08/12/14

Mais um textozinho sobre felicidade

Há muitas maneiras de olhar para a questão da procura da felicidade. Há quem postule que esta busca é o fim último da nossa existência ou até que é única coisa que fazemos na vida. Daniel Gilbert, por exemplo (traduzo eu):
As pessoas muitas vezes reagem mal à ideia de que o comportamento humano não passa de uma tentativa de alcançar a felicidade. (...) Antes de mais (dizem elas), as pessoas preocupam-se com muitas outras coisas além da felicidade – por exemplo, a verdade, a justiça … – e, portanto, a vida não se resume à felicidade. Ora, antes de mais, as pessoas valorizam claramente muitas coisas – desde o básico até ao sublime, desde chocolate belga à fidelidade conjugal –, mas eu acredito que valorizam essas coisas exclusivamente por causa das suas consequências hedónicas. Platão foi muito claro sobre isso quando nos pediu que pensássemos sobre o que é que faz com que algo seja bom. “Será que estas coisas são boas por qualquer outra razão além de produzirem prazer, e nos livrarem da dor e a evitarem? Tendes em conta qualquer outro padrão que não seja o prazer e a dor quando dizeis que são boas?” Neste ponto, estou de acordo com o homem da toga. Na minha mente, “experiência hedónica positiva” é o que significa valorizar. Não podemos dizer o que é bom sem dizer para que é bom e, se se analisarem as muitas coisas que as pessoas acham que são boas, notar-se-á que todas elas são boas para fazer as pessoas felizes.
Pois… Se se considerar que a felicidade é a própria medida do valor positivo de uma coisa (X é bom [para Y] = X causa felicidade [em Y]), invalida-se a proposição de que há coisas melhores que a felicidade. Mas importante e bom não são sinónimos, por um lado; e, por outro lado, como a felicidade não pode ser senão a soma de bons momentos, é preciso não esquecer o investimento – consciente ou não, e não forçosamente prazenteiro – que se faz entre momentos de felicidade, para os atingir. Além disso, mesmo que aceitemos que, em última análise, não pode ser desejável senão o que dá prazer, deparamo-nos constantemente com situações em que estão em conflito dois ou mais prazeres e é difícil argumentar que optamos forçosamente pelo que produza mais consequências hedónicas, para usar a expressão de Gilbert: quando escolho, no supermercado, um produto lácteo de que gosto menos que de outro, porque acho que devo apoiar a produção ecológica local, é preciso alargar muito o significado de hedonismo para fazer radicar esta escolha na procura de uma experiência hedónica positiva.

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Escrevi aqui uma vez um texto chamado “Felicidade era a empregada do bar”:
Fui dar com um texto de juventude em que (…) escrevia [que], para levar a cabo aquilo que é a missão fundamental de qualquer pessoa (transformar-se, perpetuar-se, reproduzir-se, morrer…), não há necessidade de felicidade nem da sua ausência – tanto faz... (…) E, embora com outra perspectiva, continuo a chegar à mesma conclusão prática, a de que a felicidade é algo com que não faz sentido preocupar-se. Além de exercício de vanidade, digo eu agora, a busca da felicidade é provavelmente um exercício vão: Uma pessoa pode achar que cada um deve tratar antes de mais de si próprio e querer ser feliz, sem mais. E pode achar que mais importante do que a sua felicidade é a felicidade alheia e atribuir, apesar disso, valor estratégico à sua própria felicidade na criação de mais felicidade. De facto, há muito quem pense que (ideia mais difundida do que bem defendida…) para fazer bem aos outros, uma pessoa tem de se sentir bem ela própria. OK., tudo isso é possível e não sou eu que me vou agora opor – que se queira ser feliz, está para mim muito bem… Mas alguém já conseguiu alguma vez demonstrar que é mais feliz uma pessoa que procure a felicidade? 
A pergunta final era retórica, mas é, de facto, passível de resposta. Quando escrevi este texto não conhecia ainda o trabalho de June Gruber. Ora com base no seu próprio trabalho de investigação e noutros trabalhos na mesma área, a resposta de Gruber à minha pergunta é que não (traduzo eu):
…Passamos muito tempo a tentar encontrar maneiras de ter sensações positivas. As pessoas chamam a isso sentir-se feliz … e penso que a ciência recente indica que estamos a abordar a coisa da maneira errada.
E, de facto, a pesquisa constata que quanto mais as pessoas (1) empenham tempo e esforços tentando sentir-se mais positivas, e que quanto mais (2) definem como objetivo sentir-se mais positivas, na realidade, de forma algo paradoxal, estão a fazer-se sentir menos esse estado.
E há uma explicação para isso:
De muitas formas, … quanto mais parecemos dar valor à emoção positiva, seja ela excitação ou orgulho ou amor ou satisfação, quanto mais definimos isso como nosso sistema de valores emocionais, sem querer, provavelmente pomos também mais alta a fasquia a atingir e estamos assim a criar a nossa própria desilusão.
Há pesquisa recente que transpôs isto para a área clínica, constatando que as pessoas que valorizam a experiência de emoções positivas e que investem energia comportamental em consegui-las correm grande risco de depressão e verifica-se nelas posteriormente … uma maior incidência de diagnósticos clínicos de perturbação depressiva. …
Isto indica que a quantidade da nossa emoção positiva é realmente afetada pelo esforço que pomos em a obter. … Sabemos que quanto mais tentamos não pensar em ursos brancos, mais pensamos em ursos brancos e, em muitos casos, quanto mais tentamos não ser infelizes, mais infelizes parecemos ser. Então, isto sugere que, em muitos aspetos, o feitiço se vira paradoxalmente contra o feiticeiro, e … que, se queremos estabelecer metas afetivas ou psíquicas para nós mesmos, então não devemos fazer disso o enfoque final em si mesmo, mas talvez centrar-nos antes noutras coisas de que possam surgir essas emoções. …
Uma emoção é para nós um sinal; é uma fonte de informação, e essa informação vai guiar-nos na decisão de nos aproximarmos de determinada pessoa ou de a evitar. Mas não é a emoção em si que é o objetivo. A emoção dá informações para iniciar comportamentos que nos farão chegar ao objetivo. Eu diria que muitos teóricos da emoção não pensam na emoção como o objetivo em si.
Assim sendo, se se perguntar às pessoas quais as suas intuições quotidianas sobre emoções e lhes perguntar quais os seus objetivos na vida, bem, é serem felizes. “O meu objetivo é ser feliz”. Querem habitualmente minimizar a intensidade da emoção negativa, em geral, e maximizar a intensidade da emoção positiva. Eu acho que o que precisamos de fazer é usar esta informação e aproveitá-la de uma maneira pedagógica, dizendo: “Bem, as emoções são, sem dúvida, facetas importantes das nossas vidas, dão-nos informações, dão-nos sinais de certas coisas, mas não são o objetivo em si”.
Mas Gruber diz mais coisas interessantes sobre a felicidade e a sua procura. Uma questão interessante é da funcionalidade das emoções positivas – ou da felicidade, se se preferir. É certo que as emoções positivas aumentam a nossa capacidade de resolver problemas, de pensar de forma criativa. Mas isto é verdade só até certo ponto. Além de um certo nível, é o contrário que se verifica: excitação, entusiasmo, alegria tornam-nos rígidos e menos criativos; e levam-nos a correr mais riscos, ignorando informação do mundo circundante.

E há também que ter conta a contextualização: parecerá óbvio a muita gente que há contextos em que as emoções positivas estão deslocadas e não têm qualquer função a desempenhar. A ideia de que é sempre bom sentir-se feliz é, por conseguinte, sem cabimento e são outras emoções que, por vezes, se devem cultivar. De facto, as emoções positivas criam dificuldades num contexto inapropriado – e podem ser indicadores de mania ou de falta de relação com os outros.

O mais importante, não só para ter uma boa saúde mental mas também física, é manter um equilíbrio. Por contraintuitivo que possa ser (a verdade, já se sabe, é-o quase sempre), maior grau ou maior frequência de emoções positivas não resultam em maior bem-estar – nem mental nem físico (nestes estudos são usados também extensos relatório clínicos não psicológicos). Funcionamos melhor quando se equilibram emoções positivas e emoções negativas:
É uma questão muito antiga, a do que significa felicidade, mas creio que o problema agora é que a palavra é usada ... para dizer todo o tipo de coisas. … Ás vezes, trata-se de um maior sentido de bem-estar subjetivo, às vezes de prazer sensorial na altura, mas as pessoas só sabem que é qualquer coisa que devem ter. Então, vemos disparar o número de receitas e poder-se-ia esperar que se tratasse de um rastreio e diagnóstico mais rigorosos de depressão nos nossos tempo, mas há que se interrogar se será outra coisa e se estamos a seguir este impulso de minimizar o negativo e maximizar o positivo.

Preocupa-me esta idade da felicidade, porque o que ela também faz … é afastar-nos de simplesmente ter também experiências negativas, que são fontes de informação incrivelmente ricas para nós e componentes importantes daquilo que nos dá vidas ricas e com sentido. …
É bom ter alguma alegria, mas também se deve ter tristeza; também se deve ter sentimentos de culpa e a experiência de perda. Todas essas coisas são importantíssimas para criar uma robustez emocional para saber como viver essas emoções, como lidar com elas e também para receber informação do mundo à nossa volta.
“Nada em excesso”, dizia a célebre inscrição do templo de Apolo em Delfos – nem as emoções positivas que muitas vezes se designam como felicidade. É claro, se se fizer simplesmente corresponder felicidade a bom, haverá com certeza quem argumente que não se pode falar de excesso de felicidade. A vantagem de se pensar em felicidade como emoções positivas é ficarmos com uma ideia mais clara do que se está a falar: excesso de alegria, de prazer, de satisfação e orgulho resulta simplesmente em insuficiência de, por exemplo, tristeza, dor, frustração e remorso. Coisas importantes na vida.

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Para variar agora um pouco a perspetiva de análise, mas continuando ainda na crítica ao incitamento à procura da felicidade, traduzo uma das várias formulações que Leo C. Rosten tem de uma reflexão interessante sobre a questão:
Não posso acreditar que a finalidade da vida seja ser “feliz”. Penso que a finalidade da vida é ser útil, ser responsável, ser digno, ser compassivo. É sobretudo servir para alguma coisa: ter alguma importância, defender alguma coisa, fazer alguma diferença que se tenha vivido*.
Escrevi quase a mesma coisa, de uma maneira muito mais concisa e muito menos elegante:
Em vez de dar tanta importância, como se costuma dar, ao que se leva desta vida, porque não importar-se antes com o que nela se deixa?

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* Words of Wisdom: More Good Advice, p.309, Nova Iorque: Simon & Schuster, 1989.

18/11/14

O resto dos meus dias [Crónicas de Svendborg #22]

Não conto férias nem as muitas estadas temporárias, só mesmo domicílios: vivi em 27 casas em 7 países e 3 continentes (ou 4, se não se considerar a América um único continente). Mas acabou a vida de vagabundo! Tenciono passar aqui em Troense o resto dos meus dias.

Quero dizer o resto da minha vida, está claro, mas não me importava de passar aqui também os dias depois da morte. Aliás, nem isso, nem o contrário, porque não me preocupa mesmo nada onde deixar os ossos. Mas enfim, para proporcionar uma vista bonita a quem quisesse visitar os tais ossos (faz-nos bem enterrar e visitar os nossos mortos, não é?), gostava de ser enterrado neste cemitério de Svendborg.

O cemitério chama-se Assistens Kirkegård, “Cemitério Auxiliar”. Kirkegård, a palavra dinamarquesa para cemitério, é composta de kirke, “igreja”, e gård, “pátio”, “quintal” ou “quinta”, e muita gente é ainda enterrada nos cemitérios das igrejas. A minha segunda escolha para morada dos meus ossos é o cemitério da Igreja de Bregninge, que fica mais ou menos à mesma distância que o Assistens Kirkegård de Svendborg, a meia dúzia de quilómetros daqui.



A não ser, claro está, que prefiram cremar-me, o que também acho muito bem.




[É a terceira vez que aqui falo de cemitérios dinamarqueses. Já o fiz aqui e aqui.]

11/11/14

De Novick a Gibbons, passando por Lichtenstein

No número 89 de revista de banda desenhada All-American Men of War, de Fevereiro de 1962, Irv Novick tem, na página 12 da história “The Star Jockey”, a seguinte tira:

No número 90 da mesma revista, aparece a história “Wingmate of Doom”’, ilustrada por Jerry Grandenetti. Eis a terceira ilustração da página 11:

No mesmo número da revista, na página 3 da história “Aces Wild”, ilustrada por Russ Heath, aparece o seguinte desenho:

Estas três histórias têm, todas elas, texto de Robert Kanigher e letragem de Gaspar Saladino. Com base na imagem de Novick, que adaptou colando-lhe as imagens de Grandenetti e de Heath, Roy Lichtenstein pintou em 1963 o seu famoso quadro Whaam!, que foi exibido na Galeria Castelli e depois comprado em 1966 pela Galeria Tate, de cuja coleção ainda faz parte.

Em April de 2013, o ilustrador e autor de banda desenhada Dave Gibbons exibiu no Central Saint Martins College of Art & Design, em Londres, a sua obra Whaat?:


The end?

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[Fui buscar a informação e as imagens aqui reproduzidas ao artigo “The principality of Lichtenstein”, de Paul Gravett, pelo que não se deve considerar da minha autoria esta entrada de blogue, mas apenas reorganização e tradução parcial do artigo de Gravett.]

02/11/14

Dia de Finados #2: Saudade eterna, circular



eterna saudade,
                             prometemos em lápides. mas qual eterna!,
                             a nossa saudade é como o resto de nós:
                             dura só até gravarem o nosso nome numa lápide
                             em que nos prometem, que mania!,
eterna saudade




Dia de Finados #1: Dança quase macabra em redondilha maior

Hoje é o dia dos mortos,
que persistem, desalmados,
em corpos que já não têm
noutros corpos transformados

Hoje é o dia dos mortos,
como os dias sempre são:
dos mortos que já morreram,
dos mortos que ainda não.

28/10/14

O mal maior

Não sei porque pensei nisto. Talvez por causa de uma série de fotos que vi algures de guardas de campos de concentração nazis, com legendas que diziam qualquer coisa como “estes monstros parecem, afinal, pessoas normais”. A maior parte das pessoas, pelo que tenho observado, estão sinceramente convencidas de que são pessoas boas e que as pessoas más são outro tipo de pessoa. E, se chegam a admitir, surpreendidas, a humanidade de criminosos e monstros de toda a classe, custa-lhes mais admitir uma outra proposição verdadeira: todos trazemos dentro de nós o mal todo de que os humanos são capazes. …Ou, pelo menos, a maior parte dele. E dedicamos uma parte importante do nosso tempo e da nossa energia a negar esse mal que temos cá dentro, a impedir que faça parte das nossas ações. É por isso que não é esse mal, por si, o maior problema – o maior problema é, claro está, não sermos capazes de negar o que não queremos ser; ou então, talvez pior ainda, não sei…, acreditarmos que, por estarem dentro de todos nós, esses horrores não podem, afinal, ser o mal que críamos serem e arranjarmos nomes bonitos com que os louvar…

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Uma coisa diferente, a propósito da expressão negar-se e de conflitos entre a nossa moral e outras partes de nós: Dizia um amigo meu que é mais fácil a vida de um conservador que a de quem queira mudar a sociedade, porque não tem o conservador de negar-se tanto. Uma parte do que é fundo em nós é adquirida muito cedo – o meu amigo falava, por exemplo, de modelos de género e da conceção da autoridade e das hierarquias – e sermos como nos ensinaram a ser causa menos inquietação do que vigiarmo-nos constantemente para agir e pensar de acordo com o que achamos bem e não como fomos socialmente programados para agir e pensar. Parece-me que a facilidade com que negamos educação e cultura depende também, em grande medida, do que se passe em torno de nós, da aprovação que haja da mudança nos grupos de que fazemos parte e em toda a sociedade. Mas acho que, em parte, esse meu amigo tem razão.

27/10/14

Três canções bonitas deste ano de graça de 2014


É uma ideia generalizada, creio eu, que na música popular europeia e americana predomina o esquema de estrofes e refrão (um refrão sempre igual e curto, de um ou dois versos), com uma ponte, se a há, antes ou depois do refrão. É possível que  seja mesmo essa a estrutura mais comum ou que, pelo menos,  já o tenha sido – não sei; mas há muitos outras estruturas possíveis. E há também muitas canções que não obedecem a esquemas regulares, ou os alteram ou desorganizam. E passo a apresentar-vos, se as não conhecerdes, três canções bonitas deste ano de graça de 2014:

“Rêverie on Norfolk Street”, do duo Luluc, parece – e é-o, de facto! – uma canção popular bastante canónica, com uma melodia simpática, embora também não seja especialmente inspirada, e uma letra bem escrita, sem ter nenhum grande achado. Um olhar mais demorado revela algumas irregularidades na estrutura… E uma dúvida: o refrão deve ser o último verso de cada quadra e os três versos que se seguem à segunda e à terceira quadras devem considerar-se uma ponte, não é verdade*?



“Killer of birds”, de Jesca Hoop, tem uma estrutura, uma melodia e uma letra menos canónicas que “Rêverie on Norfolk Street” e, na minha opinião, bem mais inspiradas, mas partilha uma características da canção dos Luluc: não sei se devo considerar refrão a frase repetida no fim das estrofes (“love you the most”) ou a sequência de quadras que se repete …. A letra e melodia da canção repetem-se duas vezes, como as canções tradicionais do Chaco por exemplo (só falta alguém gritar “¡se va la segundita!” antes da repetição... )


“Arctic shark” é uma canção que muita gente podia ter escrito na década de 60 – e gostaria de o ter feito, acho eu –, mas que só agora foi composta pelos membros dos Quilt. Também não tem refrão, no sentido convencional da palavra, nem uma estrutura muito canónica. Há repetições, mas nenhum verso se repete completamente.  A métrica do verso altera-se um pouco nas várias vezes em que ocorre a mesma parte musical, produzindo,  por isso, melodias ligeiramente diferentes.



Em geral, há pouco a dizer sobre as canções populares, mas é claro que se pode dizer mais que apenas a estrutura de rimas e estrofes e refrães. Mas fica isso para outra vez, se a houver. O que quero agora dizer é o seguinte: Há quem defenda que uma das especificidades do humano relativamente aos outros animais é a capacidade de repetir estruturas em esquemas organizados, em sequências lineares ou encaixando-se umas dentro das outras. Somos, por isso, o único animal que  faz música. E, digo eu agora, somos também capazes de desorganizar as estruturas regulares que criamos – para as tornar mais interessantes, para realçar que cada criação é única, por muito que siga o esquema de base de outras criações.  Mas queria sobretudo apresentar-vos, se as não conhecíeis, três canções bonitas deste ano de graça de 2014.

  
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* Numa primeira versão deste texto descrevia pormenorizadamente a estrutura irregular das canções, mas achei que cabia mal essa descrição num texto destes e resolvi que, pondo aqui as letras, pode quem ler não só dar-se rapidamente conta dessas  irregularidades como acompanhar a canção. Também comecei a traduzir as letras das canções, para quem não percebesse inglês, mas o resultado foi tão insatisfatório que desisti de aqui publicar as traduções. Quero só chamar a atenção de um pormenor da letra de "Murder of birds" que creio que pode escapar mesmo a quem fale bem inglês: muitos saberão que bird significa, além de "pássaro", "rapariga", mas poucos devem saber que que, além do seu significado de "assassinato", a palavra murder se usa na expressão murder of crows, "bando de corvos". Ah, e embora, nas transcrições que encontro da letra "Arctic shark", o primeiro verso seja sempre "How can I proceed with thee?", parece-me que é de facto "these" que se ouve e não "thee"... 

07/10/14

O sex appeal do relativismo linguístico (continuação de vários capítulos anteriores…)

Nos artigos sobre língua e linguística que vão aparecendo na comunicação social, a influência da língua na maneira de ver o mundo é um tema muito sexy. Os jornais não são, nesse aspeto, muito diferentes das conversas de café: pelo que vejo, é sempre sexy afirmar que “as categorias linguísticas influenciam o pensamento e algum comportamento não linguístico” ou qualquer coisa desse estilo. Evidentemente, os pressupostos e conclusões desta escola de pensamento são discutíveis – e efetivamente discutidos –, mas, embora a perspetiva contrária não esteja completamente ausente dos meios comunicação social, é-lhe dado menos espaço mediático. É muito menos sexy dizer, por exemplo, que a língua dá conta de como a mente funciona do que dizer que ela modela a maneira como a mente percebe o mundo.

Já aqui falei muito desta questão e, por muito que sobre ela haja muito mais a dizer, hoje falo antes de outra ideia relacionada com esta, também muito sexy e, por isso, também muito divulgada, que é a das palavras e construções muito, muito idiossincráticas, intimamente ligadas à cultura e à mundividência de um povo – tão idiossincráticas que chegam a ser intraduzíveis. É que há muito quem goste de empolar o idiomático e o intraduzível. E há também quem, como eu, goste de chamar a atenção para o muito que assim se exagera – quando não se dizem, pura e simplesmente, disparates atrás de disparates.

Fazendo uma recolha ao acaso de oito das muitas listas de palavras “intraduzíveis” que por aí circulam[1], as mais referidas (em seis dessas listas) são a família francesa dépayser/dépaysement e o checo prozvonit. Se, no caso dos termos dépayser/dépaysement/dépaysant, posso imaginar dificuldades de tradução de frases em que eles entrem (embora, em muitos contextos, exótico, por exemplo, traduza exatamente dépaysant), já prozvonit (creio que é um verbo, esquecem-se sempre de classificar morfologicamente os “intraduzíveis”) parece ser facilmente traduzível para muitos falantes do português ou do espanhol, já que há nas duas línguas uma expressão que traduz diretamente o termo checo: dar um toque é a expressão que usam para referir um telefonema que se desliga antes de o destinatário ter atendido, para o informar de alguma coisa previamente combinada sem ter de pagar uma chamada – ou para que ele ligue a quem ligou[2].

Em seguida, com cinco ocorrências nas oito listas, vêm hygge/hyggeligt em dinamarquês, mamihlapinatapai em iagane da Terra do Fogo, saudade em português, Schadenfreude em alemão e wabi-sabi em japonês. De hygge/hyggelig e de saudade já aqui falei e, em vez de me repetir, remeto-vos para o texto em que analiso a pretensa intraduzibilidade dessas e outras palavras, e a própria ideia de in/traduzibilidade. O que se traduz, explico eu nesse texto, não são palavras mas frases (para simplificar), pelo que a ideia de palavras intraduzíveis não faz grande sentido. Mas adiante. É-me completamente impossível saber de que elementos se compõem mamihlapinatapai e wabi-sabi e se há ou não marosca na definição dos termos. Se mamihlapinatapai significa de facto “um olhar trocado entre duas pessoas que querem ambas que a outra inicie algo que ambas desejam, mas não querem ser elas a começar”, um olhar cúmplice cobre provavelmente muito do uso do termo sem grande perda de informação, se não quisermos recorrer a, sei lá, “uma troca de olhares hesitantes de desejo”, qualquer coisa assim. Já a definição de wabi-sabi é tão estranha que gostaria que, além de explicarem de que categoria morfológica é o termo, me apresentassem a palavra em contexto: a definição de “encontrar beleza na imperfeição e aceitar o ciclo natural de crescimento e declínio” parece-me tão fantasiosa, que ou se trata do aproveitamento filosófico de um termo que não tem nada a ver com o seu uso línguístico comum[3] ou então imagino mal uma frase como “Ana amiúde wabi-sabi”, com o significado de “Ana encontra amiúde beleza na imperfeição e aceita o ciclo natural de crescimento e declínio”. Vocês não? Schadenfreude é, claro está, uma das palavras alemãs que muitas vezes se usa em enunciados de outras línguas sem a traduzir (como Blitzkrieg, Weltanschauung, Zeitgeist, etc., etc.), mas é por hábito que isso se faz (uma moda, de facto) e não por impossibilidade de dizer o mesmo com palavras que não sejam alemãs. Um nome não é, em princípio, predicador e é preciso, para propor uma tradução, ver as frases concretas em que a palavra aparece; mas se for de sentir Schadenfreude que se trate, deixo a tradução à minha avó, que falava de “ter gosto na desgraça alheia”. Num registo menos familiar, comprazer-se no sofrimento alheio resolve bem o problema, ou não?

E depois, em quatro das oito listas aparecem o cafuné do português, o espanhol duende (Spaniards got soul!), o inuíta iktsuarpok, que é “ir lá for a ver se lá vem alguém”; o jayus indonésio, “uma anedota tão má que dá vontade de rir”; o kyoikumama japonês, essa “mãe educativa”, que obriga o filho a ter boas notas na escola; o lítost checo, definido como “o estado de agonia ou tormento resultante pela súbita constatação da sua própria desgraça” (discutido no parágrafo seguinte); o pochemuchka russo, que é o Spørge Jørgen dinamarquês, aquele perguntador cujas línguas se comiam ao jantar quando eu perguntava à minha avó o que era o comer; o tartle escocês, que é “hesitar ao apresentar alguém porque, ups!, se esqueceu o seu nome”; um surpreendente tingo do rapanui, que é “pedir emprestado até deixar sem nada quem nos empresta” (esta cheira mesmo a esturro, não cheira?), o Torschlusspanik alemão, que é “a angústia de ter cada vez menos oportunidades à medida que o tempo passa”, mas que, de facto, é apenas uma metáfora compreensível por falantes de qualquer língua em cuja cultura existam portas, o “pânico d(e encontrar) a porta fechada”; e depois e depois e depois…

A verdade é que, como diz David Shariatmadari, num artigo no Guardian (traduzo eu) “todos gostaríamos de acreditar em palavras intraduzíveis. É uma ideia tão romântica: que existem aí algures, como ilhas desertas por descobrir, ideias que nunca concebemos. Cuidadosamente guardadas por estrangeiros ao longo dos séculos, joias de cultura ignoradas pelo resto do mundo”. Shariatmadari é, como eu, crítico deste romantizar da intraduzibilidade. Ainda bem que o Guardian, que costuma divulgar tanto a perspetiva oposta, dá também voz ao menos sexy: “Há alguns pressupostos linguísticos e não linguísticos ligados a este romance, a maior parte dos quais é decididamente duvidosa”, continua Shariatmadari, acrescentando que os exemplos comummente citados são “quase todos ridículos, quando se analisam em pormenor”. Além da saudade e do hyggelig já referidos, ou do mito das palavras inuítas para neve (de que também já aqui falei uma vez), Shariatmadari passa em revista várias palavras “intraduzíveis”, como a utepils norueguesa, o aware japonês, a Schnapsidee e a Waldeinsamkeit alemãs, a toska e o razbliuto russos e a goya do urdu. Do lítost checo, de que prometi desenvolvimento no parágrafo anterior, diz ele o seguinte:
Milan Kundera não conseguiu traduzir esta palavra checa para inglês. NO Livro do Riso e do Esquecimento, definia-a como “um estado de tormento criado pela repentina constatação da sua própria desgraça”. As línguas dividem de forma diferente o espectro do sofrimento humano. Mas o inglês tem com certeza uma quantidade de candidatos a equivalente aproximado: self-pity, remorse, regret, anguish, shame [autocomiseração, remorso, arrependimento, angústia, vergonha].
Pode ser que Shariatmadari tenha razão e pode ser que não. Não sei checo, não o posso discutir. Não parece haver dúvidas de que o verbo litovat significa “arrepender-se, ter remorsos” e que lítost significa “arrependimento” em certos contexto, mas a explicação de Kundera na obra referida parece dizer mais respeito a vergonha que a arrependimento. O que tenho por certo é não há nenhuma razão para crer que os checos conseguem fazer frases para descrever um sentimento que ninguém além deles consegue fazer. Isso implicaria uma de duas explicações: ou os checos sentem coisas que mais ninguém sente ou a língua checa tem uma capacidade de representação do mental diferente das outras. Ambas me parecem altamente improváveis…

Como Shariatmadari também explica, pode ainda acontecer que, por exemplo ao considerar intraduzível a “palavra” turca çekoslovakyalılaştıramadıklarımızdanmışsınız, se alargue tanto o conceito de palavra que se faz a batota de comparar “palavras” de certas línguas com “palavras” de outras línguas em que cabem numa “palavra” muitas “palavras”. Trata-se, de facto de um artifício fundamental no discurso do intraduzível: não especificar o que se entende por palavra, uma categoria muito vaga, sobretudo quando há línguas e tradições ortográficas em que se juntam palavras para formar novas palavras e outras em que as palavras mantém sempre, no som e/ou na escrita, alguma autonomia entre elas. Enfim…

E então? Palavras intraduzíveis são, com rigor, todas as palavras, porque não são, insisto, palavras que se traduzem. Mas, para não ir tão longe, palavras intraduzíveis são simplesmente as palavras que as pessoas que defendem a sua intraduzibilidade não sabem traduzir para nenhuma das outras línguas (entre 3.000 e 7.000, conforme se façam as contas), o mais das vezes porque nunca se deram a muito trabalho para encontrar uma tradução…; ou as palavras estrangeiras que não sabem traduzir para a sua própria língua, porque não compreendem o que elas querem dizer e aceitam explicações delirantes do seu significado[4]...

Mas passemos agora das “palavras” às expressões. Para voltar ao já referido artigo do Guardian sobre “vocabulários culturais”, é preciso, sinceramente, uma enorme dose de boa vontade e muitas voltas à retórica para dizer que “a individualidade nacional se exprime saudavelmente em expressões idiomáticas como o mesmo significado mas usos (???) amplamente diferentes e localmente inspirados” e dar como exemplo o contraste entre carrying coal to Newcastle (“levar carvão para Newcastle”), Eulen nach Athen tragen (“levar mochos para Atenas”), vendere ghiaccio agli eschimesi (“vender gelo aos esquimós”), llevar naranjas a Valencia (“levar laranjas a Valência”) e vizet hord a Dunába (“levar água ao Danúbio”)”[5]. Que o Danúbio não seja em Espanha e que as laranjas de Valência não possam fazer parte de um provérbio inglês parece relevar mais da geografia que da língua e, se se pode encontrar “individualidade nacional” no carvão em Newscastle, já se vê mal o que têm de especialmente alemão os dracmas atenienses ou o que há de especialmente italiano no gelo dos esquimós. Sejamos razoáveis: Não há nada na língua portuguesa (nem na cultura portuguesa, sequer) que determine ou justifique uma expressão como “ensinar a missa ao padre”[6] – houve apenas, por acaso, um falante do português que criou essa frase (mesmo que tenha sido traduzida) e ela teve fortuna entre os falantes da língua, voilà! Evidentemente (por razões que nada têm a ver com a língua!), seriam precisas algumas alterações para que a tradução de “ensinar a missa ao padre” fosse entendida por pessoas de países onde não há missa nem padres, mas é, em princípio, adaptável para qualquer língua do mundo.

São famosas as brincadeiras com traduções “literais” de expressões ditas idiomáticas, incluindo provérbios. Também já aqui falei uma vez disso.  Dizia que “muitas das expressões ditas idiomáticas (…) são figuras de estilo que só se tornaram populares numa determinada região e que, por isso, só se usam na língua dessa região, mas que nada impediria de terem tido a mesma fortuna noutra regiões e noutras línguas”. Agora, claro, “o que não se pode é traduzir [as expressões de cada país ou região] de uma maneira parva, como se faz normalmente nas anedotas para aumentar o efeito cómico”, escrevia eu nesse outro texto desta Travessa.

Não se pode dizer, por exemplo, “Tens uma descida que eu não gostava de subir de bicicleta!” por razões efetivamente linguísticas, mas é apenas porque é impossível traduzir assim para português um jogo de palavras francês. A frase é uma tradução “literal”, e por isso idiota, de uma expressão, que se diz a alguém que bebe muito: Tu as une descente que j’aimerais pas remonter à vélo ! Evidentemente, descente em francês não é só “descida”, mas também “capacidade de emborcar” e, se não houver, na língua alvo, uma palavra que tenha esses dois significados (não fui ver nas línguas todas do mundo, mas parece-me provável que essa coincidência se dê só em francês…), o jogo de palavras não funciona.

Também é óbvio que há que ter cuidado com a tradução “literal” de uma expressão como dia de São Nunca à tarde, mas, se a tradução for sensata, ela compreender-se-á mesmo nas línguas em que não se usa. Aliás, há em inglês uma expressão com a palavra never (“nunca”), twelfth of never, que significa o mesmo, e há noutras línguas europeias expressões com o mesmo significado com nomes de santos… inexistentes (ver aqui e aqui). Mesmo uma expressão como o olho da rua, em que a tradução direta de olho causaria sem dúvida muita estranheza e incompreensão, não é assim tão “idiomática” como pode parecer, porque olho também se usa noutras línguas para dizer “meio” , por exemplo quando se trata do centro de um furacão – e não só!

Eu uso muitas vezes, numa determinada língua, expressões que costumam usar-se noutra língua e toda a gente me compreende, se digo, por exemplo, que não vale a pena procurar o meio-dia às duas da tarde ou que não vale a pena procurar pulgas onde não há pulgas (expressões francesas, il ne faut pas chercher midi à catorze heures e il ne faut pas chercher des puces où il n'y en a pas). Agora vou passar também a dizer, para situar um acontecimento num passado muito distante, que isso foi no tempo em que o rei de ouros ainda era valete. É uma expressão dinamarquesa, dengang ruder kongen var knægt, que aprendi no outro dia. Por outro lado, há frases idiomáticas cujo significado não se compreende apenas por falar a língua em que elas ocorrem – tem de se aprender o seu significado, como se aprende o significado de uma palavra. Um exemplo óbvio é quem quer vai, quem não quer manda. A frase propriamente dita não significa, em português, o que significa o provérbio que ela constitui, pelo que ser falante do português não basta para adquirir esta parte do seu “vocabulário cultural”…

Conclusão (mais uma vez): um bocadinho de bom senso, sim?

Ah, e outra coisa que não tem nada a ver com isto, mas com o título do texto: há palavras inglesas que entram no português e outras que vão saindo – sex appeal era muito mais comum na geração do meu pai que na minha e tenho a impressão que está a cair em desuso, não está?

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[1] A lista original está reduzida da seis a 23.7.2023: http://www.boredpanda.com/untranslatable-words-found-in-translation-anjana-iyer/; http://boingboing.net/2014/09/22/ten-untranslatable-words.html; http://europeisnotdead.com/disco/words-of-europe/137-2/; http://travel.allwomenstalk.com/fantastic-untranslatable-words; http://matadornetwork.com/abroad/20-awesomely-untranslatable-words-from-around-the-world/; http://www.babbel.com/magazine/untranslatable-01

[2] Encontrei na Internet vários comentários de brasileiros e espanhóis propondo dar um/un toque como tradução direta de prozvonit. Os meus amigos portugueses que consultei sobre o tema parecem acordar que dar um toque, sem mais, é ambíguo e que acrescentariam qualquer coisa: dar um toque e desligar, por exemplo.

[3] Da mesma forma que, na boa tradição de Teixeira de Pascoaes, algumas definições de saudade que se encontram nestas listas de palavras intraduzíveis não têm nada a ver com a palavra saudade usada nas frases efetivamente produzidas por falantes do português: “vago e constante desejo de qualquer coisa que não existe e provavelmente não pode existir (…), que indica que nos viramos mentalmente para o passado ou para o futuro [!!!]”, que “não é um descontentamento ativo ou uma pungente tristeza mas sim uma melancolia indolente e sonhadora.” Desculpe, importa-se de repetir? Mas, mesmo que não se vá por tão fantasiosa definição e nos fiquemos pela (também completamente incorreta) “nostalgia de uma pessoa ou coisa que se perdeu e que já não volta”, como se aplica isso a, por exemplo “Bom, saudades de Portugal propriamente não tenho, mas tenho, claro, saudades dos amigos e da família – e de bom peixe fresco. Uma boa postinha de garoupa, ena, que saudades!” ou a “Ena, já tinha saudades de vir aqui dar uma volta à tarde, há mais de três meses que cá não vínhamos”. Enfim, quem não sabe é como quem não vê, diz o outro e com razão. Parece-me provável que a longa dissertação de Milan Kundera nO Livro do Riso e do Esquecimento sobre o termo lítost, que se discute neste texto, seja um devaneio do mesmo tipo que ignore completamente o uso real da palavra em checo, mas, claro, não posso disso ter a certeza…

[4] Ou até porque o seu vocabulário na sua própria língua é extremamente limitado. No blogue Better Than English (entretanto desparecido), que era um exemplo acabado do disparate linguístico no que toca a palavras intraduzíveis, chegava a afirmar-se que a palavra espanhola tocayo (o xará do português brasileiro) não tem tradução para inglês – mas então e a palavra namesake?

[5] Também não se percebe o que vem fazer no meio de tudo isto a constatação simples de que a expressão de dor é diferente em diferentes línguas. Em princípio, o que seria estranho é que o não fosse – tão estranho como uma mesa ser referida pela mesma palavra em todas as línguas. Não deixa de ser curioso, porém, que haja tanta semelhança entre a expressão da dor em línguas tão diferentes como o português e o mandarim – e talvez alguma razão para tal –, e é também muito curioso que este artigo se esqueça de o referir para acentuar o contrário…

[6] “Ensinar a missa ao padre” pode ter uma nuance de sentido que implique restrições no uso relativamente às frases referidas antes, que significam apenas “fazer algo inútil”. A Wikipedia em alemão, porém, inclui no seu artigo “Eulen nach Athen tragen” (uma variação dieletal d)a expressão meiner Großmutter das Beten lernen, “ensinar a minha avó a rezar” como sinónimo de levar mochos para Atenas – e esta parece corresponder de uma forma muito direta a “ensinar a missa ao padre”. Além de uma longa lista de expressões sinónimas em alemão, o artigo tem também uma lista de expressões equivalentes noutra línguas, estre as quais “levar bananas para a Madeira” e “vender mel ao colmeeiro” em português.

[Atualizado a 23 de julho de 2023]

01/10/14

Ponto da situação

Ilustração da Astronomie Populaire de Camille Flammarion, 1879, p 231 fig. 86 (da Wikipédia)
Faz hoje 7 anos que nasceu a Travessa do Fala-Só, com um texto em que conto a história do motivo célebre dos aventureiros que, conhecendo a previsão de um eclipse solar, assustam os seus captores convencendo-os de que comandam o sol.

E acho que, em 7 anos, 451 textos, quase 400.000 palavras (umas 1000 páginas, digamos assim), disse uma coisa original (pelo menos enquanto não descobrir que, afinal, já alguém tinha dito o mesmo antes de mim): que, nas descrições fonéticas do português europeu, há sempre um som que falta.

Não é chita. Tirando isso, é como se sabe: às vezes há mais assunto e mais inspiração, às vezes menos; às vezes, sai escorreito o texto, outras vezes não. É assim a vida.

28/09/14

O princípio da desvantagem e a in/utilidade da arte

Não é invulgar a ideia de que a inutilidade é uma característica essencial da arte. Oscar Wilde, por exemplo, afirma-o perentoriamente no fim do famoso prefácio ao Retrato de Dorian Gray (traduzo eu):

Podemos perdoar a um homem fazer uma coisa útil, contanto que a não admire. A única desculpa para fazer uma coisa inútil é admirá-la intensamente.
Toda a arte é bastante inútil. 
Mas eis um enquadramento diferente da ideia: há quem alargue o alcance do chamado princípio da desvantagem, aplicando-o também, entre outras coisas, à criação artística*. Muito resumidamente, a ideia é que um solo de trompete é um sinal como a cauda de um pavão, que se ostenta como quem diz: “vejam, sou tão bom que, além das capacidades que me asseguram o essencial para a sobrevivência, até tenho capacidades desnecessárias e difíceis de adquirir!”

Um handicap tem, por definição, de ser inútil do ponto de vista adaptativo. Ao servir para a seleção sexual, porém, ganha uma utilidade considerável. Agora, parece-me que, embora sem a referência à teoria do handicap e sem as suas complexidades, a ideia de que uma das motivações da arte (ou a sua motivação essencial) é impressionar potenciais parceiros sexuais é tão antiga e tão comum como a ideia da sua inutilidade: sempre ouvi dizer que é para seduzir que se aprende a tocar guitarra e que o domínio do metro e da rima vale tanto para esse mesmo fim como um rosto bonito, dentes saudáveis ou um corpo bem feitinho.
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* A ideia, que conheci através de Tor Nørretranders em O homem generoso (2005) (de que já aqui falei uma vez), vem de Geoffrey Miller em Mating Mind (2000), que vê a seleção sexual como origem e finalidade da mente humana.

21/09/14

Breve recensão de Uma vida chinesa

(e algumas considerações sobre as expressões banda desenhada e novela gráfica)

Nos anos 60, surgiu, em inglês, a expressão graphic novel para designar um certo tipo de banda desenhada a que se aplicavam mal as designações tradicionais, como comics ou funnies. Só em finais da década de 80, porém é que a expressão começou a ter grande divulgação. Não sei com que prontidão as expressões romance gráfico e novela gráfica foram adotadas em português (a primeira mais no Brasil, a segunda mais em Portugal), mas são hoje expressões habituais. Quero fazer aqui duas pequenas observações, antes de passar ao romance gráfico que aqui me traz:

A primeira é sobre a designação portuguesa das narrativas com sequências de figuras complementadas ou não por balões e caixas de texto. Banda desenhada, a expressão que uso por (mau!) hábito, parece-me bastante infeliz. Má tradução de bande dessinée, usando os cognatos das palavras da expressão francesa, banda desenhada refere de facto as historietas que eram publicadas em tiras diárias ou semanais – e erradamente, porque sempre lhes ouvi chamar tiras, precisamente, e nunca bandas. É preferível, apesar de tudo, a outra designação mais popular de histórias aos quadradinhos, embora seja melhor ainda a expressão brasileira, histórias em quadrinhos, pela preposição em (em episódios, em fascículos, etc.) e pelo nome, já que é de quadros e não de quadrados que se trata.

A segunda nota é sobre as expressões romance gráfico e novela gráfica. Também novela gráfica é uma má tradução usando o cognato português da palavra inglesa novel, e romance gráfico é que é, pois, a tradução correta. Agora, é certo que, pela relativa linearidade do enredo e pela sua brevidade, os romances gráficos são antes, na maior parte dos casos, contos gráficos ou novelas gráficas.

E este segundo apontamento traz-me, precisamente, à história de que vos quero falar, Une vie chinoise, de P. Ôtié [Phillipe Autier] (guião) e Li Kunwu (desenhos)*: acabo de ler um verdadeiro romance gráfico – 723 páginas, uma BD de fôlego.

Uma vida chinesa é uma a quase-autobiografia do ilustrador Li Kunwu e pretende ser a história da vida de “um chinês comum” como exemplo da vida dos chineses entre 1955 e 2010. Mas não tem ambições de ser descrição histórica ou análise sociológica: é apenas uma sucessão relativamente fragmentada de episódios de vida, de várias vidas. O autor do guião, o francês Phillipe Autier, recusa-se a fazer de Li Kunwu e das outras personagens principais apenas tipos sociais planos; e as personagens têm, dentro dos limites deste tipo de narrativa, uma relativa densidade.

Há quem acuse esta obra de repetir o que Li Kunwu fez toda a vida: propaganda do Partido Comunista Chinês. Não me parece que se o possa afirmar, até porque há partes de crítica veemente; mas a obra não é vazia, se não de óbvia exaltação, pelo menos de defesa do Partido Comunista. A dada altura, no terceiro volume, surge de repente esse tipo especial de construção em espelho em se assiste à discussão e criação da própria obra. Parece tratar-se de uma solução para um impasse: Otié e Kunwu discutem o que dizer de Tiananmen. Nessa história da história (com desenhos sombreados a cinzento, para não se confundirem com o resto da narrativa**), diz-se que houve em todo o guião uma vontade de objetividade. Pode bem ser. Provavelmente, a postura de Li Kunwu em relação ao partido, a si próprio e aos seus próximos parecerá crítica à maior parte dos leitores, mas ele está, o mais das vezes, a contar só o sucedido, sem o avaliar. De Tiananmen, porém, diz Li Kunwu que não sabe muito, que não conhece ninguém que tenha participado, que é uma coisa sem importância, enfim, e que já foi há tanto tempo... E parece-me indesculpável, esta desculpa. Tão indesculpável como a afirmação de que a China precisa de sossego e que, sejam quais forem as decisões e as políticas do governo, é preciso acatá-las sem causar conflitos, a bem do país...

Ainda assim, dos aspetos mais caricaturais aos mais tenebrosos, dos desmedidos anseios aos desenganos, num olhar que é, ao mesmo tempo, de simpatia e de crítica, externo e interior, não há nada muito linear em Uma vida chinesa e a única coisa que é mesmo a preto e branco é o excelente desenho de Li Kunwu – um traço em que se fundem a tradição de ilustração clássica chinesa, a estética épica e kitsch da propaganda comunista e uma vontade de modernidade que perverte esses dois conjuntos de convenções.


Agora, pode discutir-se se vale a pena uma banda desenhada tão longa para contar o que esta conta. Talvez a narrativa se arraste demasiado, aqui e ali. Mas, no geral, não se sente que perde ímpeto ou que se despacha no fim, como acontece às vezes às narrativas longas. A mim, o desenho de Li Kunwu não me cansa e achei o 3º volume o mais bonito do ponto de vista gráfico.
Tenho pena de não poder apresentar-vos aqui uma seleção minha de partes da obra. Como o formato dos livros não me permite digitalizar as imagens com qualidade, tive de me limitar ao que encontrei na Internet com uma resolução razoável. Mas espero que chegue para dar, a quem não conhece Uma vida chinesa, uma ideia da estética de Li Kunwu e vontade de ler a obra.

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* Edição original: Paris: Kana (Dargaud-Lombard, 2009 (tomo 1 e tomo 2); 2011 (tomo 3)
** Pode ler-se/ver-se esta parte da obra na terceira secção do artigo de Nick Stember “Putting 25 Years of Silence in Context with Comics and Animation”

19/09/14

É extraordinário…

…que eu, que testemunhei tantas vezes o insólito (vi uma vez um lama na praça central de uma pequena aldeia provençal!), nunca tenha encontrado na vida um deus, um extraterrestre, uma alma de outro mundo…

[Sem palavras]


A morte – a nossa, a dos nossos, a de todos os outros – é aquilo que mais importa na vida e, por isso, aquilo de que mais importa falar; e é também aquilo de que nada importante se consegue dizer.

Quando chego ao fim da frase, duvido do que isto seja verdade para toda a gente. É preferível dizê-lo na primeira pessoa:
A morte é aquilo de que mais me importa falar e de que não sei dizer nada importante.

11/09/14

Notas avulsas sobre regras e exceções

Pois é: sabemos que é paradoxal a regra “não há regra sem exceção” (se toda a regra tem exceção, então essa regra tem de ter uma exceção, que é a regra sem exceção, pelo que nem toda a regra tem exceção), mas continuamos, nem que excecionalmente, a aceitar como regras regras com exceções, não é verdade?

Nisto de regra e exceção, há, por regra, alguma confusão. Muitas vezes, a confusão advém de a palavra regra ter dois significados (ou mais, mas que não importam nesta discussão), conforme se aplique ao que as coisas são (as leis da Física, por exemplo) ou ao que as coisas devem ser (por exemplo, o Código Civil). Na discussão sobre língua, para puxar a brasa à minha sardinha, uma coisa são as regras que constatamos ao estudar a capacidade humana da linguagem e cada uma das línguas particulares em que esta capacidade se organiza e manifesta, e outra coisa diferente é a norma ou normas linguísticas vigentes numa determinada sociedade. Quando digo que, no português europeu, a marca de plural toma a forma /ʃ/, /ʒ/ ou /z/ consoante o som que se lhe segue, estou a enunciar uma regra do primeiro tipo (leiam respetivamente ch, j e z, se vos atrapalham estes símbolos fonéticos e, se vos parecer estranho, atentem em como pronunciam o s a negrito em “as casas castanhas”, “as casas brancas” e “as casas azuis”). Mas, se alguém disser, por exemplo “não se deve dizer «pode-se dizer», deve dizer-se «pode dizer-se»” está a propor uma (discutível) regra do segundo tipo.

Quando se diz que uma regra referente ao mundo natural tem exceções, isso significa, em princípio, que essa regra não é uma verdadeira regra, mas sim uma pseudorregra simplificada – porque não se conhece a verdadeira regra ou por razões didáticas, por exemplo. Quando se diz que uma regra moral (em sentido lato, incluindo as leis) tem exceções, estamos a constatar que há quem não a respeite ou a acrescentar uma adenda à regra, uma regra suplementar: “esta regra pode não se respeitar nas seguintes condições:..”

A célebre máxima “as leis existem para ser violadas” não passa, ainda assim, a ter valor de verdade quando se constatam que existem, na maior parte dos casos, adendas às regras, que se percebem como exceções ou simplesmente desrespeito pontual das mesmas regras, pelos mais variados motivos. Ser violada não é finalidade de regra nenhuma nem seu constituinte necessário, é apenas um acidente extremamente frequente – se me perdoam a disparatada cacofonia…

Parece-me claro que, para a maior parte das regras – mesmo para as leis escritas –, se pressupõe, ou deveria pressupor-se, que deve ser o bom senso a imperar na sua aplicação. Eu, por exemplo, tenho para mim que a regra de não atravessar a rua quanto o sinal está vermelho só se deve de facto respeitar quando se verifica pelo menos uma de três condições: i) haver crianças por perto ou outras pessoas que ainda estão a aprender a interiorizar a regra, porque senão aprendem o que não devem; ii) haver veículos a circular na faixa de rodagem, porque senão pode ser-se atropelado ou causar acidente; e iii) haver por perto algum agente da autoridade, porque senão pode ser-se multado ou punido de outra forma. De resto, não há razão para não atravessar.

Como dizia uma amiga minha, se é importante, ao educar uma criança, ser firme na imposição de regras (para a criança interiorizar o conceito de regra e, em certos casos, para aprender as regras em questão; e ainda, numa perspetiva mais imediata, para facilitar a vida aos educadores e à própria criança), também é importante abrir uma por outra vez exceções às regras impostas, para a criança aprender que uma regra não deixa de o ser quando é esporadicamente desrespeitada.

02/09/14

A angústia do guarda-redes na altura do penálti

[O título é mais conhecido que a obra, creio eu – ou as obras, seja, porque há o livro de Peter Handke e o filme que Wim Wenders fez baseado no livro. Eu, pelo menos, conheço o título sem nunca ter lido o livro nem visto o filme, infelizmente. Assim sendo, não sei como se deve interpretar o título no contexto da obra e quero deixar claro que o que se segue não diz, de modo algum, respeito às obras de Handke e Wenders, mas apenas... à angústia do guarda-redes na altura do penálti.]

O meu filho disse-me hoje que não tinha querido marcar um penálti. Tiveram que desempatar um jogo a penáltis e, em princípio, cabia-lhe a ele marcar um, mas ele não quis:
Estava sem confiança e nunca se deve marcar um penálti quando se sente falta de confiança. 
Segundo o Alexander, além de não se poder hesitar, também não se pode nunca virar as costas ao guarda-redes.
É preciso olhar sempre para o guarda-redes, de preferência nos olhos, se se puder. E tem de se manter sempre a decisão inicial – se a primeira coisa que pensámos foi chutar rasteiro para a direita, tem de se chutar rasteiro para a direita. Senão, falha-se, não há nada a fazer, falha-se mesmo!
Numa coisa estamos de acordo, ele que percebe tanto de penáltis e eu que não percebo nada:
É extremamente difícil defender um penálti bem marcado e, quanto mais não seja porque se marcam mais penáltis do que se falham, espera-se mais o golo que a defesa. Quem marca o penálti sente-se com muito mais obrigação de marcar que o guarda-redes de defender. É natural que o guarda-redes sinta alguma angústia na altura do penálti, mas é muito maior a angústia de quem o marca.

Latas de coisa nenhuma e outras novidades

Enfim uma boa notícia: água em pó! As embalagens, com cerca de 1.000 gramas, têm apenas a seguinte instrução de utilização: “basta juntar água”. 
É uma piada que por aí circula, com várias redações. Mandou-ma um amigo, com a seguinte introdução: “Olha a tanga deste…”

Este amigo fez comigo um programa de rádio nos anos oitenta. Num sketch humorístico desse programa, entrevistava ele um tal Professor Agadois do Ó (eu), que tinha inventado a água liofilizada. O sketch foi improvisado, como muitas vezes eram os nossos sketchs no programa. Eu tinha alinhavado a história da água liofilizada, expliquei-lhe qual era a ideia e improvisámos.

“Ora bem”, explicava eu, “a liofilização é um processo que permite tirar a água a qualquer substância para assim a conservar, podendo depois reconstituir-se essa mesma substância acrescentando-lhe a água que lhe foi retirada. Agora, bem vê, se tirarmos a água à água, não fica grande coisa… A bem dizer, não fica nada… De maneira que é muito leve, muito fácil de transportar, por exemplo, nos sítios onde não há água, como os desertos. Depois, em a gente tendo sede, é só juntar água e pronto, temos outra vez água!”

O que o meu amigo queria dizer quando me escreveu “Olha a tanga deste…” era, pois, que o outro chegava tarde – aquela história era uma criação nossa, há quase 30 anos. Mas parece-me improvável. Não que eu tenha ido buscar a ideia a algum lado, que não fui – inventei-a eu; mas é provável que alguém tivesse já tido a mesma ideia antes de de mim, de óbvia que é a brincadeira.


Neste momento, a ideia até já está registada. Descobri o ano passado que, a 18 de junho de 2010, foi registada nos EUA a patente de “latas vazias” de “água desidratada” como “artigo humorístico” (aceito proposta de melhor tradução para novelty item). “Verta o conteúdo da lata num galão de água, mexa até estar dissolvido, ponha no frigorífico e sirva”, diz a lata.

Na realidade, a ideia de vender latas vazias também não é original. Conheço há muito tempo as latas de ar de Paris das lojas de souvenirs de Beaubourg e descobri agora que também se vende ar do mar-alto bretão. Não sei quando começaram a produzir-se as latas de ar de Paris, mas também não são uma ideia original: numa viagem que fez aos Estado Unidos em 1919, Marcel Duchamp ofereceu ao seu amigo Walter Arensberg uma ampola de ar de Paris, que é considerada um dos seus readymades e está hoje exposta no Museu de Arte de Filadélfia.

Também não é forçoso que quem inventou as latas de ar de Paris conhecesse a ampola de Duchamp – pode ter tido a mesma ideia, como o senhor Bernard teve a ideia da água desidratada mesmo sem ter ouvido a entrevista com o Professor Agadois do Ó no nosso programa radiofónico. “O segredo da criatividade”, disse Cyril Edwin Mitchinson Joad (e de muitas maneira diferentes!), “é saber esconder as suas fontes”. Mas não é bem assim, pois não*?


P.S. 1: Um dia destes, veio-me à cabeça uma maneira de aferir a genialidade de uma criação (o grau de criatividade, se se preferir): Quanto menos vezes ela tiver ocorrido autonomamente, mais genial ela é. Dito de outra maneira: se uma criação resultar de um cruzamento de capacidades, vivências e conhecimentos tão únicos que é improvável voltarem a acontecer, estamos perante uma verdadeira originalidade, um golpe de génio, um alto grau de criatividade. Foi essa ideia que motivou este texto. Mal comecei a escrevê-lo, porém, dei-me conta de que a ideia, que, à primeira vista, parece elegante, não tem, na prática, aplicação nenhuma… Teoricamente, é possível contar as ocorrências de uma determinada criação múltipla, mas na prática isso é, em muitos casos, completamente impossível…

Além disso, há imediatas objeções à justeza da proposta. Uma é que juntar sob a designação genérica de ideia ou criação descobertas, invenções e trabalho estético é um artifício que apaga especificidades de cada um dos tipos de criação, incluindo a maior ou menor possibilidade de ocorrência múltipla independente: descobrem-se coisas que existem no mundo real, sejam elas materiais ou conceptuais, pelo que é, nesse caso, mais provável que várias pessoas venham a descobrir o mesmo. O mesmo se pode dizer de muitas invenções, que também decorrem naturalmente do contacto com o meio, como a domesticação de animais, a agricultura ou a fotografia, e são, por assim dizer, um tipo de descoberta. A criação estética é diferente e é também mais difícil definir o que é criação neste caso: cada um dos elementos da obra ou a obra no seu todo? Se é verdade que uma determinada imagem literária pode ser criada autonomamente por muitas pessoas, é impossível duas pessoas escreverem o mesmo texto.

Além disso, o conhecimento bloqueia a segunda criação: se eu sei que uma coisa foi criada, já não a posso criar. (Posso apresentá-la como minha, mas deixemos agora de lado a questão do plágio, que é outra questão.) A diferente velocidade de divulgação de várias criações impede uma comparação justa da sua originalidade.

P.S. 2: Também se tenta às vezes comparar a importância de diversas criações, sejam elas descobertas, invenções ou outras. É uma empresa sem grande sentido, convenhamos, por muito que, por vezes, dê azo a conversas interessantes. Uma coisa me parece certa, porém: a importância que possa ter uma criação não tem nenhuma relação com a sua improbabilidade. Por exemplo: a descoberta da maneira de desenhar um círculo, que é altamente provável e que, por isso, foi com certeza feita independentemente por muita gente, é, ainda assim, mais importante que a descoberta da maneira de desenhar outras formas geométricas mais complexas e mais incomuns.
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 * Já uma vez aqui tinha falado de invenções múltiplas autónomas: “Tenho muitas vezes a sensação”, escrevi eu, “de que somos sobretudo lugares onde acontecem coisas. Podemos ser um lugar onde acontece uma invenção ou uma descoberta, por exemplo – que, se não acontecer em nós, acontece noutra pessoa qualquer.”

29/08/14

Parole, parole, parole (três textos sobre palavras)

1. Fervor e outros estados da mente e do corpo

O nome grego zelos deu zelus em latim e zelus deu, por sua vez, uma lista interessante em português: zelo, cio e ciúmes (que veio, ao que parece de uma forma latina zelumen). Se cio se usa hoje só para o apetite sexual, em princípio de animais, já o adjetivo dele derivado, cioso, pode qualificar não só quem tem cio, mas também quem ciúmes e, mais comummente, quem tem zelo. Do significado de zelos em grego antigo (derivado de zein, “ferver”, segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola), dizem-me os dicionários que consultei que não diferia dos significados das palavras que dele derivam: “fervor, ardor, rivalidade, nobre paixão, ciúmes”.

Estar a ferver é estar a explodir de raiva. Fervor, porém, não significa “ira”, mas “empenho, dedicação, ardor, paixão”. Ardor refere originalmente alta temperatura, como fervor. A raiva põe-nos em brasa (em brasa é o mesmo que a ferver, pelo menos no meu dialeto), mas ardemos de paixão, curiosidade e desejo, por exemplo. De desejo, mais numas línguas que noutras: o cio é calor em francês e inglês (être en chaleur, to be in heat) e, em inglês, hot é sinónimo de sexy. No meu português, curiosamente, quente significa antes “ligeiramente embriagado”...

2. Petricor

Parece que a palavra foi cunhada originalmente em inglês (petrichor), em 1964, por I. J. Bear e R. G. Thomas, num artigo da Nature, e é formada das palavras gregas petros, “pedra”, e ichor, “o líquido que corre nas veias dos deuses na mitologia grega”, e significa “o cheiro característico que surge com a primeira chuva após um período seco”.  É um neologismo útil, porque todos nós sempre falámos desse cheiro característico, não é verdade?, mas antes de haver essa palavra tínhamos de usar várias palavras para o descrever – como fazem ainda as pessoas que não a conhecem...  É sempre muito lento o processo de dicionarização dos neologismos, mesmo quando são úteis e bem formados, como petricor, mas agora, quase 60 anos após a sua criação, há já muitos dicionários que a registam e algumas pessoas que a conhecem... Experimentem perguntar aos vossos amigos, a ver quantos sabem o que é petricor.

3. Jinguba e amendoim

Até há dias, pensava que jinguba (ou ginguba, o Porto Editora aceita ambas as grafias) era uma palavra angolana que tinha entrado no português europeu em meados da década de 1970, quando vieram para Portugal os portugueses que viviam em Angola. No conto “O tio da América”, de Fialho de Almeida (primeira edição 1881), porém, a palavra aparece sem itálico, ou seja, como termo suficientemente corrente para ser compreendido por todos (Fialho de Almeida usa itálico para palavras que considera fora do padrão, como gíria e regionalismos): “…hoje é rico como os primeiros negociantes do Pará, despacha gomas, jinguba e óleo de palma…” O Porto Editora regista o termo como angolanismo e são-tomensismo e diz que vem do quimbundo; o Aulete em linha diz que é palavra da Guiné, mas não é. Aliás, o termo guineense para amendoim é mancarra.

Na América do Sul, de onde é natural, o amendoim chama-se quase sempre maní, que parece que é um termo taino. A palavra portuguesa vem de um termo tupi-guarani (mendubi, mãdu’bi, mãdu’i, manduí, manu-ui, mandu'wi, varia um pouco consoante as fontes), mas, para ter o a inicial, deve ter-se metido pelo meio a amêndoa, por ser fruto seco também, mas já conhecido. Cheguei lá sozinho, porque a minha intuição funciona bem para estas coisas, mas vi depois que há mais quem proponha o mesmo (por exemplo, aqui e aqui).

[Atualizado a 22 de julho de 2023]

26/08/14

De objetos e objetivismo

Era eu adolescente, usava-se no meu grupo de malta a expressão objetos de curtição. Costumam dizer-se decorativos os objetos que servem apenas para enfeitar as habitações, mas, quando penso agora nisso, curtir, pelo menos como nós usávamos a palavra, implicava uma atitude menos passiva que decorar, porque decorar é o que fazem os objetos estando apenas ali e independentemente do interesse que alguém tenha neles, ao passo que, em curtir, os objetos são… objetos diretos e o verbo implicava participação ativa dos sujeitos que nós éramos. Os quartos do pessoal eram mesmo uma espécie de museus, com visitantes realmente interessados na obra exposta.

*** 
“Não há muitas casas com objetos tão bonitos como os que nós temos a decorar a nossa”, dizia eu à Karen, enquanto lavava os vidros das janelas da sala.
“Ora”, disse ela, “isso é o que toda a gente pensa dos seus objetos. As pessoas escolhem os que acham bonitos.”
“Ok”, insisti eu, “mas, independentemente dos gostos, os nossos objetos são objetivamente mais bonitos.”
Ela riu-se.

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A quem foi educado no descontraído relativismo pós-moderno (não é o caso da Karen, não me entendam mal), qualquer proposta de absoluto pode surpreender. No outro dia, numa conversa sobre música, ficou muito admirada uma amiga minha quando eu afirmei que, deem que voltas derem ao assunto, não se pode reduzir tudo a gostos, como se Bruckner e Elton John estivessem de facto ao mesmo nível.
“É curioso”, comentou ela, “já no outro dia também ouvi alguém dizer que se pode analisar objetivamente a qualidade da música.”

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Vocês, que me conhecem bem, digam-me lá: isto sou eu a brincar ou eu a falar a sério?








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A descrição dos objetos, de cima para baixo e da esquerda para a direita: cinco tacinhas romenas, que nos ofereceu a nossa amiga Claudia; um pégaso de pendurar e, ao lado, um castiçal-bode, balineses os dois, comprados em Ubud, se me não falha a memória; uma estátua de autor desconhecido comprada em Chimoio, Moçambique; uma faca da Lapónia, com o cabo em osso de rena, prenda de Natal  do Sr. Innala em Haparanda; um trabalho da escola da minha filha Joana; uma escultura do meu sogro Kaj Lindegaard, vista de dois lados; trabalho de um artesão moçambicano que não sei quem é, comprado em Maputo; uma curiosa peça de cerâmica da Guatemala, que deve ser um vaso, mas que nunca usámos como tal; um galo que seria de Barcelos, não fosse o meu amigo Pedro Malaquias lhe ter dado uma bonita volta, para mo oferecer; mais uma escultura de autor desconhecido, também de Chimoio, que como podem ver, é terra de escultores imaginativos; e uma cabeça de pedra de sabão, também de autor desconhecido, comprada há 16 anos em Mutare, no Zimbábuè – já resistiu a quatro mudanças de continente, com várias mudanças de casa entre elas.

13/08/14

Cidades de som: uma página de blogue quase só musical

Nasci numa cidade grande e cresci numa simpática aldeia que rapidamente se transformou num monstruoso subúrbio. Vivi noutras cidades grandes, em cidades mais pequenas e em vilazinhas muito pequenas, quase aldeias. Agora, vivo numa aldeia mesmo aldeia e gosto muito de aqui viver. Mas podia voltar a viver numa cidade, porque continuo a gostar de cidades. E gosto também de cidades em música.

Quando Peter Sculthorpe* compôs Small Town (1963), queria “cantar todas as cidades pequenas australianas”. A peça inspira-se em parte no romance Kangaroo (1923) de D. H. Lawrence, que se passa em Thirroul (e foi lá escrito) e tem uma parte declamada que é um excerto dessa obra:
Era uma Rua Principal maravilhosa e (...) ao abrigo do vento. Havia vários hotéis castanhos, grandes mas assustadores, com varandas a toda a volta: havia uma igreja de estuque amarelo com um campanário de lata pintado de vermelho, como um estranho brinquedo: havia telhados altos e telhados baixos, todos de chapa ondulada, e chegava-se a um largo e lá estavam um ou dois bungalows abandonados atrás de vedações de madeira, e depois o vazio. (...) O memorial aos soldados caídos pela pátria (…) dizia “Não esqueceremos”. No primeiro degrau, lia-se “Inaugurado pela Avó Rhys”. Um monumento municipal a sério, com todos os nomes possíveis: os nomes dos soldados mortos, os nomes de todos que tinham envergado um uniforme, os nomes das pessoas que tinham oferecido o monumento e o nome da Avó Rhys.


Peter Sculthorpe, Small Town, com texto de D. H. Lawrence (1963) | Tasmanian Symphony Orchestra; David Porcelijn; Bruce Lamon, trompete; Joseph Ortuso, oboé; texto declamado pelo autor

Um tema que muitas vezes vem à mente de quem ouve esta peça, a julgar pela referências que lhe são feitas em comentários e críticas, é Quiet City (1940) de Aaron Copland. É claro, a cidade tranquila de Copland não é uma cidade pequena, até porque uma city não é uma cidade pequena. Quiet City foi escrita para uma peça do mesmo nome de Irwin Shaw, que se passa de facto numa grande cidade.


Aaron Copland, Quiet City (1940) | Cincinnati Pops Orchestra; Erich Kunzel

Também não se sabe qual a cidade de “Town feeling” de Kevin Ayers. Kevin Ayers nasceu e cresceu numa cidade pequena, mas nada nos diz que é da sua cidade natal que fala nesta canção.
Hoje, a cidade parece um túmulo. Toda a gente fechada no quarto. (…) Se formos passear, somos capazes de encontrar alguém. Se for alguém conhecido, dizemos “olá” e “até logo”.


Kevin Ayers, “Town feeling”, 1969

É uma grande mudança, não é?, de Peter Sculthorpe e Aaron Copland para Kevin Ayers… Mas é assim, as músicas são como as cerejas: uma pequena cidade, uma cidade tranquila, o sentimento de uma cidade...
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* Só conheci Peter Sculthorpe no passado dia 8 de agosto, quando faleceu aos 85 anos. Small Town não é com certeza uma das suas melhores peças, nem mais representativas da sua obra, mas não é exatamente da música de Sculthorpe que aqui se trata.

10/08/14

O paraíso na mata amazónica, mais uma vez

Dito de uma maneira muito simplificada, surgem na Europa após o Renascimento dois ideais políticos radicais que balizam toda a discussão do desenvolvimento: o ideal utópico e o ideal primitivista[1]. Se são, em grande parte, diametralmente opostos, estes ideais assentam, porém, numa visão coincidente dos outros povos com que os europeus acabavam de entrar em contacto, sobretudo os povos americanos: incompreendidos pelos europeus[2], os outros são sempre vistos negativamente – são povos que não têm alguma coisa.

Ora é precisamente em termos negativos que sempre foi definida a Idade de Ouro ou a primordial barbárie humana. Conforme se valoriza ou não as ausências “constatadas”, os outros são idealizados ou demonizados: ou são felizes porque não têm leis, roupa e propriedade ou são brutos selvagens porque não têm leis, roupa e propriedade. Quando se pensa que são as leis, o dinheiro, as hierarquias, a arquitetura, etc., que corrompem a natural felicidade e bondade humana, temos o ideal que designei como primitivista. E é curioso como, em muito do etno-romantismo[3] que por aí anda, se mantém essa definição negativa do Outro.

Esta imagem foi partilhada por amigos meus no Facebook. A foto de homens iáguas do Peru é de Chany Cristal, embora, como é costume, não seja referida a autoria[4]. Explica Chany que, “se lhes pediam, faziam com todo o gosto espetáculos para os turistas, nestes trajes tradicionais – como forma de fazer algum dinheiro e divulgar o seu antigo modo de vida. Aqui, estão a ensinar a usar uma zarabatana.”

Não sei se pensam que a zarabatana sempre se utilizou apenas para matar animais, mas não é bem assim. A ideia de que não há crimes entre os iáguas deve radicar na ideia de que não têm leis ou então na ideia que todos as cumprem – duas ideias estranhas...

É evidente que as sociedades tribais da Amazónia têm algumas coisas que a imagem diz não terem. Nem todas, é certo, mas a terra onde eu vivo também não as tem todas. Não digo que não possamos ter perdido, nas sociedades desenvolvidas, algo que a “idade de ouro” pré-desenvolvimento mantém nas sociedades mais atrasadas. É bem possível que haja sempre algo a perder com o desenvolvimento, mas o que o ideal primitivista se esquece muitas vezes de fazer é equacionar ponderadamente o que se tem a perder e a ganhar com esse mesmo desenvolvimento.

Para não entrar em discussões estéreis, vejamos o que as pessoas querem. E o que as pessoas querem em todo o mundo é a vida menos trabalhosa e mais segura, para elas e para os seus filhos. Agora, claro, só pode escolher de facto quem conhece, não é verdade? É isso que torna difícil a discussão. Poucas são as pessoas que conhecem os dois mundos em oposição, para os comparar. Tenho a impressão que são bem mais os que, depois de viverem em sociedades pré-modernas, voltam à sua modernidade original que os que, depois de experimentarem as terríveis sociedades modernas, decidem voltar ao seu primitivo paraíso. Mas é só uma impressão, não tenho maneira nenhuma de o provar...

Seja o for que os povos da Amazónia tenham de bom que nós já não temos, o certo é têm também muitas coisas más que já não temos e ainda bem que já não as temos e é uma pena eles terem-nas ainda. Cada um leva até onde quer a idealização das sociedades tribais de que a imagem que motivou este texto pretende ser exemplo, mas há que ter cuidado para não ir demasiado longe nessa idealização e não propor como ideal uma vida que, entre as muitas coisas boas que há de ter, é infelizmente muito mais breve que a nossa e se caracteriza também por muito mais escassez, doença, perigo e violência. É que, senão, parece que se está a fazer pouco da miséria, como dizia a minha avó.

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 Nota final: Quero salientar que, nos comentários ao post no Facebook, há, naturalmente, quem se insurja contra este tipo de afirmações. Por exemplo, um comentador lista algumas das coisas que as comunidades tribais amazónicas têm e ele não queria ter (e que correspondem, em grande medida, ao que eu refiro no texto como “muitas coisas más que já não temos e ainda bem que já não as temos e é uma pena eles terem-nas ainda”): vermes, parasitas e fungos de todos o tipo, alta suscetibilidade a todo o tipo de doenças invalidantes e fatais, graves problemas dentais, péssimos hábitos higiénicos, uma esperança de vida de 35-40 anos, um dia de trabalho de 12 a 14 horas, um sistema patriarcal brutal em que as mulheres são consideradas propriedade, uma mortalidade infantil elevadíssima e tendência a matar ou abandonar as crianças que nascem com deficiência congénitas. A lista podia é claro, ser maior e mais bem organizada, mas não é essa intenção deste texto. Outro comentário, realçando também a elevadíssima mortalidade de crianças e de todos os mais fracos, desafia quem concorde com esta visão idílica da vida das comunidades tribais amazónicas a passar dez anos entre elas. Lê-se ainda, num comentário, que “esta imagem … é insultuosa para a maior parte das tribos que ainda existem, porque menospreza os seus problemas”.
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[1] Para não me afastar do assunto central do texto, deixo aqui por explicar o quero dizer com ideal utópico, remetendo antes o leitor para os textos anteriores sobre esse tema.
[2] Não há razão para os europeus se autoflagelarem por isso, como às vezes fazem. É apenas o resultado forçoso das circunstâncias históricas, já que não havia, nesta altura, nenhuma possibilidade de compreender a alteridade como a compreendemos hoje e esta incompreensão estava longe de ser apenas dos povos da Europa.
[3] Pequena nota ortográfica: Surgiu-me agora a dúvida de que seja esta a grafia correta, mas, enquanto não reflito mais sobre a questão, continuo a usá-la.
[4] De certa maneira, este post é uma continuação do post anterior, sobre a leviandade do click&share nas redes sociais. Mas é mais que isso: é a continuação de uma reflexão antiga sobre primitivismo/etno-romantismo e as relações com a alteridade em geral.