08/12/14

Mais um textozinho sobre felicidade

Há muitas maneiras de olhar para a questão da procura da felicidade. Há quem postule que esta busca é o fim último da nossa existência ou até que é única coisa que fazemos na vida. Daniel Gilbert, por exemplo (traduzo eu):
As pessoas muitas vezes reagem mal à ideia de que o comportamento humano não passa de uma tentativa de alcançar a felicidade. (...) Antes de mais (dizem elas), as pessoas preocupam-se com muitas outras coisas além da felicidade – por exemplo, a verdade, a justiça … – e, portanto, a vida não se resume à felicidade. Ora, antes de mais, as pessoas valorizam claramente muitas coisas – desde o básico até ao sublime, desde chocolate belga à fidelidade conjugal –, mas eu acredito que valorizam essas coisas exclusivamente por causa das suas consequências hedónicas. Platão foi muito claro sobre isso quando nos pediu que pensássemos sobre o que é que faz com que algo seja bom. “Será que estas coisas são boas por qualquer outra razão além de produzirem prazer, e nos livrarem da dor e a evitarem? Tendes em conta qualquer outro padrão que não seja o prazer e a dor quando dizeis que são boas?” Neste ponto, estou de acordo com o homem da toga. Na minha mente, “experiência hedónica positiva” é o que significa valorizar. Não podemos dizer o que é bom sem dizer para que é bom e, se se analisarem as muitas coisas que as pessoas acham que são boas, notar-se-á que todas elas são boas para fazer as pessoas felizes.
Pois… Se se considerar que a felicidade é a própria medida do valor positivo de uma coisa (X é bom [para Y] = X causa felicidade [em Y]), invalida-se a proposição de que há coisas melhores que a felicidade. Mas importante e bom não são sinónimos, por um lado; e, por outro lado, como a felicidade não pode ser senão a soma de bons momentos, é preciso não esquecer o investimento – consciente ou não, e não forçosamente prazenteiro – que se faz entre momentos de felicidade, para os atingir. Além disso, mesmo que aceitemos que, em última análise, não pode ser desejável senão o que dá prazer, deparamo-nos constantemente com situações em que estão em conflito dois ou mais prazeres e é difícil argumentar que optamos forçosamente pelo que produza mais consequências hedónicas, para usar a expressão de Gilbert: quando escolho, no supermercado, um produto lácteo de que gosto menos que de outro, porque acho que devo apoiar a produção ecológica local, é preciso alargar muito o significado de hedonismo para fazer radicar esta escolha na procura de uma experiência hedónica positiva.

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Escrevi aqui uma vez um texto chamado “Felicidade era a empregada do bar”:
Fui dar com um texto de juventude em que (…) escrevia [que], para levar a cabo aquilo que é a missão fundamental de qualquer pessoa (transformar-se, perpetuar-se, reproduzir-se, morrer…), não há necessidade de felicidade nem da sua ausência – tanto faz... (…) E, embora com outra perspectiva, continuo a chegar à mesma conclusão prática, a de que a felicidade é algo com que não faz sentido preocupar-se. Além de exercício de vanidade, digo eu agora, a busca da felicidade é provavelmente um exercício vão: Uma pessoa pode achar que cada um deve tratar antes de mais de si próprio e querer ser feliz, sem mais. E pode achar que mais importante do que a sua felicidade é a felicidade alheia e atribuir, apesar disso, valor estratégico à sua própria felicidade na criação de mais felicidade. De facto, há muito quem pense que (ideia mais difundida do que bem defendida…) para fazer bem aos outros, uma pessoa tem de se sentir bem ela própria. OK., tudo isso é possível e não sou eu que me vou agora opor – que se queira ser feliz, está para mim muito bem… Mas alguém já conseguiu alguma vez demonstrar que é mais feliz uma pessoa que procure a felicidade? 
A pergunta final era retórica, mas é, de facto, passível de resposta. Quando escrevi este texto não conhecia ainda o trabalho de June Gruber. Ora com base no seu próprio trabalho de investigação e noutros trabalhos na mesma área, a resposta de Gruber à minha pergunta é que não (traduzo eu):
…Passamos muito tempo a tentar encontrar maneiras de ter sensações positivas. As pessoas chamam a isso sentir-se feliz … e penso que a ciência recente indica que estamos a abordar a coisa da maneira errada.
E, de facto, a pesquisa constata que quanto mais as pessoas (1) empenham tempo e esforços tentando sentir-se mais positivas, e que quanto mais (2) definem como objetivo sentir-se mais positivas, na realidade, de forma algo paradoxal, estão a fazer-se sentir menos esse estado.
E há uma explicação para isso:
De muitas formas, … quanto mais parecemos dar valor à emoção positiva, seja ela excitação ou orgulho ou amor ou satisfação, quanto mais definimos isso como nosso sistema de valores emocionais, sem querer, provavelmente pomos também mais alta a fasquia a atingir e estamos assim a criar a nossa própria desilusão.
Há pesquisa recente que transpôs isto para a área clínica, constatando que as pessoas que valorizam a experiência de emoções positivas e que investem energia comportamental em consegui-las correm grande risco de depressão e verifica-se nelas posteriormente … uma maior incidência de diagnósticos clínicos de perturbação depressiva. …
Isto indica que a quantidade da nossa emoção positiva é realmente afetada pelo esforço que pomos em a obter. … Sabemos que quanto mais tentamos não pensar em ursos brancos, mais pensamos em ursos brancos e, em muitos casos, quanto mais tentamos não ser infelizes, mais infelizes parecemos ser. Então, isto sugere que, em muitos aspetos, o feitiço se vira paradoxalmente contra o feiticeiro, e … que, se queremos estabelecer metas afetivas ou psíquicas para nós mesmos, então não devemos fazer disso o enfoque final em si mesmo, mas talvez centrar-nos antes noutras coisas de que possam surgir essas emoções. …
Uma emoção é para nós um sinal; é uma fonte de informação, e essa informação vai guiar-nos na decisão de nos aproximarmos de determinada pessoa ou de a evitar. Mas não é a emoção em si que é o objetivo. A emoção dá informações para iniciar comportamentos que nos farão chegar ao objetivo. Eu diria que muitos teóricos da emoção não pensam na emoção como o objetivo em si.
Assim sendo, se se perguntar às pessoas quais as suas intuições quotidianas sobre emoções e lhes perguntar quais os seus objetivos na vida, bem, é serem felizes. “O meu objetivo é ser feliz”. Querem habitualmente minimizar a intensidade da emoção negativa, em geral, e maximizar a intensidade da emoção positiva. Eu acho que o que precisamos de fazer é usar esta informação e aproveitá-la de uma maneira pedagógica, dizendo: “Bem, as emoções são, sem dúvida, facetas importantes das nossas vidas, dão-nos informações, dão-nos sinais de certas coisas, mas não são o objetivo em si”.
Mas Gruber diz mais coisas interessantes sobre a felicidade e a sua procura. Uma questão interessante é da funcionalidade das emoções positivas – ou da felicidade, se se preferir. É certo que as emoções positivas aumentam a nossa capacidade de resolver problemas, de pensar de forma criativa. Mas isto é verdade só até certo ponto. Além de um certo nível, é o contrário que se verifica: excitação, entusiasmo, alegria tornam-nos rígidos e menos criativos; e levam-nos a correr mais riscos, ignorando informação do mundo circundante.

E há também que ter conta a contextualização: parecerá óbvio a muita gente que há contextos em que as emoções positivas estão deslocadas e não têm qualquer função a desempenhar. A ideia de que é sempre bom sentir-se feliz é, por conseguinte, sem cabimento e são outras emoções que, por vezes, se devem cultivar. De facto, as emoções positivas criam dificuldades num contexto inapropriado – e podem ser indicadores de mania ou de falta de relação com os outros.

O mais importante, não só para ter uma boa saúde mental mas também física, é manter um equilíbrio. Por contraintuitivo que possa ser (a verdade, já se sabe, é-o quase sempre), maior grau ou maior frequência de emoções positivas não resultam em maior bem-estar – nem mental nem físico (nestes estudos são usados também extensos relatório clínicos não psicológicos). Funcionamos melhor quando se equilibram emoções positivas e emoções negativas:
É uma questão muito antiga, a do que significa felicidade, mas creio que o problema agora é que a palavra é usada ... para dizer todo o tipo de coisas. … Ás vezes, trata-se de um maior sentido de bem-estar subjetivo, às vezes de prazer sensorial na altura, mas as pessoas só sabem que é qualquer coisa que devem ter. Então, vemos disparar o número de receitas e poder-se-ia esperar que se tratasse de um rastreio e diagnóstico mais rigorosos de depressão nos nossos tempo, mas há que se interrogar se será outra coisa e se estamos a seguir este impulso de minimizar o negativo e maximizar o positivo.

Preocupa-me esta idade da felicidade, porque o que ela também faz … é afastar-nos de simplesmente ter também experiências negativas, que são fontes de informação incrivelmente ricas para nós e componentes importantes daquilo que nos dá vidas ricas e com sentido. …
É bom ter alguma alegria, mas também se deve ter tristeza; também se deve ter sentimentos de culpa e a experiência de perda. Todas essas coisas são importantíssimas para criar uma robustez emocional para saber como viver essas emoções, como lidar com elas e também para receber informação do mundo à nossa volta.
“Nada em excesso”, dizia a célebre inscrição do templo de Apolo em Delfos – nem as emoções positivas que muitas vezes se designam como felicidade. É claro, se se fizer simplesmente corresponder felicidade a bom, haverá com certeza quem argumente que não se pode falar de excesso de felicidade. A vantagem de se pensar em felicidade como emoções positivas é ficarmos com uma ideia mais clara do que se está a falar: excesso de alegria, de prazer, de satisfação e orgulho resulta simplesmente em insuficiência de, por exemplo, tristeza, dor, frustração e remorso. Coisas importantes na vida.

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Para variar agora um pouco a perspetiva de análise, mas continuando ainda na crítica ao incitamento à procura da felicidade, traduzo uma das várias formulações que Leo C. Rosten tem de uma reflexão interessante sobre a questão:
Não posso acreditar que a finalidade da vida seja ser “feliz”. Penso que a finalidade da vida é ser útil, ser responsável, ser digno, ser compassivo. É sobretudo servir para alguma coisa: ter alguma importância, defender alguma coisa, fazer alguma diferença que se tenha vivido*.
Escrevi quase a mesma coisa, de uma maneira muito mais concisa e muito menos elegante:
Em vez de dar tanta importância, como se costuma dar, ao que se leva desta vida, porque não importar-se antes com o que nela se deixa?

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* Words of Wisdom: More Good Advice, p.309, Nova Iorque: Simon & Schuster, 1989.