[Publicado no dia em que Dory Previn faz 86 anos… ou 82? Sejam lá quantos forem, muitos parabéns!]
Dory Previn (Langdon antes de se ter casado com André Previn) é uma pessoa com uma vida no mínimo curiosa e tem sido afirmado muitas vezes que uma das suas características mais marcantes é expor-se completamente nas suas canções. Não só os factos da sua vida, mas também recantos mais obscuros da sua psique, tudo ela revela sem rodeios nas canções. Catarse, disse alguém. É verdade que, conhecendo um pouco da vida de Dory Previn, não podemos deixar de constatar que é a autora de carne e osso a protagonista de muitas das suas canções e de nos surpreender com a revelação de intimidades que não é muito comum tornar públicas em canções. Estou a falar, por exemplo, da relação doentia com um pai mentalmente perturbado (“amor de pai e demónios emaranhados na mente”) que descreve em várias canções [Com o meu pai no sótão / É aí que está a minha negra atração / Com a loucura em cima da mesinha de cabeceira / Ao lado da arma carregada / Na aterrorizadora proximidade do seu olhar (“With My Daddy in the Attic”)]; da sua crise conjugal quando o marido se apaixonou por Mia Farrow, com quem veio a casar [Cuidado com raparigas novas / Que te aparecem à porta / Melancólicas e pálidas / Com vinte e quatro anos / E te oferecem margaridas / Com mãos delicadas // Cuidado com essas meninas / Muitas vezes anseiam / Chorar num casamento / E dançar num enterro (“Beware of Young Girls”)]; dos problemas que a levaram a dois internamentos em hospitais psiquiátricos [Os meus botões azuis / Estão a ficar soltos / Soltos / Frouxos / Lucy Brown / A Lucy no céu / Luce / Luzente / Lúcida / Lucidez / Lúcifer / Luz / Enforquem a Luce / Mantém-te calma / Eu / Como é que eu fiquei assim / Eu ia / O que é que eu ia dizer? / Eu ia a / Como vim aqui parar? / Eu ia a caminho / Não estive aqui no ano passado? / Eu ia a caminho de / Porque me fecharam aqui? / Eu ia a caminho de onde? (“Mr. Whisper”)].
Este confessionalismo pode ser encarado tanto positivamente (prova de grande coragem) como negativamente (despudor, uma obsessão doentia consigo própria), mas, independentemente desses julgamentos, podemos perguntar-nos simplesmente se tem algum interesse como processo de criação artística. O que eu acho é que não é por ser autobiográfica como tal que uma obra de arte tem interesse, a não ser, precisamente, para quem se interesse pela vida do seu autor; mas que, se essa exposição de si próprio for um meio (como o é, no caso das canções de Dory Previn) de criar uma grande intensidade emocional, é bem vinda – e a obra de arte interessará também a quem não se interesse pela vida do autor.
22/10/11
04/10/11
Citius, altius, fortius
Correr é fixe. Tinha um amigo que dizia sempre que uma corrida é a melhor maneira de começar um dia e acho que tem razão. Bom, a questão da saúde é o único senão: às vezes, correr não é muito indicado para certas pessoas, e, no meu caso, por exemplo, não tenho ideia se me faz bem ou mal. Mas faz sentir‑me bem, o que já não está mal. E não é só a mim. Há até quem diga que correr é como uma droga, mas eu, pelo menos, nunca me viciei em corrida. Gosto só de correr.
Gosto de correr, mas nunca podia ter sido corredor. É verdade que comecei a correr já velho, com mais de quarenta anos, mas, mesmo assim… Corro seis quilómetros a cerca de metade da velocidade a que os maratonistas correm os 42 km e 195 m da maratona… Acho que, para ser corredor a sério, uma pessoa tem de nascer já corredor. E conto-vos duas histórias, famosas e divertidas, a apoiar a minha teoria:
Nos Jogos olímpicos de Londres, em 1948, Emil Zátopek tinha ganho a medalha de ouro dos 5 mil metros e a de prata dos 10 mil metros. Quatro anos depois, nas Olimpíadas de Helsínquia, fez ainda melhor. Depois de já ter ganho os 5 mil e os 10 mil, Zátopek decidiu inscrever‑se na maratona, uma prova que nunca tinha corrido. Precisamente por não conhecer a prova, achou por bem manter‑se junto do favorito, o inglês Jim Peters. Peters começou a prova a boa velocidade. Depois de seguir ao lado de Peters durante os primeiros quinze quilómetros, Zatopek perguntou‑lhe, em inglês:
«O ritmo, Jim, o ritmo está bom assim?»
«Está muito lento, Emil!», respondeu Peters, e deu um esticão.
Zatopek não só o acompanhou como acabou por deixá‑lo para trás, acabando a corrida com menos dois minutos e meio que Peters e um novo record mundial!
Outra história boa, melhor ainda que a de Zátopek e que prova mesmo que existe o dom inato para correr, é a do cubano Andarín Carvajal nos Jogos Olímpicos de St. Louis em 1904:
Félix Carvajal era carteiro de Havana e tinha a paixão do atletismo. Sobretudo, da maratona. Treinava sozinho, pelas ruas de Havana e estava decidido a participar na próxima maratona olímpica, fosse lá como fosse. Quando chegou a altura das Olimpíadas, juntou as economias que tinha e lá foi ele. O dinheiro não chegou para a viagem toda e teve de fazer cerca de 1000 km a pé. Mas chegou a tempo. Um bocado antes de começar a maratona (que, como se sabe, é a última prova dos Jogos), Carvajal apresentou‑se ao juiz da prova e disse que queria participar.
«Mas você está inscrito?»
Que não, não estava, mas que se inscrevia agora, não havia problema.
«Ó senhor, eu vim de tão longe, gastei o meu dinheiro todo, fartei-me de andar a pé para aqui chegar, não me faça agora esta desfeita de não me deixar correr!»
E o juiz teve mesmo pena dele: pronto, estava bem, que corresse. Mas ia correr assim, como estava vestido?
«Não tenho outra roupa, ó senhor...»
O juiz mandou trazerem‑lhe uma tesoura e cortou ele mesmo as calças de Carvajal, para ele ir, ao menos, de calções. E assim foi, de calças cortadas à tesoura, de camisa e... de botas!
Durante os vinte primeiros quilómetros da prova, Carvajal manteve‑se em primeiro lugar, apesar de ter saído algumas vezes da estrada para apanhar maçãs – não tinha equipa de assistência e estava cheiínho de sede. A partir do vigésimo quilómetro, começaram os problemas: o Carvajal voltou a ter de sair várias vezes da estrada, só que, em vez de apanhar maçãs, ia agora desfazer‑se delas – as maçãs verdes tinham‑lhe dado a volta ao estômago e o pobre Carvajal, por causa das interrupções a que a diarreia o forçou, não conseguiu mais que um quarto lugar.
Digo isto porque sempre gostei muito de atletismo e vi muitas vezes na televisão, com muita atenção, campeonatos europeus, campeonatos mundiais, jogos olímpicos e outras provas avulsas, e sempre vi os bons corredores passarem as corridas todas extremamente concentrados no que se estava a passar à volta deles – jogadas estratégicas, sinais de cansaço, oportunidades casuais, tudo. O que eu digo de mim é que, mesmo que tivesse um físico são e adequado, e tivesse começado a treinar desde miúdo, essa capacidade de concentração nunca a havia de ter e nunca poderia, por isso, ser bom corredor. Quando corro, faço antes ao contrário: para a corrida me correr bem (sic!), não posso pensar que estou a correr, porque senão sinto-me cansado demais (pelo menos até começar a tal pedrada de endorfina) e só quero parar. E então perco-me em devaneios, que normalmente passo para o papel quando chego a casa. Alguns deram contos, outros pequenos textos de reflexão. Um desses devaneios, de que vos dou conta agora a seguir é sobre o fascínio especial (eu diria mesmo o aspeto místico, se não fosse o medo de levar roda de comentador desportivo...) que o atletismo tem:
O que é normal nos bichos é ver se arranjam comida e água, amor, calor ou fresco e pouco mais, e, direta ou indiretamente, mexerem‑se apenas para satisfazer essas necessidades baixamente vitais... O desporto, na sua essência, é como, por exemplo, o jejum e a castidade: é uma afirmação da diferença da nossa espécie, uma assunção extrema da nossa humanidade, uma tentativa de a purificar da animalidade que ela tem lá dentro, e é provavelmente por isso que o desporto é fascinante, como o são o jejum e a castidade...
Agora, se todo o desporto é fascinante, o atletismo é o que a mim mais me fascina. Porquê?
Bom, não é por ser um desporto muito democrático, embora essa seja também uma das suas virtudes: a corrida e o salto são dos desportos mais igualitários que existem, provavelmente porque requerem pouco ou nenhum equipamento para uma pessoa começar a dar provas do seu valor[1]. E também não é por ser um desporto básico, simples, primordial – essencial, diria eu –, embora essa seja outra das suas virtudes. Acho que é fundamentalmente por ser um desporto em que se batem recordes[2]. Eu explico:
Todos os desportos têm uma componente de luta contra os limites que o corpo de cada atleta lhe impõe: é necessário aguentar, não se ir abaixo, fazer melhor, superar‑se. E quase todos os desportos (já que os desportos solitários, não competitivos, são raros) têm também uma componente de luta contra um adversário: é preciso ganhar. O que é interessante nos desportos em que se batem recordes, que são poucos, é uma terceira componente de luta contra a humanidade inteira: há que ser a/o mais rápida/o, mais forte, mais ligeira/o – de todas/os, desde sempre... É isto que o atletismo tem mais que os outros desportos.
_______________
[1] Se é verdade que Zátopek era coronel do exército, já Haile Gebrselassie é um camponês que se tornou o que é à força de correr 20 km todos os dias para ir à escola... Já agora: talvez não saibam que, por ter apoiado a chamada Primavera de Praga do Dubček, Zatopek foi expulso do Partido e despromovido…
[2] A natação também, porque é, na essência, uma forma de atletismo – na água.
Gosto de correr, mas nunca podia ter sido corredor. É verdade que comecei a correr já velho, com mais de quarenta anos, mas, mesmo assim… Corro seis quilómetros a cerca de metade da velocidade a que os maratonistas correm os 42 km e 195 m da maratona… Acho que, para ser corredor a sério, uma pessoa tem de nascer já corredor. E conto-vos duas histórias, famosas e divertidas, a apoiar a minha teoria:
Nos Jogos olímpicos de Londres, em 1948, Emil Zátopek tinha ganho a medalha de ouro dos 5 mil metros e a de prata dos 10 mil metros. Quatro anos depois, nas Olimpíadas de Helsínquia, fez ainda melhor. Depois de já ter ganho os 5 mil e os 10 mil, Zátopek decidiu inscrever‑se na maratona, uma prova que nunca tinha corrido. Precisamente por não conhecer a prova, achou por bem manter‑se junto do favorito, o inglês Jim Peters. Peters começou a prova a boa velocidade. Depois de seguir ao lado de Peters durante os primeiros quinze quilómetros, Zatopek perguntou‑lhe, em inglês:
«O ritmo, Jim, o ritmo está bom assim?»
«Está muito lento, Emil!», respondeu Peters, e deu um esticão.
Zatopek não só o acompanhou como acabou por deixá‑lo para trás, acabando a corrida com menos dois minutos e meio que Peters e um novo record mundial!
Outra história boa, melhor ainda que a de Zátopek e que prova mesmo que existe o dom inato para correr, é a do cubano Andarín Carvajal nos Jogos Olímpicos de St. Louis em 1904:
Félix Carvajal era carteiro de Havana e tinha a paixão do atletismo. Sobretudo, da maratona. Treinava sozinho, pelas ruas de Havana e estava decidido a participar na próxima maratona olímpica, fosse lá como fosse. Quando chegou a altura das Olimpíadas, juntou as economias que tinha e lá foi ele. O dinheiro não chegou para a viagem toda e teve de fazer cerca de 1000 km a pé. Mas chegou a tempo. Um bocado antes de começar a maratona (que, como se sabe, é a última prova dos Jogos), Carvajal apresentou‑se ao juiz da prova e disse que queria participar.
«Mas você está inscrito?»
Que não, não estava, mas que se inscrevia agora, não havia problema.
«Ó senhor, eu vim de tão longe, gastei o meu dinheiro todo, fartei-me de andar a pé para aqui chegar, não me faça agora esta desfeita de não me deixar correr!»
E o juiz teve mesmo pena dele: pronto, estava bem, que corresse. Mas ia correr assim, como estava vestido?
«Não tenho outra roupa, ó senhor...»
O juiz mandou trazerem‑lhe uma tesoura e cortou ele mesmo as calças de Carvajal, para ele ir, ao menos, de calções. E assim foi, de calças cortadas à tesoura, de camisa e... de botas!
Durante os vinte primeiros quilómetros da prova, Carvajal manteve‑se em primeiro lugar, apesar de ter saído algumas vezes da estrada para apanhar maçãs – não tinha equipa de assistência e estava cheiínho de sede. A partir do vigésimo quilómetro, começaram os problemas: o Carvajal voltou a ter de sair várias vezes da estrada, só que, em vez de apanhar maçãs, ia agora desfazer‑se delas – as maçãs verdes tinham‑lhe dado a volta ao estômago e o pobre Carvajal, por causa das interrupções a que a diarreia o forçou, não conseguiu mais que um quarto lugar.
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Para além de condições físicas que não sei quais são mas que imagino que sejam necessárias a um bom corredor (aliás, devem ser diferentes conforme o tipo de provas que corre), tenho a certeza que é também fundamental uma enorme capacidade de abnegação e resistência, e, sobretudo, uma enorme capacidade de concentração.Digo isto porque sempre gostei muito de atletismo e vi muitas vezes na televisão, com muita atenção, campeonatos europeus, campeonatos mundiais, jogos olímpicos e outras provas avulsas, e sempre vi os bons corredores passarem as corridas todas extremamente concentrados no que se estava a passar à volta deles – jogadas estratégicas, sinais de cansaço, oportunidades casuais, tudo. O que eu digo de mim é que, mesmo que tivesse um físico são e adequado, e tivesse começado a treinar desde miúdo, essa capacidade de concentração nunca a havia de ter e nunca poderia, por isso, ser bom corredor. Quando corro, faço antes ao contrário: para a corrida me correr bem (sic!), não posso pensar que estou a correr, porque senão sinto-me cansado demais (pelo menos até começar a tal pedrada de endorfina) e só quero parar. E então perco-me em devaneios, que normalmente passo para o papel quando chego a casa. Alguns deram contos, outros pequenos textos de reflexão. Um desses devaneios, de que vos dou conta agora a seguir é sobre o fascínio especial (eu diria mesmo o aspeto místico, se não fosse o medo de levar roda de comentador desportivo...) que o atletismo tem:
O que é normal nos bichos é ver se arranjam comida e água, amor, calor ou fresco e pouco mais, e, direta ou indiretamente, mexerem‑se apenas para satisfazer essas necessidades baixamente vitais... O desporto, na sua essência, é como, por exemplo, o jejum e a castidade: é uma afirmação da diferença da nossa espécie, uma assunção extrema da nossa humanidade, uma tentativa de a purificar da animalidade que ela tem lá dentro, e é provavelmente por isso que o desporto é fascinante, como o são o jejum e a castidade...
Agora, se todo o desporto é fascinante, o atletismo é o que a mim mais me fascina. Porquê?
Bom, não é por ser um desporto muito democrático, embora essa seja também uma das suas virtudes: a corrida e o salto são dos desportos mais igualitários que existem, provavelmente porque requerem pouco ou nenhum equipamento para uma pessoa começar a dar provas do seu valor[1]. E também não é por ser um desporto básico, simples, primordial – essencial, diria eu –, embora essa seja outra das suas virtudes. Acho que é fundamentalmente por ser um desporto em que se batem recordes[2]. Eu explico:
Todos os desportos têm uma componente de luta contra os limites que o corpo de cada atleta lhe impõe: é necessário aguentar, não se ir abaixo, fazer melhor, superar‑se. E quase todos os desportos (já que os desportos solitários, não competitivos, são raros) têm também uma componente de luta contra um adversário: é preciso ganhar. O que é interessante nos desportos em que se batem recordes, que são poucos, é uma terceira componente de luta contra a humanidade inteira: há que ser a/o mais rápida/o, mais forte, mais ligeira/o – de todas/os, desde sempre... É isto que o atletismo tem mais que os outros desportos.
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Agora, quem é que não deu consigo já a pensar, fascinado, na questão dos limites das capacidades físicas humanas? Quem não se perguntou já onde chegarão os limites do corpo desapetrechado ou que sofisticação técnica nas medições ou outros estratagemas se hão de ainda inventar para que se possa correr, saltar, ser citius, altius, fortius? Se há algum possível significado para a expressão “fim da História”, só pode ser o tempo em que já não se batam recordes de velocidade, arremesso e salto…_______________
[1] Se é verdade que Zátopek era coronel do exército, já Haile Gebrselassie é um camponês que se tornou o que é à força de correr 20 km todos os dias para ir à escola... Já agora: talvez não saibam que, por ter apoiado a chamada Primavera de Praga do Dubček, Zatopek foi expulso do Partido e despromovido…
[2] A natação também, porque é, na essência, uma forma de atletismo – na água.