19/04/16

Geração e mestrado


Nos comentários a um texto meu de há 8 anos, discute-se a pronúncia de geração e mestrado. Em vez de responder a esses comentários com mais um comentário, prefiro fazê-lo aqui num texto novo, porque trato, nesta resposta, questões que talvez interessem a mais pessoas.

O texto que suscitou os comentários de que aqui trato é sobre o sotaque de Lisboa e um comentador que assina Tuggaboy defende que «[e]m Lisboa […] se dizem mal palavras como mestrado (que dizem "mèstrado") [e] geração (que dizem "gèração"»[1]. Outro comentador, Marco Neves, reponde-lhe que «não se pode dizer que sejam formas erradas de falar», já que «[g]eração e mestrado podem ser ditos assim» e acrescenta que «[há] outras palavras com sílabas átonas de vogal aberta, como padeiro, actor, etc.» Tuggaboy, num comentário posterior, aceita o «a aberto» na pronúncia de padeiro, mas, segundo ele, «mais gente diz padaria com o a átono, se bem que o a aberto está a ganhar em número.» Quanto a actor, diz Tuggaboy, «tem o c que abre a vogal, regra básica do português.» E insiste que «mestrado e geração com o e aberto é sotaque de Lisboa, não é a forma correcta.» Diz que falou com professores, investigou e pode afirmá-lo com 100% de certezas. «Geração vem de gerar, não de gèrar», defende. E termina afirmando que «O sotaque padrão de Portugal é o de Coimbra», onde «quem ainda não foi apanhado no sotaque de Lisboa […] não põe acentos inexistentes».

Há muito que comentar e talvez o melhor seja começar pelo princípio, fazendo um pequeno resumo da história da pronúncia das vogais átonas e da história destas duas palavras. Parece-me prático, neste texto, recorrer aos símbolos fonéticos para o «e fechado» (de se) e o «é aberto» (de ), para os quais usarei respetivamente /ə/ e /ɛ/, mas, para não complicar a vida de quem não está habituado a estes símbolos, escreverei o resto das palavras com grafia normal, não com símbolos fonéticos. O que se segue é, naturalmente, simplificado para dar uma ideia de fenómenos gerais, porque às vezes as coisas são um bocadinho mais complexas.

Ao contrário do que parece depreender-se do que Tuggaboy afirma, as pronúncias com «e aberto», /gɛração/ e /mɛstrado/ são pronúncias conservadoras e não uma inovação introduzida pelos lisboetas nem por ninguém. Inovação são, isso sim, as pronúncias /gəração/ e /məstrado/, mas uma inovação perfeitamente compreensível, porque motivada pela grande tendência para a regularização das regras, que age constantemente em todas as línguas.

Em português antigo, as vogais pronunciavam-se como se pronunciam hoje em espanhol: a, e e o eram /à/, /ê/ e /ô/ quando não estavam na sílaba tónica. Depois, foi-se relaxando a pronúncia destas vogais átonas. Para simplificar, podemos dizer, como muitas vezes se diz, que começaram a «fechar-se». Mas não todas ao mesmo tempo. Este «fechamento» deu-se em dois momentos distintos: num primeiro momento, fecharam-se as vogais átonas que estavam depois da sílaba tónica (postónicas): o /ô/ final passou a /u/, o /à/ final passou a /â/e o /ê/ final passou a /i/. As vogais átonas antes da sílaba tónica (pretónicas) continuaram a pronunciar-se /à/, /ê/ e /ô/[2]. Em seguida, começaram a fechar-se também as vogais átonas pretónicas e os ee átonos que se pronunciavam /i/ foram-se fechando mais até ficarem /ə/ — e chegámos à pronúncia atual.

Agora, há exceções a esta evolução. Marco Neves deu exemplos de duas delas, padaria e ator, mas há dezenas e dezenas, provavelmente centenas. Em princípio, geração e mestrado deviam, precisamente, fazer parte dessas exceções.

As palavras que mantiveram vogais átonas abertas fazem-no principalmente por duas razões: ou porque a vogal está numa sílaba que termina com determinada consoante[3] ou porque ela resulta de uma fusão de duas vogais ao lado uma da outra. Costuma dizer-se, neste último caso, que estavam «em hiato» e chama-se crase a esta fusão. É este caso que nos interessa analisar quando falamos de geração e mestrado.

Uma característica dos falares romances que vieram a dar o português foi deixar de pronunciar muitas consoantes entre vogais. Quando se compara o português com as outras línguas latinas, isto torna-se evidente, mesmo para quem não sabe qual a origem latina das palavras: compare-se, por exemplo, generación, génération e generazione com geração, por exemplo, e panadería com padaria. Ora acontece normalmente que uma vogal aberta que resulta dessa crase «resiste» à regra geral de «fechar» as vogais átonas. É por isso que se diz /esquɛcer/ e não /esquəcer/, /aquɛcer/ e não /aquəcer/, etc., etc., etc.  É muito improvável que geração venha de gerar, como Tuggaboy afirma. De facto, os dicionários dizem que, como parece mais plausível, a palavra deriva diretamente da palavra latina generatione(m). Quando caiu o n intervocálico, ficaram durante algum tempo dois ee ao lado um do outro, que acabaram por se fundir, como é normal nestes casos, num /ɛ/, um «e aberto». Quando os ee átonos do português, que eram /ê/, passaram a /i/ e depois a /ə/, este «e aberto»/ɛ/, que era um som diferente, manteve-se nas palavras onde tinha havido crase[4]. Compare-se, por exemplo, /prɛgar/ e /prəgar/, ambos escritos pregar, em que o primeiro vem de praedicāre e passou, portanto, por uma fase preegar e o segundo vem de plicāre e teve a evolução «normal» sem crase. Se tivermos em conta este fenómeno, não só está explicada a pronúncia /gɛração/, como ela até parece mais normal. O anormal é precisamente, que geração tenha começado a pronunciar-se /gəração/ e talvez mais ainda que gerar se tenha começado a pronunciar como atualmente se pronuncia. Quanto a mestrado, a questão é exatamente a mesma: as palavras da família de mestre, como mestria ou amestrar, têm /ɛ/ aberto por causa da crase[5].

Mas então, /gɛração/ e /mɛstrado/ são típicos de Lisboa? Pode ser. Parece-me estranho que só em Lisboa se tenha mantido essa pronúncia tradicionalista, mas é possível. Não tenho maneira nenhuma de o verificar, teria de ir ver como o dizem as pessoas em todo o país, uma coisa um bocado fora do meu alcance. Mas é bastante mais provável que haja oscilação entre as duas pronúncias em várias zonas, embora não negue à partida, que a pronúncia moderna se possa ter espalhado mais rapidamente em certas regiões. Não sei.

E qual é a pronúncia correta? Bom, em vez de correta, gosto mais de falar de padrão ou de norma, para não parecer que as outras maneiras de falar são incorretas, quando são apenas variantes regionais ou sociais[6]. Mas Tuggaboy parece ter razão: é a pronúncia «fechada» que é atualmente considerada a norma. O Dicionário da Porto Editora regista /gəração/ como pronúncia correta de geração. Quanto a mestrado, porém, aceita /məstrado/ e /mɛstrado/, tal como aceita /məstria/ e /mɛstria/ para mestria. O Dicionário da Academia de Ciências, esse, regista apenas /gəração/, /məstrado/ e /məstria/. Não há dúvida de que a pronúncia fechada está a ganhar terreno e que a pronúncia antiga, quer ela persista mais em certas regiões ou não, começa a ser considerada desviante.

Conheço muita gente que se queixa de estarem a fechar-se todas as vogais pretónicas que eram abertas, mas não há razão para se queixar  a língua muda, é tudo. E uma das forças da mudança é a tendência de regularização: a regra de que o fonema /E/, quando é átono, se pronuncia /ə/ vai tendo cada vez menos exceções. Agora, é mais fácil regularizar-se refrães em refrões que irmãos em *irmões, porque irmãos se diz muito, a forma irregular está muito disponível, sempre presente. Acho que há grande consenso sobre isto: quanto menos usada é uma forma, mais depressa se regulariza. Por isso, demorará mais tempo a que esquecer e aquecer passem a ser /əsquəcer/ e /aquəcer/. Pode até ser que certas formas nunca se regularizem, que corar nunca venha a pronunciar-se /curar/, para não se confundir com curar. Enfim, a língua resolverá os problemas que venha a haver… Mas, no geral, não se perde nada com o fechamento das vogais. Ou talvez só num ou noutro caso sem importância nenhuma: eu ainda distingo /fəstinha/, carícia, de /fɛstinha/, pequena festa, mas é natural que a distinção se venha a anular muito em breve, se é que não se anulou já no falar de muitas pessoas.

[Revisto e ligeiramente alterado e 31 de julho de 2023]

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[1] Tuggaboy diz também que «se assiste […] a uma substituição de "tês" (T) por "TSês"», mas não comento isso, porque não consigo perceber a que se refere.
[2] É esta a pronúncia das vogais que existe hoje numa grande parte do português do Brasil, que, neste aspeto, é como o português europeu de há três séculos. Como o francês, o inglês e o castelhano da América, também o português americano tem algumas características conservadoras.
[3] No primeiro caso, temos ainda hoje, por exemplo, as vogais de todas as sílabas terminadas no som /l/ (alcateia, balnear, golfinho ou Melgaço) e algumas terminada noutros sons consonânticos, como tectónico e magnífico, mas há já muita instabilidade neste último caso, observando-se às vezes a coexistência de pronúncias «abertas» e «fechadas» (ouve-se também /mâgnífico/, por exemplo, e /pâctuar/ é bem mais comum, creio eu, que /pàctuar/). É a ação da consoante que explica a «abertura» da vogal em a(c)tor e afins. Como esta vogal era diferente das outras vogais pretónicas, não se fechou como elas, mesmo quando a consoante que tinha causado a «abertura» deixou de se pronunciar. O desenvolvimento foi, portanto, o mesmo que para as mesmas vogais quando resultavam de crase — como se poderia esperar.
Seja como for, independentemente da explicação do fenómeno, não se deve dizer, como diz Tuggaboy, que «actor tem o c que abre a vogal» na pronúncia moderna, porque actor só tinha c na escrita, por convenção, como poderia ter outra marca diacrítica qualquer, por exemplo, um acento grave, ou não ter nenhuma, como acontece na nova ortografia. A palavra era e é uma sequência de quatro sons, /'ator/, independentemente da forma como se transcrevam graficamente. Em actuar e actualidade, havia um c na grafia que não marcava nenhuma abertura…
Há outros casos de vogais pretónicas abertas: o o pronuncia-se aberto quando é uma sílaba sozinho em início de palavra: diz-se /òriente/, /òbrigado/, /òcasião/, etc. E talvez haja outros casos sistematizáveis de que me esteja agora a esquecer.
[4] Ou nas palavras em que ele tinha surgido por causa da consoante final da sílaba, que entretanto deixara de se pronunciar.  Note-se que tudo o que digo aqui do «e aberto», /ɛ/, se aplica também ao «o aberto, /ò/. A questão do «à aberto», /à/, é semelhante, mas mais complicada.
[5] O étimo latino de mestre é magister e as formas anteriores à forma moderna das palavras da família tem ae em hiato.
[6] Que o português padrão seja o de Coimbra é afirmação que se ouve com frequência, mas é uma ideia algo estranha. A não ser que alguém o tenha decretado, é anómalo que o padrão seja o sotaque do que é, historicamente, a terceira cidade do país. Pela sua localização central no país? Por ter uma universidade antiga? O que me parece normal, como digo no texto “Português de Lisboa: ao que isto chegou…”, é que o sotaque padrão seja o da classe culta da capital. Mas é discussão lateral ao tema deste texto, que não quero agora desenvolver.

11/04/16

[sem título]

P. nasceu no mesmo ano que eu e vai morrer agora. Talvez este mês ainda, talvez para o próximo, mas muito em breve.

É melhor ser a morte anunciada, ter uma ideia, nem que muito precisa, de quando tudo se acaba? Muita gente me disse já que não, que não queria ter essa revelação.

P. fala da sua morte com racionalidade. Quer deixar resolvido tudo o que puder resolver. «Se tiverem alguma coisa importante para me dizer, é agora que têm de dizer. Seja lá o que for.»

Combinou com o padre e com os mais próximos como será o funeral. Nem tudo pode ser como P. queria. O padre diz-lhe que não pode ler no enterro o poema que ela quer que ele leia, porque é um poema pagão. Compreendo o padre: num discurso fúnebre, não pode dizer algo de que discorde, mesmo que isso lhe tenha sido pedido por alguém que já morreu.

O marido far-lhe-á ele próprio o caixão. O que se passará na cabeça de alguém quando mede e corta e aplaina o caixão da sua mulher que vai morrer em breve?

Muitas pessoas vão visitar P. lá a casa, despedir-se dela. Ninguém põe as coisas assim, nem lhe diz claramente o que pensa ao dizer adeus: «Já não te vejo mais.»
P. fica emocionada e chora. «Tanta gente que gosta de mim.»

Na nossa família, todos choramos P., mas não a choramos na presença dela. É verdade que há muita gente que gosta dela. Saber que falta muito pouco para ela nos deixar não há de impedir uma explosão de dor quando soubermos da sua morte. A morte só muito relativamente se prepara e se aceita, mesmo quando se a tem diante dos olhos.