Não sei se vos
acontece o mesmo, mas sugerem-me muitas vezes (ou querem vender-me…) esquemas para aumentar o tráfego nos meus sites, que é
como quem diz o número de visitas a este blogue e ao meu glossário de moçambicanismos.
Foi coisa que nunca me interessou. Se eu aqui vendesse alguma coisa de jeito,
talvez valesse a pena, mas eu aqui só vendo a banha da cobra das minhas
solitárias congeminações, que deixa pouco e que duvido que valha a pena
publicitar… Seja como for, hoje em dia, se se quiser aumentar o tráfego de um
site qualquer, há uma maneira mais fácil, mais rápida e mais eficiente que tudo
o que nos queiram aconselhar ou vender: é pôr lá um artigo sobre o Acordo
Ortográfico…
14/03/14
06/03/14
Mais um texto sobre a reforma ortográfica
Tenho dito que não sou especialmente a favor no Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), nem especialmente contra, mas, na prática, tenho-me revelado a favor, sobretudo porque me tenho sentido na obrigação de criticar, por incoerentes ou infundados, alguns argumentos dos seus detratores[1]. Eis um resumo das críticas que tenho encontrado e do que penso delas.
A alteração mais criticada no AO90 é o desaparecimento das letras etimológicas não pronunciadas, a maior parte das vezes referidas como “consoantes mudas”. Costumam misturar-se, nesta crítica, que é na maior parte das vezes apenas afetiva, argumentos que se contradizem uns ao outros. Assim, invoca-se muitas vezes o argumento de que é precisa, na grafia, uma marca da “abertura” das vogais átonas. Diz-se, por exemplo, que sem o p de concepção, conceção se lê forçosamente como concessão, isto é, com o e “fechado” ou “mudo”. Nunca vi esta preocupação relativamente à norma anterior, em que havia já várias palavras, algumas do vocabulário fundamental, em que não se marcava graficamente a abertura da vogal átona. Custa-me a perceber por que é que, se isso nunca foi problema antes, passou agora a ser problema. Nunca ninguém achou que se devesse escrever de outra maneira esquecer nem aquecer, porque é que projetar ou afetar se tornaram de repente problemáticos? É estranho. Um dos cavalos de batalha dos antiacordistas é o exemplo de espetadores em vez de espectadores, que muitos acham ridículo, senão revoltante, mas nunca vi ninguém indignar-se, pelas mesmas razões, perante pregadores. É estranho.
Uma objeção válida a esta alteração é que aumenta o número de vogais átonas abertas não assinaladas na escrita: antes do AO90, algumas vogais átonas abertas tinham uma marca dessa abertura, agora nenhuma a tem. É certo. E pode ser uma solução manterem-se as “consoantes mudas” que “abrem” vogais, mas isso não resolve o caso das vogais átonas “abertas” que já não tinham consoante a marcar a abertura. Conservar as “consoantes mudas” preserva, assim, uma incoerência que a nova grafia elimina. Uma solução óbvia para eliminar esta incoerência é recuperar e alargar o uso do acento grave como marca de abertura das vogais átonas abertas, mas uma proposta deste tipo seria, seguramente, muito mal recebida por toda a gente[2]…
Há também quem vá ao ponto de defender que, mesmo nas sílabas tónicas, as “consoantes mudas” não devem desaparecer porque são uma marca tímbrica – por exemplo, que, sem c, projeto ou inseto se leem “naturalmente” projêto ou insêto, porque essa é a pronúncia “predominante” do -eto em final de palavra. Não só não é verdade (já falei disso aqui), como nunca vi preocupações, nem dessas pessoas nem de nenhumas outras, com as pronúncias “predominantes” de, sei lá, -edo ou -elo, por exemplo. É estranho. No caso de -edo final (que é diferente dos de -eto e de -elo finais), não há dúvida que, na grande maioria das palavras onde ocorre, esta sequência final se pronuncia -êdo. Dever-se-ia então marcar a abertura em credo, vedo, arredo, etc? Com quê? E por aí fora…
Evidentemente, prende-se com esta questão uma outra: a da influência da escrita sobre a pronúncia. Alguns detratores do AO90 defendem que, sem as marcas de abertura das vogais, as palavras passarão a ser mal pronunciadas, mas nunca explicam por que não aconteceu isso às palavras que sempre tiveram e continuam a ter átonas abertas sem essas marcas. Se alguém usasse o argumento sensato (nunca ninguém o fez em discussões comigo) de que, por muito que isso não se aplicasse a palavras que se ouvem frequentemente, podia aplicar-se a palavras que quase nunca se ouvem e que, por isso, se aprendem sobretudo através da escrita, eu poderia aceitar – mas isso reduz o problema a meia dúzia de palavras. Ainda assim, é muitíssimo duvidoso que essa influência se possa dar: por exemplo, nunca ouvi palavras menos comuns como colação ou ilação pronunciadas com aa fechados. A explicação é que as poucas pessoas que usam as palavras menos vulgares ouvem-nas pronunciadas por outras poucas pessoas que as usam; e só mesmo as palavras estrangeiras é que podem, às vezes, ser conhecidas por escrito sem nunca serem ouvidas. Quero, a propósito, acrescentar que não conheço trabalhos sobre este fenómeno e ficaria grato a quem me indicasse algum. O único exemplo que vi apresentarem sobre influência da escrita na pronúncia são os verbos em -scer, como nascer ou crescer, mas, sem mais provas ou bons argumentos, acho extremamente duvidosa essa tese. A sequência -sce- tem um história seguramente complicada, que pode bem ter levado a um apagamento do s em várias zonas do país (esse apagamento persiste nalgumas zonas, aliás), mas é duvidoso que a difusão de um eventual reavivar do s, se se pode dizer assim, se tenha feito por influência da escrita em sentido estrito.
A grafia tem efetivamente influência na pronúncia, mas não das línguas maternas: das línguas segundas e das línguas estrangeiras. Nesse sentido, é uma bênção desaparecerem consoantes não pronunciadas para quem tem de ensinar ou aprender o português como língua segunda ou estrangeira. Mas é esse o único problema que a nova escrita resolve. Para contribuir para resolver outros problemas de pronúncia, a escrita deveria ter um caráter eminentemente fonético e não tem (nem acho que deva ter), de maneira que, como não têm interiorizadas as regras fonético-fonológicas do português, os falantes do português como língua segunda ou estrangeira continuarão a pronunciar mal muitas outras coisas. Os oo que deviam ser /u/, por exemplo, etc., etc. ...
Também há quem critique o caráter demasiadamente “fonético” do AO90 (às vezes, as mesmas pessoas que defendem a necessidade de uma marca de abertura das vogais átonas, por contraditório que isso seja), dizendo que não se pode deitar fora a História da língua ou até que algumas palavras do português passam, assim, a ter uma escrita diferente das palavras com o mesmo étimo noutras línguas. Mas não explicam que critérios se devem seguir na decisão de que letras etimológicas manter. Curiosamente, nunca vi ninguém defender, nem antes do AO nem depois, producto, fructo, escripto ou dictado (já nem falo de th, ph e y, e duplos pp, mm, nn, tt, ff, etc.). Nem sequer do nome contracto… Enfim. Além disso, as seleções de palavras internacionais e das línguas em que elas são comparadas nunca é imparcial. E o italiano não entra nunca, porque estas consoantes não existem em italiano (e noutras línguas românicas menos conhecidas). E elas não existem em italiano pela mesma razão que o AO90 as elimina: deixaram de se pronunciar.
Às vezes, critica-se também o desaparecimento das marcas de timbre do antigo pára, terceira pessoa do singular do presente do indicativo de parar, que se tornou homógrafa da preposição para. É certo que o desaparecimento do acento faz confusão a quem a ele está habituado (para mim, foi muito difícil deixar de o usar), mas há que reconhecer que faz pouco sentido ter uma marca tímbrica deste tipo quando desapareceram todas as outras. O hábito, pois, o malvado hábito… Mas uma pessoa habituada a não usar o acento nunca sentirá falta dele. Parecem-nos estranhas sequências como “para para pensar”, mas, convenhamos, não é uma sequência comum por aí além, além de que, com alguma boa vontade, encontramos sequências do mesmo tipo com outras expressões que perderam as marcas tímbricas: eu, por exemplo, tenho um filho que se pela pela bola[3]…
E guardei para o fim o que mais estranho: a identificação de língua com ortografia. Dizem que não se pode decretar mudanças na língua ou que o acordo prejudica a língua, que defender a antiga ortografia é defender a língua, eu sei lá. Mas a língua e a ortografia não são a mesma coisa, longe disso. A língua é um sistema complexo de relações entre sinais e noções de vários tipos que temos na cabeça, que não interiorizamos pela escrita e que ninguém comanda. A escrita é uma convenção, que se pode alterar como e quando quisermos, sem que isso afete a língua. Durante muito tempo, houve muitas línguas que não se escreviam, para as quais não estava fixada uma transcrição, e não eram, por isso, menos línguas que as outras. Há línguas que se podem escrever com mais que um alfabeto e, às vezes, com alfabetos e sistemas de escritas não alfabéticos. Discutir ortografia deveria ser discutir a lógica de um sistema, reduzido e controlado, de transcrição de outro sistema muito mais complexo e muitíssimo mais vasto, a língua. É claro, pode chamar-se à discussão a tradição e o mais que se achar que se deve, mas propor uma reforma ortográfica não é, mas nem de longe nem de perto, propor seja lá que alteração for na língua. Nem que se passasse a escrever com alfabeto khmer a língua era afetada. Custa-me perceber por que custa perceber isto…
No resto, ninguém está mesmo interessado. Não que não haja mais coisas a discutir, mas ninguém está interessado em discutir hífenes e tremas, prefixação e sufixação, aglutinação e justaposição (se calhar, ainda faço eu um textozito sobre isso, um dia destes.), até porque muitas pessoas não conhecem nem as antigas nem as novas regras e escrevem como lhes apetece as palavras compostas…
A conclusão do que tenho visto é a seguinte: há poucas pessoas interessadas em discutir o AO90. Parece-me impossível, aliás, que alguém que queira mesmo refletir sobre a ortografia do português e discuti-la possa estar completamente de acordo com a norma anterior ou com a nova[4]. A maior parte dos críticos explica, de forma normalmente atabalhoada, quando não contraditória, porque não gosta (é o termo) do desaparecimento das “consoantes mudas” e pronto. Quando se argumenta a favor desse desaparecimento, os antiacordistas acabam por responder muitas vezes (muitas vezes…), que sim, pode ser incoerente, mas querem continuar a escrever como aprenderam, não estão para alterar um hábito velho. Convenhamos que, por compreensível que seja a atitude, é uma argumentação um pouco fraca, para não dizer que não chega a ser argumentação. Alguns vão ao ponto de chamar à conversa Camões ou Pessoa, por exemplo, para defender uma ortografia que o primeiro nunca conheceu, obviamente, e que o último recusava...
O processo foi pouco transparente e não incluiu um número suficiente de instituições? Não há necessidade da reforma? A maior unificação da ortografia não chega para unificar as diversas variantes do português? Tudo isto se pode e deve discutir, mas nada disto tem relação com as questões ortográficas concretas que se discutem. É claro, pode sempre recusar-se qualquer reforma e até pode optar-se por uma grafia ilógica e complicada, como a do francês ou do inglês, sem que daí venha mal maior ao mundo. Mas não foi isso que se fez em 1911 e a questão para mim é que quem aceita a grande reforma de 1911, que foi incompleta, deveria querer levar o seu espírito até ao fim – independentemente de como isso unifica ou não a escrita nos países de língua portuguesa. Alguns pontos do AO90 são um avanço nesse sentido.
________________
[1] E já não falo daqueles que se limitam a espalhar informação falsa, dizendo que o c de facto desapareceu ou que desapareceram os acentos nas palavras esdrúxulas. A esses, que não conhecem o AO90, só se pode dizer: leia o acordo antes de o criticar, sim? Não acredito que seja por má fé que espalham essa falsa informação, mas não é de modo algum aceitável que se critique o que não se conhece, muito menos o que não está no que se desconhece…
[2] A grafia portuguesa – e a grafia do português em geral – é uma grafia fonológica e não fonética, isto é, uma grafia que dá conta do sistema e não de como as palavras são realmente pronunciadas. Para dar um exemplo simples e de forma simplificada, comer escreve-se com o e não com u, porque é um o que existe no sistema, como se pode verificar em como ou comes. Em Portugal, existe uma regra fonética que funciona na cabeça de todos os falantes que diz que a língua se eleva e recua de cada vez que um /o/ não é acentuado, passando esse /o/ a pronunciar-se [u]. No Brasil, esta regra só se aplica ao /o/ que está depois da sílaba tónica, pelo que o o de comer tem uma pronúncia diferente: [o]. Mas, como o elemento do sistema é o mesmo, pode escrever-se igual no Brasil e em Portugal. O espírito da reforma ortográfica de 1911 foi passar de uma lógica essencialmente etimológica a uma lógica essencialmente fonológica, mas ninguém advoga uma ortografia fonética, que separaria completamente o português do Brasil do português europeu (a norma da pronúncia africana é instável, mas a norma usada na comunicação social é ainda semelhante à norma europeia). Agora, é discutível até que ponto a oposição entre as vogais átonas abertas e as suas correspondentes fechadas tem caráter fonológico, mas é uma discussão complicada, que deixo aqui de lado.
[3] Pois, eu sei: não quis exagerar, e pela é mesmo uma maneira rara de dizer bola, mas pensei o mesmo que vocês pensaram agora: «Mais giro ainda era “tenho um filho que se pela pela pela”!».
[4] Também não é, de modo algum, necessário estar completamente de acordo nem com a antiga grafia nem com a reforma para escrever português segundo a norma. Sempre houve e continua a haver coisas que não acho que se deviam escrever como as escrevo, mas escrevo-as assim porque é essa a norma. Evidentemente, depende do contexto. Há tipos de texto em que cada um é livre de escrever exatamente como lhe apetecer. Em última análise, cada um é sempre livre de escrever como lhe apetecer, mas tem de se sujeitar a que, em certos textos, lhe sejam corrigidas certas formas para as harmonizar com a norma vigente.
A alteração mais criticada no AO90 é o desaparecimento das letras etimológicas não pronunciadas, a maior parte das vezes referidas como “consoantes mudas”. Costumam misturar-se, nesta crítica, que é na maior parte das vezes apenas afetiva, argumentos que se contradizem uns ao outros. Assim, invoca-se muitas vezes o argumento de que é precisa, na grafia, uma marca da “abertura” das vogais átonas. Diz-se, por exemplo, que sem o p de concepção, conceção se lê forçosamente como concessão, isto é, com o e “fechado” ou “mudo”. Nunca vi esta preocupação relativamente à norma anterior, em que havia já várias palavras, algumas do vocabulário fundamental, em que não se marcava graficamente a abertura da vogal átona. Custa-me a perceber por que é que, se isso nunca foi problema antes, passou agora a ser problema. Nunca ninguém achou que se devesse escrever de outra maneira esquecer nem aquecer, porque é que projetar ou afetar se tornaram de repente problemáticos? É estranho. Um dos cavalos de batalha dos antiacordistas é o exemplo de espetadores em vez de espectadores, que muitos acham ridículo, senão revoltante, mas nunca vi ninguém indignar-se, pelas mesmas razões, perante pregadores. É estranho.
Uma objeção válida a esta alteração é que aumenta o número de vogais átonas abertas não assinaladas na escrita: antes do AO90, algumas vogais átonas abertas tinham uma marca dessa abertura, agora nenhuma a tem. É certo. E pode ser uma solução manterem-se as “consoantes mudas” que “abrem” vogais, mas isso não resolve o caso das vogais átonas “abertas” que já não tinham consoante a marcar a abertura. Conservar as “consoantes mudas” preserva, assim, uma incoerência que a nova grafia elimina. Uma solução óbvia para eliminar esta incoerência é recuperar e alargar o uso do acento grave como marca de abertura das vogais átonas abertas, mas uma proposta deste tipo seria, seguramente, muito mal recebida por toda a gente[2]…
Há também quem vá ao ponto de defender que, mesmo nas sílabas tónicas, as “consoantes mudas” não devem desaparecer porque são uma marca tímbrica – por exemplo, que, sem c, projeto ou inseto se leem “naturalmente” projêto ou insêto, porque essa é a pronúncia “predominante” do -eto em final de palavra. Não só não é verdade (já falei disso aqui), como nunca vi preocupações, nem dessas pessoas nem de nenhumas outras, com as pronúncias “predominantes” de, sei lá, -edo ou -elo, por exemplo. É estranho. No caso de -edo final (que é diferente dos de -eto e de -elo finais), não há dúvida que, na grande maioria das palavras onde ocorre, esta sequência final se pronuncia -êdo. Dever-se-ia então marcar a abertura em credo, vedo, arredo, etc? Com quê? E por aí fora…
Evidentemente, prende-se com esta questão uma outra: a da influência da escrita sobre a pronúncia. Alguns detratores do AO90 defendem que, sem as marcas de abertura das vogais, as palavras passarão a ser mal pronunciadas, mas nunca explicam por que não aconteceu isso às palavras que sempre tiveram e continuam a ter átonas abertas sem essas marcas. Se alguém usasse o argumento sensato (nunca ninguém o fez em discussões comigo) de que, por muito que isso não se aplicasse a palavras que se ouvem frequentemente, podia aplicar-se a palavras que quase nunca se ouvem e que, por isso, se aprendem sobretudo através da escrita, eu poderia aceitar – mas isso reduz o problema a meia dúzia de palavras. Ainda assim, é muitíssimo duvidoso que essa influência se possa dar: por exemplo, nunca ouvi palavras menos comuns como colação ou ilação pronunciadas com aa fechados. A explicação é que as poucas pessoas que usam as palavras menos vulgares ouvem-nas pronunciadas por outras poucas pessoas que as usam; e só mesmo as palavras estrangeiras é que podem, às vezes, ser conhecidas por escrito sem nunca serem ouvidas. Quero, a propósito, acrescentar que não conheço trabalhos sobre este fenómeno e ficaria grato a quem me indicasse algum. O único exemplo que vi apresentarem sobre influência da escrita na pronúncia são os verbos em -scer, como nascer ou crescer, mas, sem mais provas ou bons argumentos, acho extremamente duvidosa essa tese. A sequência -sce- tem um história seguramente complicada, que pode bem ter levado a um apagamento do s em várias zonas do país (esse apagamento persiste nalgumas zonas, aliás), mas é duvidoso que a difusão de um eventual reavivar do s, se se pode dizer assim, se tenha feito por influência da escrita em sentido estrito.
A grafia tem efetivamente influência na pronúncia, mas não das línguas maternas: das línguas segundas e das línguas estrangeiras. Nesse sentido, é uma bênção desaparecerem consoantes não pronunciadas para quem tem de ensinar ou aprender o português como língua segunda ou estrangeira. Mas é esse o único problema que a nova escrita resolve. Para contribuir para resolver outros problemas de pronúncia, a escrita deveria ter um caráter eminentemente fonético e não tem (nem acho que deva ter), de maneira que, como não têm interiorizadas as regras fonético-fonológicas do português, os falantes do português como língua segunda ou estrangeira continuarão a pronunciar mal muitas outras coisas. Os oo que deviam ser /u/, por exemplo, etc., etc. ...
Também há quem critique o caráter demasiadamente “fonético” do AO90 (às vezes, as mesmas pessoas que defendem a necessidade de uma marca de abertura das vogais átonas, por contraditório que isso seja), dizendo que não se pode deitar fora a História da língua ou até que algumas palavras do português passam, assim, a ter uma escrita diferente das palavras com o mesmo étimo noutras línguas. Mas não explicam que critérios se devem seguir na decisão de que letras etimológicas manter. Curiosamente, nunca vi ninguém defender, nem antes do AO nem depois, producto, fructo, escripto ou dictado (já nem falo de th, ph e y, e duplos pp, mm, nn, tt, ff, etc.). Nem sequer do nome contracto… Enfim. Além disso, as seleções de palavras internacionais e das línguas em que elas são comparadas nunca é imparcial. E o italiano não entra nunca, porque estas consoantes não existem em italiano (e noutras línguas românicas menos conhecidas). E elas não existem em italiano pela mesma razão que o AO90 as elimina: deixaram de se pronunciar.
Às vezes, critica-se também o desaparecimento das marcas de timbre do antigo pára, terceira pessoa do singular do presente do indicativo de parar, que se tornou homógrafa da preposição para. É certo que o desaparecimento do acento faz confusão a quem a ele está habituado (para mim, foi muito difícil deixar de o usar), mas há que reconhecer que faz pouco sentido ter uma marca tímbrica deste tipo quando desapareceram todas as outras. O hábito, pois, o malvado hábito… Mas uma pessoa habituada a não usar o acento nunca sentirá falta dele. Parecem-nos estranhas sequências como “para para pensar”, mas, convenhamos, não é uma sequência comum por aí além, além de que, com alguma boa vontade, encontramos sequências do mesmo tipo com outras expressões que perderam as marcas tímbricas: eu, por exemplo, tenho um filho que se pela pela bola[3]…
E guardei para o fim o que mais estranho: a identificação de língua com ortografia. Dizem que não se pode decretar mudanças na língua ou que o acordo prejudica a língua, que defender a antiga ortografia é defender a língua, eu sei lá. Mas a língua e a ortografia não são a mesma coisa, longe disso. A língua é um sistema complexo de relações entre sinais e noções de vários tipos que temos na cabeça, que não interiorizamos pela escrita e que ninguém comanda. A escrita é uma convenção, que se pode alterar como e quando quisermos, sem que isso afete a língua. Durante muito tempo, houve muitas línguas que não se escreviam, para as quais não estava fixada uma transcrição, e não eram, por isso, menos línguas que as outras. Há línguas que se podem escrever com mais que um alfabeto e, às vezes, com alfabetos e sistemas de escritas não alfabéticos. Discutir ortografia deveria ser discutir a lógica de um sistema, reduzido e controlado, de transcrição de outro sistema muito mais complexo e muitíssimo mais vasto, a língua. É claro, pode chamar-se à discussão a tradição e o mais que se achar que se deve, mas propor uma reforma ortográfica não é, mas nem de longe nem de perto, propor seja lá que alteração for na língua. Nem que se passasse a escrever com alfabeto khmer a língua era afetada. Custa-me perceber por que custa perceber isto…
No resto, ninguém está mesmo interessado. Não que não haja mais coisas a discutir, mas ninguém está interessado em discutir hífenes e tremas, prefixação e sufixação, aglutinação e justaposição (se calhar, ainda faço eu um textozito sobre isso, um dia destes.), até porque muitas pessoas não conhecem nem as antigas nem as novas regras e escrevem como lhes apetece as palavras compostas…
A conclusão do que tenho visto é a seguinte: há poucas pessoas interessadas em discutir o AO90. Parece-me impossível, aliás, que alguém que queira mesmo refletir sobre a ortografia do português e discuti-la possa estar completamente de acordo com a norma anterior ou com a nova[4]. A maior parte dos críticos explica, de forma normalmente atabalhoada, quando não contraditória, porque não gosta (é o termo) do desaparecimento das “consoantes mudas” e pronto. Quando se argumenta a favor desse desaparecimento, os antiacordistas acabam por responder muitas vezes (muitas vezes…), que sim, pode ser incoerente, mas querem continuar a escrever como aprenderam, não estão para alterar um hábito velho. Convenhamos que, por compreensível que seja a atitude, é uma argumentação um pouco fraca, para não dizer que não chega a ser argumentação. Alguns vão ao ponto de chamar à conversa Camões ou Pessoa, por exemplo, para defender uma ortografia que o primeiro nunca conheceu, obviamente, e que o último recusava...
O processo foi pouco transparente e não incluiu um número suficiente de instituições? Não há necessidade da reforma? A maior unificação da ortografia não chega para unificar as diversas variantes do português? Tudo isto se pode e deve discutir, mas nada disto tem relação com as questões ortográficas concretas que se discutem. É claro, pode sempre recusar-se qualquer reforma e até pode optar-se por uma grafia ilógica e complicada, como a do francês ou do inglês, sem que daí venha mal maior ao mundo. Mas não foi isso que se fez em 1911 e a questão para mim é que quem aceita a grande reforma de 1911, que foi incompleta, deveria querer levar o seu espírito até ao fim – independentemente de como isso unifica ou não a escrita nos países de língua portuguesa. Alguns pontos do AO90 são um avanço nesse sentido.
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[1] E já não falo daqueles que se limitam a espalhar informação falsa, dizendo que o c de facto desapareceu ou que desapareceram os acentos nas palavras esdrúxulas. A esses, que não conhecem o AO90, só se pode dizer: leia o acordo antes de o criticar, sim? Não acredito que seja por má fé que espalham essa falsa informação, mas não é de modo algum aceitável que se critique o que não se conhece, muito menos o que não está no que se desconhece…
[2] A grafia portuguesa – e a grafia do português em geral – é uma grafia fonológica e não fonética, isto é, uma grafia que dá conta do sistema e não de como as palavras são realmente pronunciadas. Para dar um exemplo simples e de forma simplificada, comer escreve-se com o e não com u, porque é um o que existe no sistema, como se pode verificar em como ou comes. Em Portugal, existe uma regra fonética que funciona na cabeça de todos os falantes que diz que a língua se eleva e recua de cada vez que um /o/ não é acentuado, passando esse /o/ a pronunciar-se [u]. No Brasil, esta regra só se aplica ao /o/ que está depois da sílaba tónica, pelo que o o de comer tem uma pronúncia diferente: [o]. Mas, como o elemento do sistema é o mesmo, pode escrever-se igual no Brasil e em Portugal. O espírito da reforma ortográfica de 1911 foi passar de uma lógica essencialmente etimológica a uma lógica essencialmente fonológica, mas ninguém advoga uma ortografia fonética, que separaria completamente o português do Brasil do português europeu (a norma da pronúncia africana é instável, mas a norma usada na comunicação social é ainda semelhante à norma europeia). Agora, é discutível até que ponto a oposição entre as vogais átonas abertas e as suas correspondentes fechadas tem caráter fonológico, mas é uma discussão complicada, que deixo aqui de lado.
[3] Pois, eu sei: não quis exagerar, e pela é mesmo uma maneira rara de dizer bola, mas pensei o mesmo que vocês pensaram agora: «Mais giro ainda era “tenho um filho que se pela pela pela”!».
[4] Também não é, de modo algum, necessário estar completamente de acordo nem com a antiga grafia nem com a reforma para escrever português segundo a norma. Sempre houve e continua a haver coisas que não acho que se deviam escrever como as escrevo, mas escrevo-as assim porque é essa a norma. Evidentemente, depende do contexto. Há tipos de texto em que cada um é livre de escrever exatamente como lhe apetecer. Em última análise, cada um é sempre livre de escrever como lhe apetecer, mas tem de se sujeitar a que, em certos textos, lhe sejam corrigidas certas formas para as harmonizar com a norma vigente.
Um texto sobre estranhos pedaços de vida que se encontram em livros em segunda mão
A quase totalidade das fotografias que conservo são fotografias que, de uma forma ou de outra, documentam a minha vida. Penso que sucederá o mesmo convosco. Mas tenho também, algures no meio das minhas fotos, várias outras que não têm nada a ver com a minha vida e que guardo antes por serem mistérios, focos de sedução e de magia. Algumas, nem sei de onde vêm e o fascínio que têm é precisamente serem misteriosas apenas, pedaços impressos de vidas que desconheço completamente. De todas elas, a que aqui nos interessa é uma que me veio numa bíblia em francês comprada em segunda mão: vê-se três senhoras de meia idade, vestidas de uma forma de tal maneira clássica que seria impossível identificar a época em que a fotografia foi tirada, se não estivesse com elas um jovem alto, com um cabelo comprido, uns bigodes desenhados até ao queixo, umas calças à boca de sino e uns sapatos de tacão alto que só existiram nos anos setenta do século vinte. A fotografia tem escrito atrás, em letra redonda de portuguesa, «Senhor, ensina-me a ser instrumento da tua Graça», e a data, «16.VII.1987», que não só está escrita de uma forma pouco normal em Portugal como também é, com toda a certeza, muito posterior à fotografia. O livro pertenceu a uma tal Maria da G. Galhardo, moradora na Travessa da Senhora da Glória, 26, 1.º Esq. Nunca encontrei desenvolvimento para o G. abreviado que não fosse Graça como a do Senhor, de que ela queria ser instrumento, ou Glória, como da Senhora (curiosamente, a Travessa da Senhora da Glória, não sei se sabem, é na Graça…).Até agora, o parágrafo anterior servia apenas de introdução a um conto meu chamado “Valdemar, o marinheiro”. Agora, passa a servir de introdução também a este texto, que é sobre estranhos pedaços de vida que se encontram em livros em segunda mão.
A Bíblia de que falo, comprei-a na Feira da Ladra e por uma ninharia, se bem me recordo, mas não me lembro já por quanto. É uma tradução ecuménica francesa, impressa no Canadá, e tem uma grande quantidade de notas sobre dificuldades de tradução e questões históricas e culturais, além de remissões constantes de umas para outras partes que tratam temas ou acontecimentos relacionados. É do melhor que vi até hoje para quem, como eu, encara a Bíblia como um conjunto de documentos históricos e obras literárias, e não como uma recolha de revelações divinas.
A história da fotografia encontrada na Bíblia não é completamente fictícia; mas, como seria de esperar, também não é exatamente como a descrevo no conto. Não são três mulheres e um homem que se veem na fotografia, mas sim duas mulheres e dois homens. Além disso, a frase “Senhor, ensina-me a ser instrumento da tua Graça” não está escrita nas costas da fotografia, mas sim na primeira página da Bíblia e a data que tem é 19.VII.80. Numa das guardas, estão escritas com a mesma letra um nome, uma morada e outra data. Nem o nome nem a morada são os que refiro no conto. A morada é da Estrada da Luz. Luz não é sem relação com Graça e com Glória, claro, mas a Estrada da Luz fica a uns quantos quilómetros da Graça. A outra data é 24.III.1980. Estranho, não é?, duas datas diferentes a duas páginas uma da outra?
A foto que vinha dentro da Biblia é a que deixo aqui a seguir e tem a data 15.05.86. Achei que a fotografia era fundamental neste texto, mas cortei as caras, porque não tenho autorização das pessoas fotografadas para a publicar – nem tenho, bem entendido, maneira de a pedir – e porque ela se enquadra assim melhor no texto, que é sem grande cabeça, convenhamos.
Uma coisa assim faz-nos sonhar. É como encontrar uma mensagem numa garrafa trazida pelo mar em que não se identifique remetente nem proveniência. Também é como ficar, sem querer, na posse de uma pedaço de vida alheia a que, em princípio, não temos direito. A reação mais racional é, provavelmente, deitar fora a foto e não pensar mais no assunto. No extremo oposto está a minha: interrogar-se sobre quem são as pessoas da fotografia e o que estão a fazer, imaginar como se poderia contactá-las, dizer-lhes que temos a foto, que veio numa Bíblia, que estamos, claro, dispostos a devolvê-la, se a quiserem, quase que pedir desculpa do nosso, como dizer?, voyeurismo… Procurar o remetente desconhecido da mensagem na garrafa, enfim, para lhe contar onde ela foi parar e às mãos de quem. Ou escrever um texto de blogue sobre o assunto, também pode ser. Estranhar é o meu divertimento preferido.
No sábado comprei, numa loja de coisas em segunda-mão, uma versão de Moby Dick para jovens. Quero propô-la à minha filha mais nova, que gosta de ler. Talvez ela passe também, não sei, pelo deslumbramento que Moby Dick me causou – primeiro, no fim da infância, quando conheci a história e as personagens, numa versão destas simplificadas; e, sete ou oito anos mais tarde, quando li enfim o romance em versão integral. Mas isto é um excurso. O que interessa aqui é que o livro trazia lá dentro uma fotografia e uma ficha de enfermeira.
Diz nas costas da fotografia, em dinamarquês: “A primeira coisa que se nota são duas plantas chamadas plantas de cânhamo que enchem o cenário”. A letra e os erros ortográficos parecem de adolescente, mas, claro, é impossível saber. Também é impossível saber se a rapariga que se vê na fotografia é a mesma a que diz respeito a ficha cor-de-rosa que vinha mais adiante. É uma ficha da enfermeira que visita os bebés ao domicílio e diz respeito aos primeiros quatro meses de vida de uma menina. Vê-se que nasceu em 1963 e que a mãe residia nessa altura em Copenhaga, onde fazia um estágio numa livraria. O nome da mãe e da bebé e o seu apelido são demasiado corriqueiros para que valha a pena, sequer, fazer uma pesquisa em Google.
As coisas que os livros em segunda-mão trazem lá dentro e o estranhamento que elas nos causam… Estranhar, não sei se já vo-lo disse, é o meu divertimento preferido.