Quem disse que na Travessa do Fala-Só não se aprende nada? Uma homenagem a Tom Lehrer, génio da canção popular, com animação de Timwi. ["These are the only ones of which the news have come to Harvard, / and there may be many others, but they haven't been discarvard..."]
16/04/10
O guardião do Monte Namúli
Por muito que seja escrito em Chimoio, a Travessa do Fala-Só não é, como já terão notado os meus poucos leitores habituais, um blogue sobre Moçambique. Às vezes lá fala um bocadinho de Moçambique, mas é raro. A verdade é que, vá lá uma pessoa saber porquê!, raramente me saem textos sobre Moçambique. Hoje, ao jantar, porém, lembrei-me de uma história moçambicana engraçada, que achei que cabia bem aqui na Travessa, para variar um bocadinho de tema:
Perto de Guruè, na Alta Zambézia, fica o Monte Namúli, que é a segunda montanha mais alta de Moçambique e é, para as pessoas da região, os lómuès, o berço da Humanidade. Dizem que lá se podem ver as pegadas do primeiro homem. Mas não se devia poder. Quer dizer, ningém devia poder vê-las. Parece que as coisas mudaram um bocado desde que eu vivi na Alta Zambézia, e vi guias de viagens recentes que aconselham caminhadas no Monte Namúli, mas antigamente só se podia escalar a montanha até um determinado sítio. Ou antes só se devia. A partir daí, era proibido, porque era terra sagrada. O castigo de quem se aventurasse até à parte de cima do monte era (como é muitas vezes, nesta parte do mundo, o castigo de quem viola alguma regra costumária) a pessoa perder-se e nunca mais encontrar o caminho para casa. O que é original – e delicioso, na minha opinião – na lenda lómuè é a maneira como a pessoa se perde: se o guardião eterno da montanha lá apanhar alguém, começa a falar com essa pessoa tanto e tão depressa que a confunde completamente; e ela, de tão baralhada que fica, nunca mais encontra o caminho de volta.
Foto de Dr. Oliveira, Wikipedia Commons
Perto de Guruè, na Alta Zambézia, fica o Monte Namúli, que é a segunda montanha mais alta de Moçambique e é, para as pessoas da região, os lómuès, o berço da Humanidade. Dizem que lá se podem ver as pegadas do primeiro homem. Mas não se devia poder. Quer dizer, ningém devia poder vê-las. Parece que as coisas mudaram um bocado desde que eu vivi na Alta Zambézia, e vi guias de viagens recentes que aconselham caminhadas no Monte Namúli, mas antigamente só se podia escalar a montanha até um determinado sítio. Ou antes só se devia. A partir daí, era proibido, porque era terra sagrada. O castigo de quem se aventurasse até à parte de cima do monte era (como é muitas vezes, nesta parte do mundo, o castigo de quem viola alguma regra costumária) a pessoa perder-se e nunca mais encontrar o caminho para casa. O que é original – e delicioso, na minha opinião – na lenda lómuè é a maneira como a pessoa se perde: se o guardião eterno da montanha lá apanhar alguém, começa a falar com essa pessoa tanto e tão depressa que a confunde completamente; e ela, de tão baralhada que fica, nunca mais encontra o caminho de volta.
Foto de Dr. Oliveira, Wikipedia Commons
«Se você disser que eu desafino, amor…»: Jazz, tradução e percepção
“Quando se começa a aprender jazz”, dizia-me uma vez um músico meu amigo, “uma das primeiras coisas que se aprende é que, quando uma pessoa se engana e dá uma nota ao lado, uma solução óbvia é repetir o prego: não só um erro repetido deixa de ser um erro, porque passa a haver intencionalidade, como ainda, do ponto de vista perceptivo, uma coisa estranha, ou considerada errada, começa a fazer sentido à medida que se vai repetindo.” Toda a gente sabe isso, penso eu, mesmo que nunca o tenha conceptualizado de forma clara. E com a língua (e com muitas outras coisas, naturalmente...) é o mesmo: depois de muito se repetir ou ouvir repetida uma palavra ou expressão, já não se sabe se desafina ou não. Um exemplo de ontem:
Pela milésima vez, tenho de traduzir service providers, às vezes reduzido a providers apenas, e pela milésima vez hesito. Não gosto de nada do que me vem à cabeça. Pela milésima vez, vejo nos dicionários e fóruns de tradução que costumo utilizar. Prestador de serviços é obviamente a opção mais consensual. E não lhe consigo encontrar nada de mal, até porque, relexicalizando as proposições onde a expressão ocorre com verbo em vez de nome, usaria sempre prestar serviços sem hesitar. Mas não gosto. Vejo rapidamente o número de ocorrências em Google, usando -br pt, como opção rápida para diminuir os números de páginas brasileiras (não tenho absolutamente nada contra o português do Brasil, mas não é para português do Brasil que estou a traduzir e não é, portanto, a norma brasileira que procuro). Resultados: “prestadores de serviços”, 3.640.000 ocorrências; “fornecedores de serviços”, 765.000; “provedores de serviços”, 126.000; “empresas de prestação de serviços”, 15.400. No fundo, ainda é esta última expressão a que prefiro, mas tem a desvantagem, é verdade, de ser mais pesada e menos abrangente, porque pode-se pensar em prestadores de serviços que não sejam empresas… Fica prestadores de serviços. A expressão ocorre 75 vezes num texto pequeno de pouco mais de 3000 palavras. E dou-me conta do seguinte: ao escrever prestadores de serviços pela vigésima vez, já a expressão me parece perfeitamente normal. Chegado ao fim da tradução, não encontro nada na expressão que me desagrade. Não tenho a mínima dúvida, aliás: é assim que se diz service providers em português. Mas será mesmo? Se não for, eu deixei de ser capaz de o notar...
Pela milésima vez, tenho de traduzir service providers, às vezes reduzido a providers apenas, e pela milésima vez hesito. Não gosto de nada do que me vem à cabeça. Pela milésima vez, vejo nos dicionários e fóruns de tradução que costumo utilizar. Prestador de serviços é obviamente a opção mais consensual. E não lhe consigo encontrar nada de mal, até porque, relexicalizando as proposições onde a expressão ocorre com verbo em vez de nome, usaria sempre prestar serviços sem hesitar. Mas não gosto. Vejo rapidamente o número de ocorrências em Google, usando -br pt, como opção rápida para diminuir os números de páginas brasileiras (não tenho absolutamente nada contra o português do Brasil, mas não é para português do Brasil que estou a traduzir e não é, portanto, a norma brasileira que procuro). Resultados: “prestadores de serviços”, 3.640.000 ocorrências; “fornecedores de serviços”, 765.000; “provedores de serviços”, 126.000; “empresas de prestação de serviços”, 15.400. No fundo, ainda é esta última expressão a que prefiro, mas tem a desvantagem, é verdade, de ser mais pesada e menos abrangente, porque pode-se pensar em prestadores de serviços que não sejam empresas… Fica prestadores de serviços. A expressão ocorre 75 vezes num texto pequeno de pouco mais de 3000 palavras. E dou-me conta do seguinte: ao escrever prestadores de serviços pela vigésima vez, já a expressão me parece perfeitamente normal. Chegado ao fim da tradução, não encontro nada na expressão que me desagrade. Não tenho a mínima dúvida, aliás: é assim que se diz service providers em português. Mas será mesmo? Se não for, eu deixei de ser capaz de o notar...
A espiritualidade, pois, poesia, elevação...
A espiritualidade, pois, poesia, elevação… Está muito bem. Mas compreender, por exemplo (por exemplo…), o que se passa de facto quando se tosse ou se espirra também me parece meritório… Os clássicos greco-latinos? Pode ser, se houver muito tempo e pouco que fazer. Mas antes, saber a diferença entre um vírus e uma bactéria e como funciona o sistema imunitário, sim?
12/04/10
Esta parte automática de nós, que age sem nos pedir opinião…
Um ideal relativamente comum é o ideal de desprogramação: «Ai, as cassetes com que nos encheram a cabeça!; ai, a maneira como nos programaram para isto e para aquilo!; ah, como seria bom libertarmo-nos de tudo isso, tomar cada coisa pelo que ela é sem projectar sobre ela nenhuma ideia que dela já tenhamos, ver cada árvore como o primeiro homem viu uma árvore pela primeira vez, deitar fora todo o preconceito e todos os automatismos!»
Pois…
De facto, é um ideal que não faz muito sentido, a não ser que se acredite nalguma parte imutável de nós que constitua a nossa real essência (uma alma...); ou então que se adopte uma posição budista radical e o fim último da desprogramação seja sermos… nada – não sermos nada. Pois o que fica senão nada, se tirarmos de nós o que somos (que, metafísica à parte, não pode ser senão a maneira como o que já vinha dentro de nós à partida se foi depois modelando, aqui e ali, com os jeitinhos que o mundo lhe foi dando)?
Desprogramar-se, deitar fora gestos e pensamentos automáticos? Bom, depende de quais, mas há muitos que é melhor cultivar do que deitar fora. Quando se muda de casa, como eu mudei agora, é que se vê: o tempo que a gente perde a fazer o jantar, por falta de automatismos, de pré-conceitos. Temos de pensar tudo de cada vez, como o primeiro homem que viu uma cozinha pela primeira vez. A faca de legumes, onde estará, e onde estão guardadas as cebolas? Perdoem-me agora dividir em dois cada pessoa, e acabar por cair assim no que criticava ali atrás, mas é só uma força de expressão: dá às vezes muito jeito esta parte automática de nós que age sem nos pedir opinião…
Pois…
De facto, é um ideal que não faz muito sentido, a não ser que se acredite nalguma parte imutável de nós que constitua a nossa real essência (uma alma...); ou então que se adopte uma posição budista radical e o fim último da desprogramação seja sermos… nada – não sermos nada. Pois o que fica senão nada, se tirarmos de nós o que somos (que, metafísica à parte, não pode ser senão a maneira como o que já vinha dentro de nós à partida se foi depois modelando, aqui e ali, com os jeitinhos que o mundo lhe foi dando)?
Desprogramar-se, deitar fora gestos e pensamentos automáticos? Bom, depende de quais, mas há muitos que é melhor cultivar do que deitar fora. Quando se muda de casa, como eu mudei agora, é que se vê: o tempo que a gente perde a fazer o jantar, por falta de automatismos, de pré-conceitos. Temos de pensar tudo de cada vez, como o primeiro homem que viu uma cozinha pela primeira vez. A faca de legumes, onde estará, e onde estão guardadas as cebolas? Perdoem-me agora dividir em dois cada pessoa, e acabar por cair assim no que criticava ali atrás, mas é só uma força de expressão: dá às vezes muito jeito esta parte automática de nós que age sem nos pedir opinião…
Um procexo muito complexo: semiarcádica valorização das coisas aparentemente sem muito que se lhes diga
E claro, posso sempre dizer que isto, o só andar por aqui,
quase sempre é perder-se em petitesses,
é o existencial antípoda da poesia,
a rodinha do ludíbrio, a búdica ilusão...
Posso dizer que há que aspirar a mais,
a que seja a vida vida que saiba negar a morte;
que se tire e que se dê, feita graça ou perdição.
Dito assim, soa sublime, ninguém me contrariará.
Mas também não me fica mal deslumbrar-me um bocadinho
com o menos sumptuoso que fica, o tristemente humano,
que é ainda assim – sem poesia, vá, que seja –
um procexo muito complexo…
Também não me fica mal deixar de me barricar
contra o pois-é, contra o a-vida-é-assim:
e, ao banal, fazer-lhe cócegas p’ra começar e depois
ir escarafunchando nele até ficar carne viva.
É mais do que parece, se a gente reparar bem:
o pão p’rà boca, o sexo p’rò sexo e por aí fora
são mais do que só baixeza, que trivialidade vil:
se se arranha e se se escava, é evidente que até
o que se acha comezinho bem vistas as coisas é (ah, uma rima!...)
um procexo muito complexo…
quase sempre é perder-se em petitesses,
é o existencial antípoda da poesia,
a rodinha do ludíbrio, a búdica ilusão...
Posso dizer que há que aspirar a mais,
a que seja a vida vida que saiba negar a morte;
que se tire e que se dê, feita graça ou perdição.
Dito assim, soa sublime, ninguém me contrariará.
Mas também não me fica mal deslumbrar-me um bocadinho
com o menos sumptuoso que fica, o tristemente humano,
que é ainda assim – sem poesia, vá, que seja –
um procexo muito complexo…
Também não me fica mal deixar de me barricar
contra o pois-é, contra o a-vida-é-assim:
e, ao banal, fazer-lhe cócegas p’ra começar e depois
ir escarafunchando nele até ficar carne viva.
É mais do que parece, se a gente reparar bem:
o pão p’rà boca, o sexo p’rò sexo e por aí fora
são mais do que só baixeza, que trivialidade vil:
se se arranha e se se escava, é evidente que até
o que se acha comezinho bem vistas as coisas é (ah, uma rima!...)
um procexo muito complexo…
A cidade e o campo
Assino What’s new, de Robert Park, uma newsletter que, embora tenha o símbolo da Universidade de Maryland, apenas dá conta das opiniões do autor, que, segundo ele, “não são forçosmente partilhadas pela Universidade, mas deviam ser”. O segundo artigo da edição de 9 de Abril de What’s new chama-se “Beyond green: Borlaug’s two contending powers” e fala de um camponês zambiano, Elleman Mumbia, que a BBC tornou famoso (traduzo eu):
Pode-se, claro está, tentar arranjar soluções para travar as migrações maciças para as cidades, mas também se pode pensar (é essa a minha tendência) que não há verdadeira solução, que o êxodo rural é provavelmente uma fase necessária de desenvolvimento – independentemente da taxa de natalidade, do sistema de heranças e inclusive da terra disponível…Será que num país como Moçambique, onde são raras as zonas onde há falta de terra para cultivar, o êxodo rural é menor por causa disso? Uma vez, publiquei aqui na Travessa do Fala-Só uma lista de dúvidas sobre as questões do desenvolvimento e uma dessas dúvidas dizia respeito, precisamente, à possibilidade de desenvolvimento assente na agricultura. Como não sei dizer melhor agora o que disse nessa altura, limito-me a repeti-lo: Não há prova nenhuma de que possa haver algum desenvolvimento alicerçado no sector primário, sobretudo não industrializado – nunca houve, em lado nenhum do mundo… Desenvolvimento significou sempre, onde ele se deu, uma redução enorme da percentagem de pessoas a trabalhar no sector primário, com movimentações enormes de populações do campo para a cidade e com enormes problemas imediatos que depois se foram resolvendo… Pessimismo, dizem vocês? Se calhar, é só realismo.
Segundo Kieron Humphrey, na BBC News, o camponês zambiano Elleman Mumbia rompeu com os costumes locais para praticar agricultura de conservação científica. A sua pequena machamba cresceu. Alguns vizinhos falaram à socapa de feitiçaria, mas Elleman Mumbia tornou-se um herói da imprensa zambiana. A reportagem da BBC acaba aqui, mas há um capítulo mais triste que está a ser escrito. No seu discurso da cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz em 1970, Norman Borlaug disse: «Estamos a lidar com duas forças antagónicas, o poder científico de produção alimentar e o poder biológico da reprodução humana». K.H. von Hoffmann, que chamou a minha atenção para a reportagem da BBC, nota que Elleman Mumbia tem seis filhos (mais ou menos a média na Zâmbia). A machamba é demasiado pequena para ser subdividida. A maior parte dos seus filhos procurarão trabalho na cidade e acabará nos bairros periféricos, como está a acontecer aos jovens em toda a África.É bem real o problema para que Robert Park chama a atenção. Um exemplo que eu conheço bem é o da Bolívia, onde foi feita uma reforma agrária nos anos 50 e onde todos os camponeses receberam uma porção de terra que, na altura, parecia suficiente, mas, passadas duas gerações, já a terra herdada por cada vez mais gente não chegava para ninguém.
Pode-se, claro está, tentar arranjar soluções para travar as migrações maciças para as cidades, mas também se pode pensar (é essa a minha tendência) que não há verdadeira solução, que o êxodo rural é provavelmente uma fase necessária de desenvolvimento – independentemente da taxa de natalidade, do sistema de heranças e inclusive da terra disponível…Será que num país como Moçambique, onde são raras as zonas onde há falta de terra para cultivar, o êxodo rural é menor por causa disso? Uma vez, publiquei aqui na Travessa do Fala-Só uma lista de dúvidas sobre as questões do desenvolvimento e uma dessas dúvidas dizia respeito, precisamente, à possibilidade de desenvolvimento assente na agricultura. Como não sei dizer melhor agora o que disse nessa altura, limito-me a repeti-lo: Não há prova nenhuma de que possa haver algum desenvolvimento alicerçado no sector primário, sobretudo não industrializado – nunca houve, em lado nenhum do mundo… Desenvolvimento significou sempre, onde ele se deu, uma redução enorme da percentagem de pessoas a trabalhar no sector primário, com movimentações enormes de populações do campo para a cidade e com enormes problemas imediatos que depois se foram resolvendo… Pessimismo, dizem vocês? Se calhar, é só realismo.
Desistência: De agrupar e engrupir
Pensei em fazer no Facebook um grupo chamado “Eu cá não papo grupos, pá!”, um manifesto de ana(r)corético individualismo [eu escrevi ana(r)corético?] na época das redes sociais digitais, ó ais. E convidava depois todos os amigos para o meu grupo, avisando-os à partida de que todos os pedidos de adesão seriam sistematicamente recusados, porque o tal grupo era só para mim!
Naturalmente, tive o cuidado de verificar se já havia algum grupo assim, de óbvia (banal até…) que a ideia era. E constatei então que todos os grupos que há baseados na mesma ideia têm vários membros, pelo que são, pois então, uma viva contradição… Naturalmente, desisti da ideia. Ou antes, não: transformei-a num post de blogue.
Naturalmente, tive o cuidado de verificar se já havia algum grupo assim, de óbvia (banal até…) que a ideia era. E constatei então que todos os grupos que há baseados na mesma ideia têm vários membros, pelo que são, pois então, uma viva contradição… Naturalmente, desisti da ideia. Ou antes, não: transformei-a num post de blogue.