A música pop(ular), explicava-me um dia um amigo meu, diferencia-se de todas as outras formas de música por ser uma música feita sem nenhum projecto nem objectivo nem modelo suficientemente rígido para impedir que, em última análise, o critério último do autor seja mais do que “achar que soa bem”. Isto era para me explicar uma teoria de já não sei quem que ele andava a ler e que conseguia, assim, resolver airosamente, na opinião dele, a famosa questão da distinção entre música pop(ular) e música erudita; e talvez também entre música pop(ular) e música tradicional.
Não tenho a certeza de estar mais de acordo com esta do que com outras tentativas que conheço de distinção de “áreas musicais”, como, por exemplo, o clássico contraste entre música feita por pessoas com educação musical formal – académicos da música, digamos assim – e pessoas sem essa formação. O que me parece (e o que parece a muito mais gente, não há originalidade nenhuma no que aqui defendo…) é que tentar estabelecer essas fronteiras é um exercício um bocado vão, quanto mais não seja porque a zona cinzenta entre o que é facilmente classificável num dos dois compartimentos definidos por essa arrumação é demasiado grande para se poder ignorar como “excepcional”… E, no entanto, acabo, às vezes, por aceitar essas preconceituosas divisões sem sequer dar por isso. Por exemplo, na forma como arrumo os discos na estante. Os “clássicos” são sempre ordenados por autor, os “outros” sempre por intérprete… Enfim…
Mas onde eu queria chegar é que, num exercício de ginástica classificatória, podemos tentar fazer passar a distinção entre as grandes “áreas” musicais das características da música em si para a maneira como ela é percebida. Há-de haver, entre tanta gente que se obstina em criticar a impossibilidade de “objectivismo”e em insistir que os objectos não são mais do que os olhares sobre eles, quem se entusiasme com a ideia. Como em todas as ginásticas deste tipo, o primeiro passo é fácil: define-se música erudita como sendo “aquela que é percebida como sendo erudita”, música tradicional como sendo “aquela que é percebida como sendo música tradicional” e música pop(ular) como sendo “aquela que é percebida como sendo música pop(ular)”. Chegados aqui, deparamo-nos então com um problema maior, também típico deste género de ginásticas, que é o seguinte: E então? E chegados ao “E então?”, perguntam vossas mercês: “Ó Vitinha, ‘tás a reinar c’a malta ò quê?” Estou, mas estou a reinar a sério. Eu explico-me.
A ideia – que, como verão, é pouco menos que genial – veio-me de um comentário que um rapaz fez a um post que houve em tempos neste blogue em que eu propunha seis discos de rock que eu achava – e ainda acho – cheios de onda. O rapaz em questão dizia – provavelmente com toda a razão, aliás – que alguns daqueles discos que eu tinha proposto cheiravam a mofo. Espanta-me sempre ouvir a música referida nestes termos, apenas porque eu não penso nela dessa forma; mas, reflectindo agora sobre a questão, constato que é, de facto, normal referir assim (alguma) música: música actual versus música velha, música moderna versus música que já passou à história. A minha mulher, por exemplo, queixava-se há dez anos de que nós só tínhamos “música velha” e que era necessário “actualizarmo-nos” (e agora só gosta de ouvir as coisas que já ouvia, porque não gostou do que a “actualização” lhe deu a conhecer, mas isso é outra conversa…).
Ora eu, amante de música que sou, também gosto de ir sempre descobrindo coisas novas, mas importa-me pouco de quando é que elas são – podem ser do mês passado, de 1958 ou de há 700 anos, tanto me faz. Mas não é assim para muita gente e é só com a música pop(ular) que isto se passa: não acredito que o meu amigo dissesse de uma secular tarantela napolitana ou de música de Mahler o mesmo que do meu decrépito rock'n'roll, por muito que se trate, objectivamente, de música mais velha. É isso, precisamente, que justifica a palavra alguma entre parênteses no parágrafo anterior e é essa a ideia (quase) de génio para a construção da minha nova e revolucionária classificação: “Pop(ular) é a música que pode facilmente ser percebida como “ultrapassada” (ou “velha”, ou “cheirando a mofo”, acho que todos aqui nos entendemos independentemente da palavra exacta que usemos) já vinte ou vinte cinco anos após a sua criação”.
É claro, esta tipologia não nos resolve o problema da distinção entre música tradicional e erudita, porque nenhuma delas tem essa característica ao nível da sua recepção, mas, enfim, alguma coisa já avançámos. E com a vantagem de que, definida a música pop(ular) desta maneira, temos de graça, na sequência lógica dessa definição
i) a definição do/a ouvinte típico/a ou standard de música pop(ular) (que eu, pelos vistos, não sou): “aquele/a que percebe como “ultrapassada” a música que não considere nem clássica nem tradicional vinte ou vinte cinco anos após a sua criação”; e
ii) um quadro conceptual que bem pode extravasar da música e aplicar-se ao cinema, ao design, etc., numa palavra as todas as formas de cultura efectivamente pop(ulare)s.
Neste sentido, a literatura talvez seja, mesmo nas suas formas mais pop(ulare)s, um caso um pouco diferente… Mas haveria que experimentar – começar a perguntar às pessoas se percepcionam como sendo “velhos” livros pop(ulare)s escritos nos anos 70 e 80, por exemplo. É capaz, não sei… A pintura e a escultura, essas – mesmo a pintura e a esculturas ditas “pop art” –, de certeza que não são formas de expressão artísticas pop(ulare)s, porque ninguém diz de pinturas ou esculturas dos anos 70 que estão velhas…
Costuma dizer-se que a arte dura, a vida é que não, mas isso não se aplica com certeza à arte pop(ular), que é estranhamente perecível, mais ainda do que a vida…
15/12/07
14/12/07
Do tempo e da sua falta: o tamanho como elemento fundamental da obra de arte
Já em 1883 falava Théodore de Banville, no prefácio à sua obra La lanterne magique, da adequação do formato do conto curto à falta de tempo da vida moderna. Ora eu, que nunca fui muito de milenarismos catastrofistas, não acredito muito que tenha havido tempos com mais tempo que outros tempos, sobretudo para ler livros. Qualquer pessoa pode constatar, por exemplo, que muitos best-sellers de aeroporto são pelo menos tão volumosos como os mais volumosos romances do séc. XIX e não deixam, por isso, de ser à medida da, credo!, “falta de tempo” contemporânea – se não, não eram best-sellers de aeroporto… Seja lá como for, o facto de se lerem obras maiores ou menores não tem implicações directas na totalidade de tempo que se dedica à leitura.
Dito isto[1], acho que o tamanho é um elemento muito importante de qualquer texto ou conjunto de textos, uma componente fundamental de uma obra literária, algo que a define tanto como o período, o género, o grau de erudição, a originalidade do estilo ou a falta dela, etc. Ainda há pouco tempo, aliás, uma amiga mo confirmava: “Ah, eu gosto muito de romances muito grandes!” “Romances muito grandes” é um tipo de romances. Tanto que a outra amiga, a quem a primeira queria impingir o romance muito grande que tinha acabado de ler e de que tinha gostado muito, não quis sequer tentar lê-lo..., por ele ser tão grande! Porque esta, ao contrário da outra, não gostava nada de “romances muito grandes”. É mesmo assim: da mesma forma que há quem goste ou não de romances de aventuras ou policiais, da mesma forma que há quem goste ou não de poesia barroca ou simbolista, da mesma forma que há quem goste ou não de estilos narrativos muito minuciosos, muito ruralistas ou muito a puxar ao lírico, também há quem goste ou não goste de obras longas. E isto aplica-se tanto a leitores como a escritores – e às suas concepções estéticas. Há quem prefira escrever livros volumosos, e há quem, como Théodore de Banville, prefira os formatos curtos – mas não é necessário justificar essa opção com a adequação da forma do conto à “pressa da vida moderna”.
O caso da música pode ser, reconheço, um bocadinho diferente... Não tanto quando se trata de ouvir música em casa, porque aí podemos ouvir aos bocados qualquer obra (se bem que isso não seja aconselhável para todas as obras…), mas quando queremos ver ao vivo certos tipos de música … Bom, é verdade que normalmente, mesmo para ouvir música ao vivo, não é preciso mais tempo do que para ir a um cinema ou a um teatro, ou para ir beber um copo com os amigos… Um bocadinho mais se formos ver Os mestres cantores de Nuremberga, de Wagner (o quê? 3 horas e meia, 4 horas, uma coisa assim…), mas também não é coisa que se vá ver todos os dias… Mas compreendo muito bem quem se queixe de que “a vida moderna” já não permite a representação integral de nadagamas, as óperas populares do Sri Lanka, “devido à duração excessiva das peças (toda a noite, às vezes várias noites de seguida)”. É claro que “é um luxo a que o público já não se pode dar”, pelo que “agora já só representam excertos, muitas vezes sem encenação, nem decoração nem fatos” (Herman Vuylsteke, nas notas de Comédies et Opéras Populaires du Sri Lanka, Chant du Monde).
[1] Detestável galicismo (Ceci dit,...) ou detestável anglicismo (Having said that,...)? Ora, deixam lá o Dito isto em paz…
Dito isto[1], acho que o tamanho é um elemento muito importante de qualquer texto ou conjunto de textos, uma componente fundamental de uma obra literária, algo que a define tanto como o período, o género, o grau de erudição, a originalidade do estilo ou a falta dela, etc. Ainda há pouco tempo, aliás, uma amiga mo confirmava: “Ah, eu gosto muito de romances muito grandes!” “Romances muito grandes” é um tipo de romances. Tanto que a outra amiga, a quem a primeira queria impingir o romance muito grande que tinha acabado de ler e de que tinha gostado muito, não quis sequer tentar lê-lo..., por ele ser tão grande! Porque esta, ao contrário da outra, não gostava nada de “romances muito grandes”. É mesmo assim: da mesma forma que há quem goste ou não de romances de aventuras ou policiais, da mesma forma que há quem goste ou não de poesia barroca ou simbolista, da mesma forma que há quem goste ou não de estilos narrativos muito minuciosos, muito ruralistas ou muito a puxar ao lírico, também há quem goste ou não goste de obras longas. E isto aplica-se tanto a leitores como a escritores – e às suas concepções estéticas. Há quem prefira escrever livros volumosos, e há quem, como Théodore de Banville, prefira os formatos curtos – mas não é necessário justificar essa opção com a adequação da forma do conto à “pressa da vida moderna”.
O caso da música pode ser, reconheço, um bocadinho diferente... Não tanto quando se trata de ouvir música em casa, porque aí podemos ouvir aos bocados qualquer obra (se bem que isso não seja aconselhável para todas as obras…), mas quando queremos ver ao vivo certos tipos de música … Bom, é verdade que normalmente, mesmo para ouvir música ao vivo, não é preciso mais tempo do que para ir a um cinema ou a um teatro, ou para ir beber um copo com os amigos… Um bocadinho mais se formos ver Os mestres cantores de Nuremberga, de Wagner (o quê? 3 horas e meia, 4 horas, uma coisa assim…), mas também não é coisa que se vá ver todos os dias… Mas compreendo muito bem quem se queixe de que “a vida moderna” já não permite a representação integral de nadagamas, as óperas populares do Sri Lanka, “devido à duração excessiva das peças (toda a noite, às vezes várias noites de seguida)”. É claro que “é um luxo a que o público já não se pode dar”, pelo que “agora já só representam excertos, muitas vezes sem encenação, nem decoração nem fatos” (Herman Vuylsteke, nas notas de Comédies et Opéras Populaires du Sri Lanka, Chant du Monde).
[1] Detestável galicismo (Ceci dit,...) ou detestável anglicismo (Having said that,...)? Ora, deixam lá o Dito isto em paz…