Dizia-me noutro dia um amigo que quando escrevo sobre religião sou panfletário. Suspeito, pelo tom em que ele o dizia, que ser panfletário não é nada que ele louve… Mas eu sim. Quando escrevo sobre religião, o que eu quero mesmo é ser panfletário. Mais um piqu’nino (sic) texto panfletário sobre religião:
Não tenho nada contra as pessoas quererem convencer-me da verdade da sua religião, desde que não me obriguem a aceitá-la. Vejam bem, eu até acho muito esquisito – e moralmente inaceitável – que se critiquem os monoteísmos oriundos do Médio Oriente por incluírem uma ideia de missão e se louve a ausência dessa ideia noutras religiões*. De facto, o que é que há de louvável em acreditar que se possui a verdade (todas as pessoas religiosas acreditam nisso, é uma condição da religião) e guardá-la apenas para os seus? “Desde que eu vá para o Céu (ou “desde que eu reencarne como monge”, para o caso tanto faz), os outros podem ir para o Inferno”. É como inventar a cura de uma doença e partilhá-la apenas entre os amigos… O que é inadmissível é a imposição de ideias, não o tentar convencer-se os outros da sua fé – a tentativa de convencer o outro do que achamos que é bom, essa, é a única atitude altruísta responsável, a base da democracia e a única maneira de o mundo ir melhorando alguma coisinha…
Mas o problema é que agora, pelo menos na Europa, é a soberba que impera. A maior parte dos cristãos, por exemplo, deixou de argumentar pela verdade da sua fé. Agora, já não se tenta provar a existência de deus. Agora, diz-se apenas: “Bom, tu dizes o que quiseres, mas isso não me interessa para nada, porque eu creio!” A atitude é de um paternalismo confrangedor. Há, neste sentido, algum retrocesso em relação à tradição de discussão racional da coisa divina. E eu tenho, ainda assim, mais respeito por Tomás de Aquino ou Santo Agostinho do que tenho pelos defensores do “cada um acredita no que quer e isso não se discute”. Uma ideia que nos vem logo à cabeça é a de que a culpa é de Lutero e da sua ideia estranha de que “só a fé salva”… Mas a verdadeira razão é outra: é que às pessoas religiosas já não resta senão fugir à discussão...
Em estados anteriores do conhecimento humano, a ideia de deus era uma boa hipótese de explicação do universo. Não era a única, mas não era pior do que as outras. Se recuarmos muito no tempo, até era possivelmente a melhor. O que se passou nos últimos séculos é que a religião perdeu claramente a sua batalha de ideias com a ciência. Por exemplo: não há ninguém que tenha conhecimentos científicos minimamente sólidos e possa acreditar no criacionismo. A não ser por cegueira, por uma cegueira instalada na sua mente antes de aprender ciência. É que, como tem sido argumentado muitas vezes, para quem tenha consciência das questões que se colocam quando se pretende explicar a origem do universo, torna-se óbvio que a hipótese de deus complica muitíssimo mais do que explica. A célebre frase de Nietzsche “Deus morreu” aplica-se, mais do que a qualquer outra coisa, à longa discussão racional entre crentes e não crentes que percorreu a história da Europa: a ciência matou deus.
No fundo, a atitude do “deixem-me em paz com as minhas crenças, não quero discutir” tem um paralelo na atitude daqueles racistas que, quando perderam a batalha científica, passaram a ser “racialistas”: “Está bem, não se pode provar a superioridade da nossa raça, mas podemos querer que, por muito que sejam todas iguais, as raças vivam separadas!”
Que respeito se há-de ter, digam-me lá, pela falta de respeito?
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* Até que ponto é que se trata de etno-romantismo e até que ponto é que há mesmo religiões sem a ideia de missão, eis uma discussão que não cabe agora aqui. Seria interessante averiguar se a ausência de missão não está sempre associada à ideia racista de que uma determinada religião é só para um povo ou à falta de poder (económico, militar) para divulgar ou impor essa religião…
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