A constatação de que a prática do suicídio é uma constante de todas as sociedades de todos os tempos parece constituir uma objecção óbvia ao carácter absoluto da pulsão de sobrevivência. Foi com base nesse facto simples que um amigo meu, uma vez, em animada conversa nocturna, rebateu a minha afirmação de que, seja lá onde e quando for, ninguém em seu perfeito juízo prefere a morte à vida.
“Não aceito!”, disse ele. “E quem prefere morrer para salvar um ente querido, se tem de fazer essa escolha? E quem, por razões de honra ou de dever, dá a vida pelo que considera mais importante do que ela – a sua pátria ou os seus valores, por exemplo? E quem acha tão miserável a sua existência que prefere, pura e simplesmente, acabar com ela?”
Fiquei sem saber que boa resposta lhe dar. O argumento imediato foi que o suicídio é um fenómeno tão marginal nas coisas humanas que não pode ser considerado uma prática humana essencial – ao contrário da vontade de preservar a vida. Mas foi uma resposta que não me satisfez. Nunca fui adepto de regras que, para funcionarem, admitem a excepção. Bom, desprezar o que é muito periférico numa verdade genérica, digamos assim, não é completamente desprovido de sentido. Dizer que os seres humanos preferem sempre a morte à vida por muito que alguns se suicidem é como dizer que os cães são sempre quadrúpedes, mesmo quando um acidente qualquer, ou uma malformação, deixa um cão sem uma das patas. Mas eu intuía, sem o conseguir racionalizar, que o suicídio é, nos seres humanos, um fenómeno de um tipo diferente da deformidade congénita ou da amputação – por um lado, porque extremamente mais persistente e, por outro, porque é uma escolha em vez de um acidente. E foi isso, precisamente, que o meu amigo argumentou:
“O suicídio, meu amigo, não é uma doença. É um acto voluntário!”
Tentei então argumentar que os suicídios que ele invocava não chegavam a ser uma escolha da morte relativamente à vida:
“Tens de ver que, no caso de alguém dar a vida por outrem, não é de escolher a morte que se trata – mas antes de uma escolha de que vidas preservar. Continua a ser a vida que se prefere à morte. E isto é ainda mais verdade se alguém aceitar morrer para salvar mais do que uma pessoa.”
O problema desta argumentação é que descentra a questão da preservação da vida: eu teria então de admitir, retorquiu o meu amigo, que a pulsão da sobrevivência que eu defendia ser comum a todos os seres humanos não dizia respeito à sobrevivência de cada um dos indivíduos que, pretensamente, a traz em si, mas antes a algo mais vasto – ao grupo, à família, à humanidade no seu todo.
“E nota que isto tem implicações importantes ao nível moral – se, em cada um de nós, a pulsão de preservação do grupo prevalece sobre a pulsão de preservação do indivíduo, então por que não admitir que o grupo imponha o sacrifício de um indivíduo quando acha que esse sacrifício é necessário ao bem comum?”
Ora esta era precisamente uma das ideias contra as quais eu achava que a universalidade do instinto de autopreservação poderia vir a servir de argumento, se eu conseguisse arquitectar, a partir dela, uma teoria moral suficientemente sólida…
Durante vários dias, preocupou-me o aparente fracasso da minha tão nobre certeza da omnipresença entre as pessoas da vontade de viver. Tentei arranjar argumentos sólidos contra as objecções que o meu amigo me tinha levantado. E acabei por me censurar a mim próprio por procurar esses argumentos:
“Quer dizer, o que mais me preocupa é como justificar racionalmente uma postura tão dogmática que me recuso a abandoná-la mesmo quando me são apresentados contra ela argumentos que eu não consigo rebater! Não se pode chamar bem a isto a procura da verdade!”
E decidi dar por infirmada a minha hipótese.
Como se encontra sempre quando não se procura, um dia lembrei-me de repente de que alguém* tinha definido vida como “a negação permanente da morte”. A definição, por simplista que possa parecer à primeira vista, é rigorosa e desfaz a importância do suicídio como objecção fundamental à universalidade da pulsão da vida: mesmo um suicida, o que faz toda a vida, excepto num ínfimo momento apenas em que se mata, é preservar essa mesma vida, opor-se constantemente à morte.
Mais tarde, um outro amigo disse-me que parecia haver bastantes indícios de que os suicidas se arrependem do que fazem.
“Bom, é claro que quem se mata de facto não tem grande possibilidade de se arrepender do que faz”, explicou ele, “mas estudos de casos de suicídios fracassados mostram que o suicídio não é muito diferente de muitos homicídios e outros actos violentos: é algo que as pessoas fazem de cabeça quente e de que, acalmadas as paixões, se arrependem.”
A ser verdade o que ele me dizia, esse facto não faria senão corroborar a minha ideia. Mas nunca encontrei os estudos que ele referia. Não faço ideia se existem ou não… Vim a encontrar, isso sim, outras ideias muito interessantes sobre a questão. Por exemplo: Michael Cholbi, no seu artigo “Suicide” da Stanford Encyclopedia of Philosophy, diz, citando estudiosos do assunto, que “não se pode dizer que os indivíduos suicidas procurem a morte per se, mas a morte é antes percebida, com ou sem razão, como meio de alcançar outro objectivo do agente. Resumindo, não parece haver exemplos convincentes de suicídio não-instrumental em que a intenção última é simplesmente acabar com a vida e não há outro objectivo distinto dessa acção”.
Mesmo quando se procura a morte, não é a morte que se procura, mas, através dela, algum bocado da vida. Ou, dito de outra maneira, pouco rigorosa talvez, mas mais espectacular: nem a morte mata a pulsão fundamental da vida.
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* Desculpem, mas não me lembro quem... Descobri agora que Marie François Xavier Bichat, um célebre biólogo francês, na sua obra Recherches physiologiques sur la vie et la mort (publicada pela primeira vez em 1800 e de que podem ver online um facsimile da 4ª edição (Paris: Béchet jeune et Gabon) de 1822) escreveu que (traduzo eu) “a vida é o conjunto das funções que resistem à morte”, que é perfeitamente coincidente com a definição com assinatura ilegível que me veio de súbito à mente, mas não pode ter sido da definição de Xavier Bichat que me lembrei, porque eu não conhecia Xavier Bichat… Pensei que fosse uma frase de J. Krishnamurti, mas é um engano da minha memória, simplesmente porque J. Krishnamurti nunca poderia ter dito nem escrito uma coisa assim…
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