Alguns dos chamados clássicos da literatura infantil não são de facto livros para crianças, independentemente da intenção com que foram escritos. Não é pelos temas nem pelas histórias, mas simplesmente porque a escrita é demasiado complicada – as crianças não compreendem os textos.
Afirma-se muitas vezes que ler ou ouvir ler livros é uma maneira de aumentar o vocabulário da criança… Nunca me foi dada nenhuma prova muito concreta da eficácia do método (vocês sabem de alguma?), nem sei exactamente porque se há-de dar prioriade a palavras e construções tipicamente literárias, quando há tantas outras que a criança precisa mais de aprender, mas enfim, deixo passar o postulado sem levantar muitas ondas, que aqui só se trata de música e palavras, e discutir uma questão dessa natureza seria aventura para outro blogue (“Ai, mas que tão focalizadinho qu’ele anda, valha-o Deus!”).... Se é de aprender que se trata, no entanto, o que qualquer professor sabe (ou qualquer pessoa com um mínimo de senso comum) é que pôr a fasquia um bocadinho acima do que o aluno já domina é procedimento normal para o fazer avançar, mas pô-la alta demais conduz forçosamente à desmotivação. E é precisamente o que acontece com alguns dos chamados clássicos da literatura infantil, que não são livros para crianças. Eu acho, sinceramente, que, se não se fala disso, é porque é tabu – quem se vai pôr a dizer de livros elogiados por toda a gente que percebe de literatura que não são os que se devem dar às crianças? São poucos os que se atrevem…
Eis um desses atrevimentos parece que a concordar com o que escrevi aí atrás: um comentário de uma raqueldutra a um elogio que o blogue M faz de um podcast de Luís Gaspar com uma leitura d’O romance da raposa de Aquilino Ribeiro (Lisboa: Bertrand Editora, muitas edições desde 1924): “talvez me livre do trauma que tenho desde tenra infância com o Romance da Raposa... tentei lê-lo vezes sem conta, apenas para descobrir que era facílimo adormecer sobre a primeira página... daí à ignorância de nunca ter lido mais nada do nosso grande escritor nem um passo foi, apenas uma volta na cama enquanto dormia...” E é o que me parece natural: contada daquela maneira (e só por isso), a história da “raposeta matreira, fagueira, lambisqueira” que tem um irmão que “saiu um azougue de finura” e que os pais tinham guardado com eles mais tempo “esperando que [lhes servisse] de arrimo para o fim dos dias”, mas a quem a mãe um dia tem de explicar que está na hora de se fazer à vida, porque “já [lhe] lá cantam dezoito meses nada ladros” não pode senão passar completamente ao lado de qualquer criança. Diz-se que Aquilino Ribeiro escreveu o livro para o filho e eu pergunto-me a mim mesmo que filho teria ele… Não tenho nada, quero deixar claro, contra a escrita de Aquilino. Pelo contrário, sou até daqueles que me deixo fascinar pelo fogo de artifício do estilo do mestre. As crianças, é que duvido muito que ele as cative…
Outro exemplo bom é The wind in the willows, de Kenneth Grahame (O vento nos salgueiros, em português). Mais um clássico infantil tão maravilhosamente bem escrito, que ninguém se atreve a dizer que não é um livro para crianças. Ou quase ninguém: Uma tal Ivy, num comentário de leitor num site duma livraria online, diz o que muitas outras pessoas devem já ter pensado (traduzo eu do inglês): “Tentei ler The Wind in the Willows várias vezes em criança, mas o vocabulário era sempre demasiado difícil para mim”. No mesmo site, mais adiante, diz uma tal Anu: “Custa-me a acreditar que ele tenha escrito isto para crianças, por muito que fale de texugos, lontras, toupeiras e ratos d’água. (…) o vocabulário e a estrutura das frases são complicados.” Mas tanto Ivy como Anu estão de acordo que é uma obra maravilhosa… para adultos – que foi precisamente o que eu achei quando o li. Também uma senhora chamada Lyn Dee é da mesma opinião (traduzo mais uma vez do inglês): “Aos oito anos, as minhas duas paixões eram a leitura e os animais, de maneira que fiquei muito contente quando me deram um exemplar de The Wind In The Willows de Kenneth Grahame. Comecei avidamente a ler a primeira página, à espera de ser imediatamente transportada a um maravilhoso mundo novo. Mas tal não aconteceu. Debati-me com o texto durante mais algumas páginas e, pela primeira vez na minha carreira de leitora, desisti. O livro era simplesmente demasiado difícil, demasiado chato. (...) Durante o resto da minha infância, às vezes ia buscar o livro à estante, estudava as belas ilustrações e tentava lê-lo – mas não conseguia entrar na história. O meu filho tinha o mesmo problema. Embora gostasse de ler todo o tipo de livros, não gostava de The Wind In The Willows”. (…)”
A filha de Lyn Dee, no entanto, já tinha uma percepção diferente do livro: “Uma noite, tinha ela quatro anos, pedi-lhe para escolher um livro novo para eu lhe ler antes de adormecer. (…) Ela deu-me logo para a mão o The Wind In The Willows do irmão. (…) Aconcheguei-a na cama e comecei a ler. Ao fim de algumas páginas, perguntei-lhe se estava a gostar da história; se percebia aquelas palavras todas tão compridas… “Não”, disse ela, com ar sonhador. “Mas são muito bonitas!” E tinha razão. De repente, também eu descobri a magia deste livro intemporal.”
Está muito bem, a abordagem da menina é tão válida como qualquer outra… Mas então, se o que conta é ser embalado pela voz da mãe ou do pai ao som de palavras que soam bem sem se fazer ideia do que significam, que se leiam antes às crianças sonetos de Camões ou peças de Shakespeare – e tanto faz que elas falem inglês como português…
(Disse-me uma vez uma conhecida minha dinamarquesa que sempre que ia a Inglaterra ia ver uma peça de Shakespeare. “Deves dominar bem o inglês”, disse-lhe eu. “Eu, por exemplo, acho que compreenderia muito pouco de uma peça de Shakespeare representada. Mesmo lendo, com mais tempo para decifrar as frases, custa-me a perceber.” “Eu também não compreendo a maior parte do que é dito”, explicou-me ela, “mas não importa. É como ir a um concerto, fico só a ouvir a música das palavras, que é tão bonita…”)
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