11/02/14

Laticínios e mais laticínios e elogio moderado de (alguns) estrangeirismos [Crónicas de Svendborg #18]

aqui falei da dificuldade de traduzir para uma língua termos que designam realidades desconhecidas dos falantes dessa língua. A solução costuma ser adotar simplesmente o termo da língua de origem, adaptando-o apenas à estrutura fonética da língua alvo. É um dos mecanismos mais produtivos na criação de neologismos, estou em crer. Se nunca se viu batatas, importa-se com a planta um nome taino; se nunca se viu anoraques, passa a designar-se a peça de vestuário com o seu nome gronelandês; se nunca se viu uma chita, passa a designar-se o animal com o seu nome hindi; se nunca se viu iogurte, importa-se com o produto o seu nome turco, e por aí fora.

Sempre se falou de coisas ainda sem nome na língua em que se fala, mas hoje fala-se mais ainda, porque há muito mais comunicação entre os lugares quase todos do mundo. Os conceitos novos nas áreas técnicas chegam-nos fresquinhos (como sempre chegaram) ainda na língua em que foram criados, sem serem filtrados por propostas de tradução dos especialistas dessas áreas que têm a mesma língua que nós. Em jornais e revistas, são-nos apresentados em línguas exóticas (como sempre foram!) nomes de bichos, plantas e artefactos culturais. E há (como sempre houve) algumas destas palavras estrangeiras que passam a ser usadas com maior ou menor regularidade.

Muitas vezes, há resistência a estas importações, e é natural, porque as pessoas estão fartas do uso desnecessário de palavras estrangeiras. É que também há muito quem use barbarismos que ouviu sem ter o cuidado de verificar como determinada noção, às vezes mais que traduzida, se diz na sua língua. E, como não é fácil decidir quando é ou não preciso recorrer ao empréstimo, acontece então que se vá longe demais nesta recusa do estrangeirismos. Dou a palavra a Cláudio Moreno:
Faço questão de frisar (…) que muitas vezes a caça aos vocábulos estrangeiros é motivada por falta de informação (ou cultura) do caçador, que pensa, erroneamente, ter encontrado um sinônimo idêntico no Português. Não faz muito um jornalista vociferava, no rádio: “Parem com essa mania de usar nome importado para fingir que a coisa é fina! Mas quando se ouviu falar em iogurte? Parem com isso! Iogurte é a nossa velha coalhada!” – e dê-lhe ponto de exclamação! Confesso que fiquei impressionado com a veemência de seu discurso; no entanto, como sempre desconfio daquilo que vem gritado, seja na fala ou na escrita, fui consultar um queijeiro amigo, que me aconselhou a não levar a sério o jornalista, já que os dois – o iogurte e a coalhada – são tão parecidos quanto um porco e uma ovelha...
Também é verdade que as pessoas, lexicólogos e gramáticos incluídos, não têm de ser gastrónomos, nem zoólogos nem botânicos. Podem é ter cuidado. E abrir mão do nacionalismo linguístico, chamemos-lhe assim, quando for caso disso. Notem que a minha intenção aqui é mais lançar a confusão – e mostrar que a realidade é suficientemente complexa para justificar importações, às vezes realmente necessárias. Dou exemplos com nomes de laticínios, porque a outra intenção deste texto é apresentar alguns laticínios destas terras ou que por aqui se encontram e é por isso que faz parte das Crónicas de Svendborg.

Adotámos e adaptámos portanto o yoğurt turco em toda a Europa, já há muito tempo, e fizemos bem, mas isso não resolve todos os problemas. Acho que a questão não se porá muito em Portugal, mas pode ser preciso traduzir para outra língua palavras como ymer, por exemplo, filmjölk ou skyr[1] ou muitos outros produtos do mesmo tipo… Muitos pensarão: “Tanto preciosismo para quê? Se é parecido com iogurte, chama-se-lhe iogurte – ou outro nome próximo que se use na língua para que se traduz.” Pode ser. Até ao momento em que alguém tenha de explicar a diferença entre os dois produtos, ou dizer, simplesmente “Que chatice, não há iogurte no frigorífico, só há ymer e eu só gosto de iogurte, detesto ymer”. (Pode ser uma personagem de uma narrativa de ficção, mas também pode ser o meu filho, que adora iogurte e detesta ymer… Já a minha filha mais nova prefere tykmælk[2] e não é grande fã de iogurte.) Uma boa descrição destas dificuldades é a do primeiro parágrafo da entrada “Quark” da Wikipedia em inglês (traduzo eu, deixando por traduzir alguns nomes de laticínios, quando acho que devo):
Quark é um tipo de laticínio fresco. É feito aquecendo leite fermentado até se atingir o grau pretendido de coagulação (desnaturação) de proteínas lácteas e depois é coado. Os dicionários [ingleses] traduzem normalmente o termo como curd cheese ou cottage cheese, embora a maior parte das variedades comerciais de cottage cheese sejam feitas com rennet, ao passo que o quark tradicional não é. É mole, branco e fresco, semelhante a alguns tipos de queijo fresco[3]. É diferente do ricotta porque o ricotta (em italiano: "recozido") é feito de soro de leite aquecido. É semelhante ao chakka indiano.
Usa-se muitas vezes natas azedas para traduzir sour cream. Mas sour cream é um laticínio específico e que quem lê natas azedas pode pensar que é de nata azeda, nata que azedou, que se trata e não é. É nata cuja fermentação foi controlada, com bactérias específicas. Bom, eu conheço uma receita mesmo com natas que azedaram, uma espécie de soupe de chalet[4] que aprendi a fazer na Suíça, mas não é a isso que se referem as receitas que se encontram normalmente. Há vários tipos de sour cream, mais ou menos gordas e mais ou menos azedas, mas, no geral, nem sequer são azedas por aí além, pois não? Na Dinamarca (como noutros países), chama-se à sour creamcrème fraîche! E não deixa de ser curioso: se se traduzir do francês usando a mesma lógica que se usa para traduzir do inglês, temos nata fresca em vez de nata azeda – duas expressões que parecem ter significados bastante diferentes... Mas atenção: a sour cream inglesa é diferente da americana; e, em francês, crème frâiche pode designar dois produtos diferentes – é claro que é a crème fraîche espessa que é sour cream e não a líquida, a fleurette.

É então necessário usar estas palavras estrangeiras? Depende do (con)texto. Em (con)textos em que não é o rigor da descrição do produto que importa, pode adaptar-se tudo ou quase tudo e, às vezes, a tradução só ganha com isso. Pode dizer-se, por exemplo, em português, que “John disse que não queria natas no bolo de maçã, que as natas lhe caíam mal”. Só natas chega, não vale a pena dizer que eram azedas. Até chantili se pode dizer neste contexto, juntando às natas, na tradução, açúcar que não tinham no original. Mas quando se quiser mesmo falar de comida, do sabor, do produto, usem-se os estrangeirismos, explicados se se julgar necessário, só para não enganar ninguém.
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Bónus: Completamente grátis e um bocadinho a despropósito, deixo-vos aqui um link para um quadro muito informativo sobre a percentagem de lactose em diversos laticínios (façam favor) e um mapa da distribuição da intolerância à lactose no mundo (tirado daqui). Os dados variam um pouco conforme as fontes, mas nunca andam muito longe disto.







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[1] Comi ontem skyr pela primeira vez; é muito mais parecido com iogurte que ymer, mas é mais azedo e a consistência também é diferente, muito mais cremosa.
[2] A entrada da Wikipedia em inglês para que o link remete diz que este laticínio é semelhante ao leitelho, o produto lácteo que sobra do fabrico de manteiga, mas a verdade é que, em sabor e, sobretudo, em consistência, os dois produtos são diferentes – leitelho bebe-se, tykmælk não. Não sei porque não há leitelho comercializado em Portugal, uma bebida tão boa.
[3] Traduzi fromage blanc por queijo fresco, para simplificar, mas quem conhece queijo fresco e fromage blanc sabe que não são o mesmo produto…
[4] Deixo soupe de chalet em francês, com as minhas desculpas, porque é uma sopa específica, não apenas uma sopa feita num chalé – quanto mais não seja porque os chalets em questão são cabanas de pastores)

08/02/14

In memoriam

Não sei quem disse, mas ouvi algures: a morte é um lugar estranho. Não é nada. Bem que a gente se quer disso convencer, fazer dela sítio que, credo!, nunca pisamos, ou só pisamos em tempos que nunca nos hão de chegar, arrepio que só aos outros diz respeito. Mas a verdade, infelizmente tão fácil de comprovar, é que é ela o lugar dos nossos passos todos, quando percorremos contentamentos e morrinhas, rotinas públicas ou celebrações da nossa intimidade. A morte não é nenhum lugar estranho. É este lugar, pensem bem, onde nascemos e vamos vivendo, que conhecemos como a palma da mão. Bem vistas as coisas, o único lugar que conhecemos, não é? Que a morte se disfarce de lugar estranho é truque de cenografia. Não nos deixemos enganar por paisagens de papelão.
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A morte de cada um dos outros é uma das formas que toma a nossa morte, essa que nunca nos larga e que, como dizia António Joaquim Lança, que nela não cria, só morre quando um dia a vida morre. E quanto mais os outros fazem parte de nós, mais nossa é a morte deles, como todos sabem.

Morreu anteontem o meu amigo Tozé. Vocês não o conhecem e este texto é mais para mim que para vocês, nisso terão de me desculpar. Não poder ir ao funeral dos que lhes são queridos é um peso para quem tem as pessoas de quem gosta espalhadas por sítios distantes. É um peso não poder afrontar de perto a materialidade da morte, deixar os nossos mortos por enterrar, saber só de longe – sem o ter sentido, na mais primordial aceção da palavra – que o coração lhes parou. Deixá-los assim, vagos, a pairar em nós.

Já aqui falei do Tozé, quando falei da Floresta de Oma
(… Foi viver lá para casa um amigo meu com quem eu acabava de retomar um contacto perdido durante muitos anos, e passávamos muitos serões à conversa. Era um prazer ouvi-lo: contava histórias interessantes das muitas viagens que tinha feito e tinha muitas vezes propostas de novas viagens, umas mais exequíveis do que as outras… Foi ele quem me propôs fazermos uma viagem ao País Basco, perto de Guernica, para irmos ver uma floresta mágica. A viagem mais simples e mais barata das muitas que propôs: “É um floresta pintada. Quer dizer, a floresta é a própria pintura. Há quem pinte em papel, há quem pinte em tela, há quem pinte murais e este tipo, olha…, pinta florestas! Não é pintar uma árvore aqui e outra ali, não é isso – a pintura é a floresta toda!” Não sei se me disse o nome do pintor, mas, se mo disse, nunca o fixei. A ideia era boa e combinámos mais de uma vez datas concretas para a viagem, mas, já não sei por quê, acabámos por nunca ir.)
…e falei dele no post anterior.
(Um dia, um amigo, certamente tão progressista e tão livre-pensador como eu acreditava ser, mostrou-me um lado óbvio da questão que eu, não sei porquê, nunca tinha querido ou nunca tinha podido ver: nenhuma morte diz respeito apenas a quem morre. Quem se suicida age sobre os outros que cá ficam. Ao meu amigo, interessava sobretudo a forma como o suicida age sobre os que lhe são próximos. Que direito tem alguém de tirar um familiar aos seus familiares, um amigo aos seus amigos? “Claro, se uma pessoa não tiver ninguém que a ame ou que precise dela, é diferente”, dizia-me o meu amigo. E eu comecei a rever a minha posição sobre o suicídio.)
E gostava agora de saber fazer um obituário regular, mas mais bonito que os obituários regulares, a contar o Tozé, vida e alma, mas sinto-me tão incapaz nessa tarefa…

Entre muitas outras coisas, o Tozé deixou-me Gary Snyder, João da Cruz e Van Morrison e homenageio com eles o meu amigo que vocês não conhecem:
ele sabia o que tem de se saber para ser poeta
(… os seis sentidos que temos, com a mente atenta e elegante … sonhos. os ilusórios demónios e os ilusórios deuses resplandecentes … e depois amar o humano: mulheres maridos e amigos … exaustão, fome, repouso. fome, repouso. … a iluminação solitária e silenciosa … o verdadeiro perigo. apostas. e o limiar da morte);
sabia mais que saber apenas
(Estaba tão embebido, / tão absorto e alheado, / que ficou o meu sentido / de todo sentir privado / e o espírito dotado / de entender não entendendo, / toda a ciência transcendendo);
e sabia bem que no amor se renasce.



E foi espalhando à sua volta isso que sabia. Ensinou-me que a vida é essencialmente sofrimento e que é dessa constatação que devemos partir para a tentar melhorar. E dói-me muito que tenha morrido.