Bom, tomem lá uma passagem de um romance de aventuras:
Mas aquele era um singular e confuso caso! (…) Necessitavam pois uma evidência. E quem melhor lha poderia dar que os homens das estrelas, senhores das grandes artes mágicas, que tinham trazido Ignosi ao país, e sabiam decerto os segredos?Já viram isto nalgum lado, não foi? Provavelmente, em muitos lados até. Desde Tintin e o Templo do Sol até ao Apocalypto de Mel Gibson, eclipses destes tem havido mais do que os chapéus dos palermas, pelo que o excerto acima não nos parece senão mais uma versão do batido tema. Mas é a versão original! Trata-se de um excerto de King Solomon's Mines de H. Rider Haggard, As minas de Salomão na tradução de Eça de Queirós, que aqui aparece. Foi daqui que veio tudo o resto. Ou mais ou menos… Quero dizer: foi com certeza Rider Haggard que tornou famosa a cena na literatura de aventuras e foi a partir destas Minas de Salomão que ela se fixou no nosso imaginário. Mas parece que a cena original, numa obra muitíssimo menos divulgada do que a de Haggard, tem Cristóvão Colombo, nem mais!, como protagonista e é ao seu filho Hernando que se deve atribuir a origem do motivo na literatura.
– Se ele é o herdeiro legítimo, os homens que o trouxeram das estrelas que o provem, fazendo um grande milagre. Só assim o povo acreditará e tomará armas por ele! (…) Necessitamos um milagre! O povo não se move, nem nós mesmos, sem um milagre!
Um milagre! A situação era terrível e grotesca. Exigir-se um milagre a três honestos e ingénuos mortais, que nem sequer sabiam, como qualquer prestidigitador de feira, escamotear uma noz dentro da manga! E terem os honestos mortais de fazer o milagre – ou de perder a vida!... Voltei‑me para os meus companheiros, a explicar rapidamente o risível e perigoso lance.
– Parece-me que se pode arranjar, disse John, depois de um curto silêncio. Peça a estes amigos que nos deixem sós, Quartelmar.
Abri a porta da cubata, os chefes saíram. E apenas os passos morreram na sombra:
–Temos o eclipse! Exclamou o nosso admirável John.
Era o eclipse que ele descobrira na véspera, folheando o almanaque (o Livro de Bordo), e que nesse dia, às duas e quarenta minutos, devia ser visível em toda a África.
– Aí está o milagre! Afirmava John. É anunciar aos chefes que para lhes provar que Ignosi é o rei, e que devem pegar em armas por ele, nós faremos desaparecer o sol!
Na sua Historia del almirante (às vezes também chamada Vida del almirante Cristóbal Colón, é conforme a edição…), Hernando Colón, filho ilegítimo de Cristóvão Colombo, conta no capítulo 103, “De lo que hizo el Almirante después que los rebeldes partieron a la Española, e de su ingenio para valerse de um eclipse” (traduzo eu):
[O Almirante] lembrou-se de que ao terceiro dia havia de haver um eclipse da lua, ao começo da noite, e mandou que um índio de Española que estava connosco chamasse os índios principais da província, dizendo que queria falar com eles de uma festa que havia determinado fazer-lhes. Havendo chegado os caciques no dia antes do eclipse, disse-lhes pelo intérprete, que éramos cristãos e críamos em Deus, que vive no céu e nos tem por súbditos, o qual cuida dos bons e castiga os maus, e (…), no que dizia respeito aos índios, vendo Deus o pouco cuidado que tinham de trazer abastecimentos, (…) estava irritado com eles, e tinha resolvido enviar-lhes uma grandíssima fome e peste. Como eles talvez não lhe dessem crédito, queria mostrar-lhes disto um evidente sinal, no céu, para que mais claramente conhecessem o castigo que lhes viria da sua mão. Portanto, que estivessem aquela noite com grande atenção ao nascer da lua, e a veriam aparecer cheia de ira, inflamada, denotando o mal que queria Deus enviar-lhes. Acabado o discurso, foram-se embora os índios, uns com medo, e outros crendo que seria coisa vã.
Mas começando o eclipse ao nascer da lua, quanto mais esta subia, mais aquele aumentava, e como tinham a isto grande atenção os índios, causou-lhes tão grande assombro e medo que com fortes alaridos e gritos iam correndo, de todas partes, aos navios, carregados de vitualhas, suplicando ao Almirante que rogasse a Deus com fervor para que não descarregasse neles a sua ira, prometendo que dali em diante lhe trariam com suma diligência tudo quanto necessitasse. O Almirante disse-lhes que queria falar um pouco com o seu Deus; encerrou-se enquanto o eclipse crescia e os índios gritavam que os ajudasse. Quando o Almirante viu acabar-se o aumento do eclipse, e que em breve voltaria a diminuir, saiu da sua câmara dizendo que já havia suplicado ao seu Deus, e orado por eles; que lhe havia prometido, em nome dos índios, que seriam bons daí em diante e que tratariam bem os cristãos, levando-lhes abastecimentos e as coisas necessárias; que Deus lhes perdoava e, em sinal do perdão, veriam que acabava a ira e a agitação da lua. Como o efeito correspondia às suas palavras, os índios agradeciam muito ao Almirante, louvavam o seu Deus, e assim estiveram até que passou o eclipse. De ali em diante, tiveram grande cuidado de lhes fornecer quanto necessitassem, louvando continuamente o Deus dos cristãos.
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