Imaginem que era assim: que a vida tinha uma lógica, um sentido, e que a morte chegava sempre no momento certo, quando a vida tinha sido já cumprida e não havia mais a viver. A proposta está longe de ser nova. Muita gente viu já, em momentos de arrebatamento místico, uma harmonia nisto tudo – em que a maior parte de nós não consegue ver senão desordem. Lembro-me de uma nota de rodapé num livro bastante pateta que li na minha juventude, em que se fazia esta proposta muito menos pateta que o resto do livro: nirvana, que significa “ausência de sopro”, pode ser interpretado como morte, simplesmente, e o budismo bem pode ser, afinal, uma doutrina que afirma a perfeição da natureza, onde tudo acontece no momento certo. Uma canção bem bonita* diz a mesma coisa de uma forma talvez mais directa: “…até que a plenitude e a morte / coincidissem um dia /, o que aconteceria / de qualquer jeito…” .
No caso do poeta Alexandre O’Neill, parece-me que é verdade, que a plenitude e o fim coincidiram de facto. No caso do poeta Alexandre O’Neill, digo bem, que do homem nada sei. Vejam este poema do seu último livro, O princípio da utopia, o princípio da realidade seguidos de Ana Brites, balada tão ao gosto português & vários outros poemas (Lisboa: Moraes, 1986):
Muito desgosto te espreita
ao longo da tua vida,
mas a vara está direita:
tua missão foi cumprida.
E quando, por teus pecados,
te pesarem na balança,
tira-te dos teus cuidados:
tens pecados de criança.
Tens de pensar, meu rapaz,
duas vezes no teu curso.
A primeira, se és capaz,
será a segunda vez:
se foste capaz, meu urso!
E assim, à boa fé,
não te esqueças, meu otário:
é remar contra a maré
quando esperam o contrário.
Se na balança pesa igual
o que aos olhos dos mortais
passa por bem ou por mal,
muito bem ou muito mal
em tudo serão iguais.
Quero eu dizer cá na minha
que a pública virtude
só ilude quem ilude,
só no palco é a rainha.
Que o virtuoso a valer
não precisa de exibir
a virtude que tiver
no seu afã de existir.
E assim, o corpo da vara
direito sempre há-de ser.
Nem o mal é um direito
nem o bem é um dever.
Não sei se é o melhor poema do livro ou até se é um grande poema... Sei que é o penúltimo do livro, mas deve ser por engano. Devia ser o último, porque é a prova daquilo que eu dizia lá atrás sobre o poeta O’Neill… a poesia de O’Neill… ter chegado ao fim no momento certo. Não pensem que digo isto por se tratar de um poema de balanço da vida ou por descortinar entre as linhas a serenidade de quem a morte já não assusta. Não, não é isso, a minha ideia é outra: depois de escrever um poema assim, que mais se há-se escrever?
_______________
* “Janelas Abertas nº 2”, de Caetano Veloso. Parece que a canção é inspirada em Castillo Interior o Las Moradas (1588), de Santa Teresa de Ávila...
23/11/07
12/11/07
Livros que não mudaram a minha vida
Fala-se muitas vezes de “livros que mudaram a nossa vida” e inclui-se nesse conjunto de livros novelas, contos e romances, recolhas de poemas e peças de teatro, mas, eu, vejam lá, tenho a ideia que as obras literárias não mudam a vida de ninguém. Ou, se mudam, é tão pouco que a mudança por elas causada é, quase sempre, irrelevante.
Que me digam que livros religiosos, filosóficos ou científicos mudam a vida das pessoas, eu aceito. O Corão ou o Manifesto do Partido Comunista ou A origem das espécies mudaram a vida de muitos seres humanos, os primeiros porque propõem códigos de conduta que foram – e são – adoptados por muita gente, e o último porque está na base de alterações na compreensão do mundo que, directa ou indirectamente, afectaram a tecnologia, o que, por sua vez, teve e continua a ter uma quantidade enorme de implicações práticas na vida de muitas pessoas (estou a pensar sobretudo na medicina). Agora O egípcio, as Obras completas de Alexandre O’Neill, a História universal da infâmia ou as Recordações da casa dos mortos, o que é que mudaram na vida de quem?
Pode argumentar-se, é certo, que vários romances tiveram um papel importante na formação de mentalidades. Mas é uma afirmação difícil de provar e, mesmo que admitamos que assim foi, é impossível concluir daí que algum deles tenha mudado alguma coisa na vida dos seus leitores individualmente. Também é verdade que há obras de que se diz que criaram modas. A ser verdade, a adesão do leitor a uma moda seria, sem dúvida, uma mudança na sua vida criada pelo livro. Mas qual é a extensão e a relevância deste fenómeno? O caso mais famoso é o de Die Leiden des jungen Werthers, mais conhecido como Werther apenas, de Johann Wolfgang von Goethe, de que se afirma que levou muitos jovens a vestirem-se “à Werther” por toda a Europa e que é responsável por uma onda de 2 000 suicídios imitando o do protagonista da obra. Se a mudança de indumentária é sem grande importância na vida de uma pessoa, já a morte é, com toda a certeza, a alteração mais radical que a existência de alguém pode sofrer. Evidentemente, é difícil saber até que ponto é que a leitura do livro é a causa directa da vaga de suicídios e até que ponto é que é a consciência desse “movimento” que está na sua origem. Mas muito bem – Werther mudou a vida de bastantes pessoas. Muito poucas, ainda assim, se compararmos com o número de vidas profundamente alteradas por obras não literárias como as que eu referi atrás, mas isso não importa – o livro mudou de facto a vida de alguns dos seus leitores. E, como ele, deve ter havido mais meia dúzia deles, mas são certamente muito poucos. Pela estrada fora, de Jack Kerouac é bem capaz de ter levado alguma malta à vagabundagem beatnick (se bem que, mais uma vez, não se possa saber com certeza se foi o livro em si ou o facto de ele ser o símbolo de um movimento…), mas Moby Dick nunca levou muita gente à pesca de baleias. A esmagadora maioria, a quase totalidade, das obras literárias não mudou em nada a vida de quem as leu – excepto, claro está, em ter feito essas pessoas empregarem na sua leitura tempo de vida que, doutra maneira, poderiam ter passado a fazer outra coisa qualquer…
P.S.: Acabo de me dar conta que há uma ressalva que tenho de fazer. De facto, a leitura de obras literárias muda a vida de um tipo de pessoas, aquelas de cujo ofício elas fazem parte: os escritores, que não escreveriam o que escrevem se não tivessem lido o que leram, ou seja, cuja actividade profissional é directamente determinada pelos livros que lêem (não completamente, mas numa medida não desprezível); e os professores e investigadores de literatura.
Que me digam que livros religiosos, filosóficos ou científicos mudam a vida das pessoas, eu aceito. O Corão ou o Manifesto do Partido Comunista ou A origem das espécies mudaram a vida de muitos seres humanos, os primeiros porque propõem códigos de conduta que foram – e são – adoptados por muita gente, e o último porque está na base de alterações na compreensão do mundo que, directa ou indirectamente, afectaram a tecnologia, o que, por sua vez, teve e continua a ter uma quantidade enorme de implicações práticas na vida de muitas pessoas (estou a pensar sobretudo na medicina). Agora O egípcio, as Obras completas de Alexandre O’Neill, a História universal da infâmia ou as Recordações da casa dos mortos, o que é que mudaram na vida de quem?
Pode argumentar-se, é certo, que vários romances tiveram um papel importante na formação de mentalidades. Mas é uma afirmação difícil de provar e, mesmo que admitamos que assim foi, é impossível concluir daí que algum deles tenha mudado alguma coisa na vida dos seus leitores individualmente. Também é verdade que há obras de que se diz que criaram modas. A ser verdade, a adesão do leitor a uma moda seria, sem dúvida, uma mudança na sua vida criada pelo livro. Mas qual é a extensão e a relevância deste fenómeno? O caso mais famoso é o de Die Leiden des jungen Werthers, mais conhecido como Werther apenas, de Johann Wolfgang von Goethe, de que se afirma que levou muitos jovens a vestirem-se “à Werther” por toda a Europa e que é responsável por uma onda de 2 000 suicídios imitando o do protagonista da obra. Se a mudança de indumentária é sem grande importância na vida de uma pessoa, já a morte é, com toda a certeza, a alteração mais radical que a existência de alguém pode sofrer. Evidentemente, é difícil saber até que ponto é que a leitura do livro é a causa directa da vaga de suicídios e até que ponto é que é a consciência desse “movimento” que está na sua origem. Mas muito bem – Werther mudou a vida de bastantes pessoas. Muito poucas, ainda assim, se compararmos com o número de vidas profundamente alteradas por obras não literárias como as que eu referi atrás, mas isso não importa – o livro mudou de facto a vida de alguns dos seus leitores. E, como ele, deve ter havido mais meia dúzia deles, mas são certamente muito poucos. Pela estrada fora, de Jack Kerouac é bem capaz de ter levado alguma malta à vagabundagem beatnick (se bem que, mais uma vez, não se possa saber com certeza se foi o livro em si ou o facto de ele ser o símbolo de um movimento…), mas Moby Dick nunca levou muita gente à pesca de baleias. A esmagadora maioria, a quase totalidade, das obras literárias não mudou em nada a vida de quem as leu – excepto, claro está, em ter feito essas pessoas empregarem na sua leitura tempo de vida que, doutra maneira, poderiam ter passado a fazer outra coisa qualquer…
P.S.: Acabo de me dar conta que há uma ressalva que tenho de fazer. De facto, a leitura de obras literárias muda a vida de um tipo de pessoas, aquelas de cujo ofício elas fazem parte: os escritores, que não escreveriam o que escrevem se não tivessem lido o que leram, ou seja, cuja actividade profissional é directamente determinada pelos livros que lêem (não completamente, mas numa medida não desprezível); e os professores e investigadores de literatura.
08/11/07
O fado: do ganga, perdão, da ganga ao terylene e ao 100% algodão
Perguntaram-me outro dia
se eu sabia o que era o fado.
E eu disse que sim, sabia,
mas ninguém fiqu’admirado
se a minha concepção
daquilo que o fado é
for contra a definição
de Aníbal Nazaré:
O fado não são almas vencidas, nem noites perdidas, nem sombras bizarras; nem cinza nem lume nem dor nem pecado. O fado é uma forma de música popular urbana, que se define por um número relativamente limitado de estruturas rítmicas, harmónicas e melódicas (em princípio, só há três fados, dizem alguns especialistas…). Há uma tradição de uso no fado de guitarra portuguesa e guitarra (e guitarra baixo, às vezes), mas já houve e continua a haver fados com muitos outros tipos de acompanhamento instrumental. Quanto à forma das letras, embora predomine, como em toda a canção popular portuguesa, a quadra em redondilha maior, também não há padrão fixo de versificação: há estrofes e versos de variados tamanhos. Nas últimas 6 décadas, há também uma predominância de certas inflexões vocais distintivas, principalmente nas intérpretes femininas, mas também isto não caracteriza todo o fado – quem conhecer um bocadinho a história do fado sabe bem que a vocalização das fadistas até aos anos 50 era muito diferente, e nada impede que o continue a ser, se a fadista quiser.
(Como as notas de rodapé entram mal no formato blogue, abro aqui um longo parênteses: É curioso notar que não são as estruturas musicais que fazem algumas pessoas reconhecer uma canção como sendo fado ou não, mas antes, precisamente, a maneira de cantar, por muito que a música em si não encaixe nas formas de base do fado. Quer dizer que, como todas as outras formas “fixas” da música popular, a forma fixa do fado não o é por aí além, e a fronteira do conceito depende dos conhecimentos e/ou preconceitos da pessoa que oiça o fado: para mim, é óbvio que a música dos Madredeus não é fado, mas é como fado que é apresentada e compreendida em certos círculos da chamada world music; para mim, é muito duvidoso que “Aquela janela virada para o mar” ou “Partir é morrer um pouco”, para referir exemplos conhecidos, sejam fados, mas há muito quem os considere assim; para mim, é óbvio que “Oiça lá ó senhor vinho” ou “Formiga bossa-nova”, da Amália (e vários outros temas dela) não são fado, embora ela os cante com os trejeitos do fado…, mas quando tento explicar por quê a alguém que tenha com o fado uma relação menos íntima, falho sempre…)
Escusado será dizer que, como todas as formas de música, popular ou não, o fado está em permanente mudança. E não sou eu, com certeza, que me vou pronunciar contra a evolução do fado. Não acho que a tradição tenha valor pelo simples facto de ser tradição e, embora haja coisas tradicionais que me agradam, não defendo nunca que as formas “mais puras” são superiores às “menos puras”. Até porque, bem vistas as coisas, formas puras não há; e defender a conservação inalterada de uma forma é condená-la à morte – tudo o que nós sabemos das coisas humanas e não humanas nos diz que só sobrevive o que evolui. Acho então muito bem que o fado se transforme. Posso gostar mais ou menos das formas que possam ir surgindo, mas isso é outra questão…
E então, depois de uma introdução assim tão assertiva, o que é que vai daqui sair? Bom, não julguem que vou aventurar-me nalguma dissertação de fôlego sobre a arte e preceito de escrever ou cantar o faduncho com jeito, até porque não tenho estaleca para tal. O propósito deste texto é muito mais modesto: quero só (só) dar conta de um fenómeno que tenho observado na evolução do fado: a sua liricização.
Não vou negar que a vertente lírica sempre foi muito importante no fado – talvez até a predominante. Mas coabitou durante muito tempo com várias outras que também tinham a sua importância. Sendo uma forma de música popular urbana, o fado partilha (ou partilhava…) as temáticas das outras formas de canção popular urbana que lhe estão culturalmente próximas. Em toda a canção, popular ou não, os textos líricos, principalmente de temática amorosa (e, dentro do tema do amor, o do sofrimento amoroso…), são predominantes, e o fado segue, naturalmente, essa tendência geral. Mas nem só de amor fala o fado. E nem só no falar de amor ele se aproxima de muitos outras forma de canção. Senão, vejamos:
Como muitos outros tipos de canção (vejam a java parisiense, por exemplo), o fado é bastante auto-referencial: muitos fados falam do fado, da sua “história”, incluindo os fadistas e guitarristas míticos, tentam definir o espírito fadista, descrevem o ambiente do fado e defendem, às vezes, o “verdadeiro” fado contra os “falsos fadistas”.
E outra temática fundamental do fado é, naturalmente, Lisboa. A cidade no seu todo ou partes específicas da capital. Também isto é pouco idissincrático: a canção de Roma fala de Roma, a de Amesterdão de Amesterdão, a de Copenhaga de Copenhaga. A canção urbana fala da urbe onde pertence. E como fala da urbe, fala dos seus lugares, da sua gente e das actividades desta gente. Talvez não haja a Tendinha, a igreja de Santo Estêvão, a Senhora do Monte, a Mariquinhas, a tia Macheta, o Malhoa, tipóias e esperas de gado nas canções urbanas de outras cidades, mas há sempre tabernas e prostíbulos e a descrição de personagens urbanas, umas só conhecidas nas canções que as cantam, outras famosas fora delas, com as suas biografias ou fatias apenas de vida.
Descrições e histórias: era aqui que eu queria chegar. Sempre houve também no fado essa vertente narrativa/descritiva que é, também ela, comum a toda a canção urbana ocidental. Ora o que se passa a partir dos anos 60 e se acentua com o chamado “novo fado” é aquilo a que eu chamaria um afunilamento lírico: a vertente narrativa/descritiva desaparece e o fado torna-se essencialmente lírico. É principalmente em Amália Rodrigues – e nas suas experiências de trazer para o fado outro tipo de poesia, nomeadamente de poetas consagrados – que está provavelmente a origem desta tendência. Pelo menos, é certo que é ela o principal modelo de todas as modernas fadistas, tanto em termos de estilo vocal como de canções a reinterpretar.
Os resultados deste monopólio das temáticas “sérias” e “poéticas” no fado são um mau e outro bom. O mau resultado é que, com o império do liricismo fadista, tipos importantes de fado estão a desaparecer: fados humorísticos, já não nos há; e nem a contar os trinta e uns em que a malta continua a meter-se; e nem sequer histórias simples da gente simples que continua a haver nos nossos bairros. O resultado bom é que, marketizado como sendo a forma essencial da música portuguesa e insistentemente associado à “intraduzível” saudade (que patetice!) e à alma nostálgica e marinheira do povo português (nunca conheci nenhum povo que se interessasse tão pouco por andar de barco…), o fado começou a ser bastante conhecido no estrangeiro – e a vender-se bem! Internacionalizou-se e, para se internacionalizar, provavelmente não podia continuar a falar de canjirões, rambóia, pampilhos, piaras e novilhos de tenta… É a vida…
A propósito, já ouviram uma húngara cantar o fado?
se eu sabia o que era o fado.
E eu disse que sim, sabia,
mas ninguém fiqu’admirado
se a minha concepção
daquilo que o fado é
for contra a definição
de Aníbal Nazaré:
O fado não são almas vencidas, nem noites perdidas, nem sombras bizarras; nem cinza nem lume nem dor nem pecado. O fado é uma forma de música popular urbana, que se define por um número relativamente limitado de estruturas rítmicas, harmónicas e melódicas (em princípio, só há três fados, dizem alguns especialistas…). Há uma tradição de uso no fado de guitarra portuguesa e guitarra (e guitarra baixo, às vezes), mas já houve e continua a haver fados com muitos outros tipos de acompanhamento instrumental. Quanto à forma das letras, embora predomine, como em toda a canção popular portuguesa, a quadra em redondilha maior, também não há padrão fixo de versificação: há estrofes e versos de variados tamanhos. Nas últimas 6 décadas, há também uma predominância de certas inflexões vocais distintivas, principalmente nas intérpretes femininas, mas também isto não caracteriza todo o fado – quem conhecer um bocadinho a história do fado sabe bem que a vocalização das fadistas até aos anos 50 era muito diferente, e nada impede que o continue a ser, se a fadista quiser.
(Como as notas de rodapé entram mal no formato blogue, abro aqui um longo parênteses: É curioso notar que não são as estruturas musicais que fazem algumas pessoas reconhecer uma canção como sendo fado ou não, mas antes, precisamente, a maneira de cantar, por muito que a música em si não encaixe nas formas de base do fado. Quer dizer que, como todas as outras formas “fixas” da música popular, a forma fixa do fado não o é por aí além, e a fronteira do conceito depende dos conhecimentos e/ou preconceitos da pessoa que oiça o fado: para mim, é óbvio que a música dos Madredeus não é fado, mas é como fado que é apresentada e compreendida em certos círculos da chamada world music; para mim, é muito duvidoso que “Aquela janela virada para o mar” ou “Partir é morrer um pouco”, para referir exemplos conhecidos, sejam fados, mas há muito quem os considere assim; para mim, é óbvio que “Oiça lá ó senhor vinho” ou “Formiga bossa-nova”, da Amália (e vários outros temas dela) não são fado, embora ela os cante com os trejeitos do fado…, mas quando tento explicar por quê a alguém que tenha com o fado uma relação menos íntima, falho sempre…)
Escusado será dizer que, como todas as formas de música, popular ou não, o fado está em permanente mudança. E não sou eu, com certeza, que me vou pronunciar contra a evolução do fado. Não acho que a tradição tenha valor pelo simples facto de ser tradição e, embora haja coisas tradicionais que me agradam, não defendo nunca que as formas “mais puras” são superiores às “menos puras”. Até porque, bem vistas as coisas, formas puras não há; e defender a conservação inalterada de uma forma é condená-la à morte – tudo o que nós sabemos das coisas humanas e não humanas nos diz que só sobrevive o que evolui. Acho então muito bem que o fado se transforme. Posso gostar mais ou menos das formas que possam ir surgindo, mas isso é outra questão…
E então, depois de uma introdução assim tão assertiva, o que é que vai daqui sair? Bom, não julguem que vou aventurar-me nalguma dissertação de fôlego sobre a arte e preceito de escrever ou cantar o faduncho com jeito, até porque não tenho estaleca para tal. O propósito deste texto é muito mais modesto: quero só (só) dar conta de um fenómeno que tenho observado na evolução do fado: a sua liricização.
Não vou negar que a vertente lírica sempre foi muito importante no fado – talvez até a predominante. Mas coabitou durante muito tempo com várias outras que também tinham a sua importância. Sendo uma forma de música popular urbana, o fado partilha (ou partilhava…) as temáticas das outras formas de canção popular urbana que lhe estão culturalmente próximas. Em toda a canção, popular ou não, os textos líricos, principalmente de temática amorosa (e, dentro do tema do amor, o do sofrimento amoroso…), são predominantes, e o fado segue, naturalmente, essa tendência geral. Mas nem só de amor fala o fado. E nem só no falar de amor ele se aproxima de muitos outras forma de canção. Senão, vejamos:
Como muitos outros tipos de canção (vejam a java parisiense, por exemplo), o fado é bastante auto-referencial: muitos fados falam do fado, da sua “história”, incluindo os fadistas e guitarristas míticos, tentam definir o espírito fadista, descrevem o ambiente do fado e defendem, às vezes, o “verdadeiro” fado contra os “falsos fadistas”.
E outra temática fundamental do fado é, naturalmente, Lisboa. A cidade no seu todo ou partes específicas da capital. Também isto é pouco idissincrático: a canção de Roma fala de Roma, a de Amesterdão de Amesterdão, a de Copenhaga de Copenhaga. A canção urbana fala da urbe onde pertence. E como fala da urbe, fala dos seus lugares, da sua gente e das actividades desta gente. Talvez não haja a Tendinha, a igreja de Santo Estêvão, a Senhora do Monte, a Mariquinhas, a tia Macheta, o Malhoa, tipóias e esperas de gado nas canções urbanas de outras cidades, mas há sempre tabernas e prostíbulos e a descrição de personagens urbanas, umas só conhecidas nas canções que as cantam, outras famosas fora delas, com as suas biografias ou fatias apenas de vida.
Descrições e histórias: era aqui que eu queria chegar. Sempre houve também no fado essa vertente narrativa/descritiva que é, também ela, comum a toda a canção urbana ocidental. Ora o que se passa a partir dos anos 60 e se acentua com o chamado “novo fado” é aquilo a que eu chamaria um afunilamento lírico: a vertente narrativa/descritiva desaparece e o fado torna-se essencialmente lírico. É principalmente em Amália Rodrigues – e nas suas experiências de trazer para o fado outro tipo de poesia, nomeadamente de poetas consagrados – que está provavelmente a origem desta tendência. Pelo menos, é certo que é ela o principal modelo de todas as modernas fadistas, tanto em termos de estilo vocal como de canções a reinterpretar.
Os resultados deste monopólio das temáticas “sérias” e “poéticas” no fado são um mau e outro bom. O mau resultado é que, com o império do liricismo fadista, tipos importantes de fado estão a desaparecer: fados humorísticos, já não nos há; e nem a contar os trinta e uns em que a malta continua a meter-se; e nem sequer histórias simples da gente simples que continua a haver nos nossos bairros. O resultado bom é que, marketizado como sendo a forma essencial da música portuguesa e insistentemente associado à “intraduzível” saudade (que patetice!) e à alma nostálgica e marinheira do povo português (nunca conheci nenhum povo que se interessasse tão pouco por andar de barco…), o fado começou a ser bastante conhecido no estrangeiro – e a vender-se bem! Internacionalizou-se e, para se internacionalizar, provavelmente não podia continuar a falar de canjirões, rambóia, pampilhos, piaras e novilhos de tenta… É a vida…
A propósito, já ouviram uma húngara cantar o fado?