O mais provável é que seja pela mesma razão que não fazem outras coisas como os adultos.
Tenho de deixar claro que não sou de modo algum um especialista da área em que me atrevo neste texto, a da aquisição da língua. Na minha educação linguística, essa questão foi, infelizmente, deixada um bocado de lado. Mas sou um maluquinho destas coisas, como se diz, e tenho aqui em casa um endiabrado laboratório em que me entretenho a estudar, metódica e pacientemente (?), como se vai adquirindo a língua. E tenho feito algumas constatações não triviais, como se diz muitas vezes no jargão linguístico. Passo a dar-vos conta de uma delas.
Tenho três filhos, um rapaz de 8 anos e duas raparigas, uma de 5 e outra de 3. Os três dizem, em português, sangre, em vez de sangue. E as raparigas dizem ambas, em dinamarquês, fistorie em vez de historie (“história”). Sistematicamente. São erros tão enraizados que não conseguem, mesmo quando se insiste com eles, dizer essas palavras como deve ser. Uma boa teoria da aquisição da linguagem tem de dar conta de todos os fenómenos observáveis e, por conseguinte, deste também. Mas como é que uma teoria pode dar conta disto? Bom, depois de criado o suspense, convém naturalmente explicar o contexto linguístico em que estes fenómenos se dão, e a sua origem – que não é, essa, nada misteriosa.
O sangre vem do meu filho. O castelhano foi a sua primeira língua e, se bem que o tenha esquecido completamente, quando aprendeu português conservou essa palavra do seu castelhano original, embora não a pronuncie agora com a pronúncia castelhana. Afinal de contas, sangre é muito parecido com sangue e o verbo que corresponde a sangue é sangrar, com o r malandro, de maneira que nem é estranho que tenha sido uma palavra resistente à lusitanização do espanhol do rapaz. É natural que muitas outras palavras castelhanas lhe tenham também ficado para além dessa, como comer ou estar ou dormir, mas essas não se notam, porque, mudada a pronúncia, são exactamente iguais às palavras portuguesas correspondentes. O que é interessante é que as irmãs, que nunca falaram castelhano na vida (de facto, se ouviram alguém falar castelhano, não foi mais que duas ou três vezes e durante minutos apenas), o digam também. É óbvio que aprenderam com o irmão.
Fistorie em vez de historie é um daqueles erros de criança que se mantêm durante muito tempo. Todos conhecemos, na história das pessoas que nos são próximas ou na nossa própria história, casos de palavras que cada um deforma, em criança, de uma maneira sui generis, e, muitas vezes, essa deformação persiste durante muitos anos. Pelo que me conta a minha mãe, eu disse durante muito tempo chichífico em vez de frigorífico, por exemplo. Então, a minha filha mais velha começou a dizer fistorie, e continua a dizer fistorie. E a irmã aprendeu com ela.
Agora, não há nenhuma possibilidade real de que as minhas filhas tenham ouvido mais vezes sangre do que sangue, nem de que a minha filha mais nova tenha ouvido mais vezes fistorie do que historie. Evidentemente, eu não contei as vezes que ouviram as várias formas, mas é completamente impossível. Mesmo que admitamos que quando se ouve uma correcção («Não é sangre que se diz, é sangue…»), essa correcção conte para a interiorização da forma errada (é possível, pela ênfase que se lhe dá), as minhas filhas ouviram com toda a certeza mais vezes na vida a forma correcta sangue do que o espanholismo do irmão, e a minha filha mais nova ouviu com toda a certeza mais vezes a forma correcta historie do que a idiossincrática fistorie da sua irmã. Como explicar então que a forma que ouviram menos vezes prevaleça sobre a que ouviram mais vezes?
Uma possibilidade é que, na aquisição da língua, nem todas as fontes de vocabulário (e, provavelmente, também de regras sintácticas, etc.) tenham o mesmo valor. Que haja fontes privilegiadas. Para mim, é muito claro que as crianças com quem cada um dos meus filhos interage mais são, de longe, os seus irmãos. E há quem defenda que quem tem mais influência sobre as crianças são as outras crianças e não os adultos.
Há também quem afirme que a influência dos pais não é tão grande como muita gente pensa. Que é capaz até de ser bem pouca. Relativamente à questão da aquisição da língua, por exemplo, acho que há boas razões para pensar isso. Se a influência dos pais fosse determinante, as crianças teriam o sotaque dos pais. Mas o que se passa na realidade é que isso só acontece quando esse sotaque é também o do meio onde vivem. Quando não, têm o sotaque da zona onde vivem e não o sotaque dos pais.
Veja-se o caso dos meus filhos: eu sempre falei português com eles e eles nunca ouviram, até virmos para Moçambique, senão português de Portugal, sobretudo de Lisboa. Mas, enquanto vivíamos na Dinamarca, nunca precisaram de falar português, porque sabiam que eu compreendia o que eles me diziam em dinamarquês. Chegados a Moçambique, quando tiveram de começar a falar português, revelou-se que, afinal, todo o input que tinham recebido anteriormente de mim não influenciou (ou influenciou muito pouco, só em termos de algumas palavras que eles não ouvem aqui) a sua maneira de falar português: falam português de Chimoio. Ora é muitíssimo provável que, somado o tempo total de exposição ao português, tenha sido o meu português que eles ouviram mais, porque só aqui estamos há um ano e eles nem sequer vivem aqui num meio muito lusófono... Porque é que não é esse, então, o português que eles falam? Talvez porque os pais não sejam uma fonte privilegiada na aquisição da língua…
É possível que tudo isto seja contabilizável em regras do tipo: para interiorizar um vocábulo, uma regra fonética, uma regra sintáctica, etc., uma criança precisa de os ouvir Y vezes quando os ouve de outra criança; para os memorizar quando os ouve de um adulto, precisa de XY vezes. Ou pode até ser que a regra seja mais complexa, e que Y tenha um valor diferente consoante a criança tenha aceitado a outra criança como seu verdadeiro par ou não, e pode até ser que X varie também de valor consoante o adulto de que se trate – e que o X correspondente à influência dos pais tenha um valor mais pequeno que o que correspondente à influência de outros adultos… Mas, na falta de observação rigorosa, isto deve ser considerado apenas como sendo eu a deixar-me levar por especulação talvez um bocado delirante… Bom, também se lhe pode chamar projecto de investigação.
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