.

28/08/13

Impessoal e transmissível

Em bom rigor, o homem tem tantos eus sociais como o número de indivíduos que o reconheçam e tenham dele uma imagem mental. Ferir qualquer uma dessas suas imagens é feri-lo a ele. Mas, como os indivíduos que têm essas imagens pertencem naturalmente a classes, podemos na prática dizer que ele tantos eus sociais diferentes como o número de grupos distintos de pessoas cuja opinião lhe importa. Geralmente, mostra um lado diferente de si próprio a cada um desses vários grupos. Muitos jovens bastante recatados na presença de pais e professores são malcriados e fanfarrões que nem piratas junto dos seus compinchas “duros”. Não nos mostramos aos nossos filhos como nos mostramos aos nossos companheiros de clube, aos nossos clientes como aos nossos empregados, aos nossos próprios chefes e empregadores como aos nossos amigos íntimos. Daqui resulta o que, na prática, é uma divisão do homem em vários eus; e esta divisão pode ser discordante, quando uma pessoa tem medo de deixar um grupo de conhecidos saber como ela é noutro lugar; ou pode ser uma divisão perfeitamente harmoniosa do trabalho, quando se é terno para com os filhos e severo para com os soldados ou prisioneiros sob o seu comando.
Estas palavras são de William James[1] e todos temos provas sobejas de que são perfeitamente acertadas, mas, se somos capazes de o admitir nalguma folgada discussão de fim de semana, recusamo-nos (porque será?) a usar estes sábios ensinamentos na análise quotidiana do mundo e, no geral, refugiamo-nos na crença fácil de que as pessoas têm personalidade estáveis que carregam sempre consigo de situação para situação, de relação para relação. E os estudos de psicologia, que estão fartos de provar, sei lá, por exemplo, que nem o riso nem a crueldade estão apenas dentro das pessoas, continuam, o mais das vezes, a avaliar traços de personalidade (gentileza, agressividade, criatividade, inovação, etc.) através de questionários simples descontextualizados… Não que uma pessoa não possa ter traços de carácter diferentes de outra pessoa, ou capacidades; mas não creio o que o seu conjunto seja um eu estável, independente de circunstâncias. Por muito que isso choque muita gente, “o meu verdadeiro eu”, “o teu verdadeiro eu”, acho que isso não existe.
Enfim, a questão pode, claro está, analisar-se de vários ângulos. Um deles é o de Jorge Luis Borges em “La Nadería de la Personalidad[2]”.
Não há tal eu de conjunto. Equivoca-se quem define a identidade pessoal como posse privativa de algum repositório de memórias. Quem tal afirma abusa do símbolo que reflete a memória como figura de duradouro e palpável celeiro ou armazém, quando não passa do nome pelo qual indicamos que, entre a inumerabilidade de todos os estados de consciência, muitos voltam a ocorrer de forma esbatida. Além disso, se a personalidade radica na memória, a que posse pretender dos instantes cumpridos que, por quotidianos ou envelhecidos, não gravaram em nós uma impressão duradoura? Empilhados em anos, jazem inacessíveis à nossa ansiosa ganância. E que a memória decantada, de cujas falhas interpondes recursos, evidencia alguma vez toda a sua plenitude de passado? Vive por acaso em verdade? Enganam-se também os que, como os sensualistas, concebem a personalidade como a soma de estados de ânimo alinhados. (...)
Ninguém que nisso medite aceitará que, na conjetural e nunca realizada nem realizável soma das diferentes situações do ânimo, pode estribar o eu. O que não se leva a cabo não existe e o encadeamento dos factos em sucessão temporal não os refere a uma ordem absoluta. Erram também os que supõem que a negação da personalidade, a que, com tão persistente afinco, vou instando, desmente essa certeza de ser uma coisa isolada, individualizada e distinta, que cada qual sente nas profundidades da alma. Não nego essa consciência de ser nem essa segurança imediata do “aqui estou eu” que respira em nós. O que eu nego, isso sim, é que as demais convicções devam ajustar-se à consabida antítese entre o eu e o não eu e esta seja constante. A sensação de frio e de espaçada e grata liberdade que há em mim ao atravessar o saguão e avançar pela quase escuridão da rua não é um acrescento a um eu preexistente nem acontecimento que traga consigo outro acontecimento de um eu contínuo e rigoroso.
[Como puderam seguramente constatar, Borges tinha, na juventude, um estilo bem mais floreado que o que lhe conhecemos depois e eu hesitei muito em traduzir este excerto – que não tenho, aliás, a certeza de ter traduzido como devia (mas confiram vocês próprios).]
Podia – devia, provavelmente – ficar-me pela elegância de Borges para fechar o texto. Mas há outra questão que quero aqui levantar, ainda relacionada com personalidade, mas de teor bem diferente: não se a personalidade é una, mas se a devemos querer una. Quer dizer, se é de louvar, como tantas vezes se louva, o empenho em manter-se permanentemente reconhecível, “igual a si próprio”; se é de louvar a vontade de transferir de uma situação para outra, e uma relação para outra, de um tempo para outro, um conjunto de traços de caráter que cremos – e queremos que os outros creiam – constituir-nos essencialmente. Gostos, maneiras de agir. Diz-se que Borges, por exemplo, gostava muito de arroz com queijo e que, de uma vez que jantou no Maxim’s, insistiu em comer arroz com queijo, imaginem... Há quem, em todas as companhias, afivele o mesmo ar e as mesmas maneiras – que acha que se deve sempre ter. “Eu sou assim”, dizem alguns, “e quem não gostar de mim assim, paciência…” Mas eu tendo a pensar mais nesse ser sempre assim, como defeito, sabem?, uma incapacidade – muitas vezes cultivada, ainda por cima… – de se adaptar a meios novos, de não ver sempre o mundo com os mesmos olhos.
Podemos juntar, neste texto, as crenças ou convicções aos traços de personalidade? Acho que sim. Aliás, nem sempre é fácil determinar onde terminam umas e começam outros. Porque se louva amiúde a coerência de alguém ou, como se diz às vezes, a sua firmeza ou a sua personalidade – mesmo quando não se concorda com aquilo em que o outro é coerente? É claro, se se pode ser coerente tanto com atitudes e crenças louváveis como com atitudes e crenças indesejáveis, a coerência não tem, por si só, nada de louvável à partida. Nem de criticável, é certo… Mas coerência significa, muitas vezes, teimosia, resistência ao outro, às vezes tacanhez. Que não há ninguém que não tenha de mudar, e mudar muito – se aceitar que o que é novo pode ter tanto ou mais valor que o que tem já dentro de si; se não pensar que só é bom aquilo que já é.
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[2] In Inquisiciones. Madrid: Alianza.1994. Primeira edição: 1925.

27/08/13

E dei comigo a pensar...


Bem veem, na minha infância e adolescência, o meu pai, como muitos homens desse tempo, não passava muito tempo em casa. Jantava connosco quando jantava, às vezes lá passava um fim de semana a jardinar no quintal, mas acho que, no geral, o víamos relativamente pouco. E há bocado dei comigo a pensar: "Ena, o que os meus filhos não davam para ter um pai assim!..."

"O Tao do Riso" (pormenor) de Yue Min Jun. Foto de Maagwokhuaeo, Wikimedia Commons



25/08/13

De estranhas e felizes coincidências

Há muito tempo que este blogue está calado. Falta de tempo, férias, falta de tempo outra vez. Mas recomeça hoje e espero ser, de hoje em diante, mais regular. Quero contar-vos uma história:

Nathalie Rissler é australiana e órfã de pai e mãe. Passou os seus dezoito anos de vida em orfanatos estatais. Há cerca de meio ano, inscreveu-se num programa de intercâmbio para pré-universitários: queria ir passar um ano ao Brasil. Infelizmente – ou felizmente, já verão por quê –, não teve vaga. E a Dinamarca?, propuseram-lhe. Não gostava de passar antes um ano na Dinamarca? Nathalie hesitou. Tinha sonhado com samba e praia. Por outro lado, a Dinamarca interessava-a, porque sabia que o seu pai, que nunca conhecera, era de origem dinamarquesa. Porque não?

Foi assim que Nathalie foi parar a Esbjerg, uma bonita cidade de província com pouco mais de 100.000 habitantes, na costa ocidental da Jutlândia. Nathalie gostou da cidade. Começou a conhecer pessoas. Ao fim de um mês de lá estar, viu um salão de cabeleiro que tinha por nome o seu apelido e decidiu que estava a precisar de lá arranjar o cabelo. Contou à cabeleireira – em inglês, claro, que em dinamarquês só sabia ainda dizer meia dúzia de frases – que também se chamava Rissler e que tinha antepassados dinamarqueses. A cabeleireira disse-lhe então que conhecia outra pessoa de apelido Rissler que andava, precisamente, à procura de familiares na Austrália. “É uma senhora também daqui de Esbjerg, que nem sequer é da minha família, o que é estranho, porque o apelido Rissler é raríssimo na Dinamarca. Só há mesmo meia dúzia de Risslers em todo o país. Acho que devias entrar em contacto com ela.”

Nathalie entrou mesmo em contacto com Dorthe Rissler. Encontraram-se, conversaram, Dorthe fez alguma investigação suplementar. E não havia dúvida: Nathalie era mesmo sobrinha-neta de Dorthe.
A história é a seguinte: Henrik, irmão de Dorthe, tinha uma namorada por quem estava loucamente apaixonado. Isto foi há cerca de 45 anos, estava Dorthe no fim da adolescência. A namorada de Henrik morreu num desastre de carro e Henrik ficou muito perturbado. Desapareceu. Cerca de um ano mais tarde, a família recebeu um postal de Brisbane. “Vim para a Austrália”, dizia Henrik. “Acho que vou ficar por aqui. Abraços e saudades do vosso filho e irmão.” E nunca mais receberam dele nenhum sinal de vida. Dorthe tinha conseguido descobrir que Henrik tinha tido um filho, que tinha morrido muito novo, com pouco mais de 20 anos. O rapaz fazia parte de uma banda de Hell’s Angels e andava metido em negócios pouco recomendáveis. Ele e a mulher foram mortos a tiro por um bando rival. Ficou sozinha no mundo a filha bebé do casal, Nathalie.

Agora, Nathalie ganhou na Dinamarca a família que nunca teve na Austrália. Dorthe organizou já uma grande reunião familiar, para apresentar Nathalie aos outros Risslers. Está planeada outra grande reunião da família no Natal. Se Nathalie vai acabar por ficar na Dinamarca, isso não sei.

Já se sabe que a realidade é muitas vezes mais inverosímil que a ficção. Aqui têm, pois, mais uma prova disso: esta história é verdadeira e foi-me contada há pouco tempo por uma prima afastada de Nathalie. Tirando alguns pormenores secundários, que acrescentei só para fazer fluir a narrativa, e os nomes, que são inventados por mim, a história passou-se mesmo no mundo real, com pessoas que existem fora deste texto. E em Esbjerg, precisamente, que foi o único nome próprio que não alterei nesta história. Agora, se tivesse inventado esta história, era capaz de pensar, ao relê-la, que tinha exagerado um bocado nas coincidências: de todos os países que participam em programas de intercâmbio pré-universitário, Nathalie tinha logo de ter ido parar, sem de facto o ter escolhido, à Dinamarca; e, todas as cidades da Dinamarca, tinha logo de ter ido parar a Esbjerg, berço da família Rissler; e, sobretudo, tinha logo de ter um apelido assim tão fora do vulgar – chamasse-se ela Nielsen ou uma coisa assim e nunca encontraria a família dinamarquesa.