Escrevi uma vez uma novela policial em que a personagem principal leva um estalo bem assente quando revela a uma amante que, numa gravação que fez da 7ª Sinfonia de Mahler, deitou fora o segundo movimento, porque não gosta dele. “Meu grande piolhoso” diz a mulher, “quem é que tu pensas que és para refazeres como te apetece as obras de Mahler, hem? Tu não achas, ó meu energúmeno, que se Mahler lá pôs o movimento na sinfonia é por que ele o queria lá?”
Bom, a verdade é que são poucas as pessoas, mesmo entre os responsáveis da elaboração da programação das salas de concertos ou da escolha das obras a editar em colecções da chamada música erudita, que têm uma atitude tão radical como a da fanática namorada do meu detective. O que não falta para aí, em discos e em espectáculos, são fragmentos de peças. Tenho cá em casa, em discos de editoras conceituadas, movimentos isolados de suites e sinfonias, aberturas e excertos de óperas. Nas edições de supermercado, então, é o pão nosso de cada dia…
Já na literatura é diferente. Não há livros com, por exemplo, um romance completo e, no fim, mais um capítulo de outro romance, pois não? Se calhar, também se podia pensar nisso… Eu, sinceramente, não tenho nada contra que se retalhem as obras de arte como se quiser, se se achar que isso faz sentido – e o autor não se importar... Aliás, eu também o faço… Ainda no outro dia: O Mestre e Margarita, de Mikhail Bulgakov (um romance que quem ainda não conhece deve começar a ler já amanhã) tem lá dentro uma novela sobre Pôncio Pilatos, uma obra contada pelo Diabo e escrita pelo Mestre do título, que está espalhada por quatro capítulos ao longo do livro. Ora, se não aconselho a ler o romance sem essa novela, já o contrário pode perfeitamente fazer-se, com bons resultados. Agarrei, tirei do livro os quatro capítulos e juntei-os num livro que agora só eu tenho – ou mais alguém que tenha tido a mesma ideia. Uma novela muito bem escrita e muito diferente d’A Relíquia de Eça de Queirós!...
Aliás, podia editar-se uma coisa assim: A Relíquia, de Eça de Queirós, seguida de Capítulos 2, 16, 25 e 26 de O Mestre e Margarita, de Mikhail Bulgakov. Como se podia editar, por exemplo, os prefácios de Charles Dickens ou de Aquilino Ribeiro, talvez até com diversas versões do prefácio a uma mesma obra, à maneira dos alternate takes que estão agora na moda nas reedições de clássicos do jazz e da música pop. E também excertos – ou “highlights”, se fosse numa edição baratucha – de Moby Dick ou de O Código Da Vinci. Bem vêem, para se ficar a saber que o primeiro é uma obra-prima, basta ler a primeira página; para se ficar a saber que o segundo é o que é, basta ler a primeira linha – logo a primeira linha está mal escrita…
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