1. O menos mau dos sistemas?
Parece que quando Churchill disse, num discurso na Casa dos Comuns, que “a democracia é a pior forma de governo tirando todas aquelas que foram sendo experimentadas de vez em quando” não apresentou o aforismo como seu, mas também não indicou a fonte exacta. “Já foi afirmado…”, disse ele. Talvez muita gente tivesse afirmado a mesma coisa antes dele, mas um dos que o fez foi William Ralph Inge, que escreveu, concretamente, que “a democracia é uma forma de governo que pode ser racionalmente defendida, não como sendo boa, mas como sendo menos má que qualquer outra”.
A história da frase tem pouco interesse a não ser para os estudiosos de Churchill, que eu não sou nem quero ser. O que me importa aqui é assinalar que a ideia é, por um lado, altamente discutível, mas que, por outro, é mais que de uma simples pirueta de raciocínio. É discutível porque a democracia pode ser efectivamente defendida pela positiva, como forma ideal de governo, se se a definir de uma forma suficientemente abstracta para que essa definição não se possa nunca confundir com as tentativas práticas da sua aplicação; e é ainda assim pertinente porque, embora de maneira abusiva, põe a tónica nos problemas que qualquer definição de democracia, mesmo uma definição muito abstracta, nunca deixa de colocar.
Evidentemente, a primeira questão que se coloca é a da definição de democracia. E espero que não tomem o que vou dizer a seguir como sinal de vaidade, mas antes como sinal de ignorância: das várias definições que conheço de democracia, a que me agrada mais é a minha:
Democracia é a estrutura de práticas tendentes a concretizar o princípio ético segundo o qual todos os adultos em pleno uso das suas faculdades mentais têm o direito a participar ao mesmo nível na escolha do código de comportamentos, definidos ou não na letra da lei, da sociedade em que se inserem.
Este princípio ético ideal é, evidentemente, inexequível na prática, a não ser em comunidades bastante pequenas, o que lhe confere o carácter (necessário, como defendi atrás) de princípio orientador inatingível de todas as formas de organização específica de que, na prática, a democracia se possa valer. Definida desta maneira, ou seja, como ideal absoluto de justiça, vê-se mal como é que a democracia é um mal menor – a não ser para quem ache que há outros fundamentos para a justiça que não a igualdade de direitos de todos. Ora, para quem ache isso, ela também não parece poder ser o mal menor, porque quem não aceite a igualdade defenderá sistemas não democráticos que considera melhores que a democracia.
Mas, e aos igualitaristas como eu, que problemas coloca uma definição assim de democracia? Bom, o problema é que as práticas tendentes a concretizar o princípio de igualdade de direito na definição das normas sociais em sentido lato podem não conduzir a essa igualdade de direito. Já os filósofos especularam muito sobre a possibilidade de práticas irrepreensivelmente democráticas poderem levaram à exclusão ou à repressão de membros de uma comunidade, contanto que haja acordo entre as maiorias a esse respeito. Também os economistas debateram e experimentaram a possibilidade, que é real, de sistemas altamente democráticos permitirem que, numa comunidade hipotética de pessoas com as mesmas posses à partida, uns enriqueçam mais do que outros. Uma questão fundamental é, então, a seguinte: Das “práticas tendentes a concretizar o princípio ético segundo o qual todos os adultos em pleno uso das suas faculdades mentais têm o direito a participar ao mesmo nível na escolha do código de comportamentos de uma comunidade”, quais são as que o fazem de uma forma mais eficaz?
2. A vida familiar como laboratório de democracia
Mas eu não sou filósofo nem economista, sou só homem de família, e a reflexão que trago aqui é, muito concretamente, sobre como a observação do funcionamento de famílias pode contribuir para a discussão da democracia.
Comecemos pelos casais. Passei uma grande parte da minha vida a afirmar que uma das coisas interessantes nestes grupos de duas pessoas que têm frequentemente de tomar decisões sobre a sua vida conjunta era a impossibilidade de democracia e a necessidade de arranjar formas outras de os fazer funcionar. Se tradicionalmente o funcionamento de um casal era sem conflitos, era só porque a mulher não punha em causa ser o marido a mandar. Mas, e agora, quando essa dominação já não é aceite? Pode propor-se que a relação a dois é, pela impossibilidade da decisão da maioria, um espaço privilegiado da aprendizagem da negação de si; ou que o casal é o melhor exemplo da necessidade absoluta de hábitos e rotinas nas relações com os outros, porque ninguém aguenta o peso de poder sempre fazer uma escolha que pode iniciar um conflito; etc. Tudo muito bonito, mas não parece funcionar por aí além. Poder-se-ia até argumentar que tem sido a impossibilidade de encontrar essa forma alternativa e democrática de funcionamento que tem determinado o fracasso da instituição casamento – ou mesmo da instituição vida a dois – nos países menos tradicionalistas…
Pode ser. Mas não tenho hoje tanta certeza como tinha ainda há bem pouco tempo de que não haja mesmo formas democráticas de um grupo de dois tomar decisões. Uma possibilidade (tão óbvia na teoria como pesada na prática…) é a regra de consenso – só as decisões consensuais se aplicam aos dois. Se ele quer pintar a sala de cor-de-rosa e ela de azul, a sala não se pinta. Além de pesada, é uma regra que não se pode aplicar nos casos em que o desacordo é entre um fazer e um não-fazer que não tenham fronteira entre eles: se ele quer sair e ela quer ficar em casa… o quê? Não há acordo, por isso não se faz nada – fica-se em casa, como se está. Mas é precisamente isso que ela quer…
Mais produtiva parece ser a possibilidade de definir à partida áreas de responsabilidade para cada um dos membros do casal ou assentar a priori num sistema de decisões alternadas. Nenhum destes sistemas é sem problemas, mas não são problemas maiores que os da decisão por maioria.
No caso da divisão em áreas de responsabilidade, uma questão óbvia é o da importância relativa dessas áreas, importância essa que pode, além do mais, ir mudando com o tempo. Além disso, pode não haver consenso sobre que área atribuir a cada um…
Quanto à alternância de decisões, o problema é que, por puro acaso, pode acontecer que um decida, na sua vez, o que o outro também quer, sem que o outro, na vez seguinte, decida o que ele quer, pelo que há um que fica a perder… Mas na decisão por maioria também uma pessoa pode votar sempre vencido, participar toda a vida nas tomadas de decisões sem nunca decidir nada.
Parece até mais justa a alternância – se as decisões tomadas contrariam mais um dos membros do casal que o outro, é a um acaso que isso se deve e não à limitação dos seus direitos; ao passo que, num sistema de decisão da maioria, a maioria pode efectivamente conluiar para que o aparente direito de participar nas decisões não seja mesmo mais do que isso – um direito aparente. Eu arranjo já, na minha família, um exemplo claro desta problemática. Quando vou buscar os miúdos à escola, é frequente a Joana e o Alexander não estarem de acordo sobre o caminho a seguir. Como eu e o Alexander preferimos sempre o caminho mais curto e a Joana prefere sempre o caminho com menos lixo (é exactamente assim!), se decidirmos de cada vez por maioria, nunca a Joana verá satisfeito o seu desejo de ir só por ruas sem lixo, coitada dela… Se decidirmos, porém, que de cada vez decide um, ela, por ser minoria, não perde o direito a escolher também o caminho, fá-lo é só de três em três vezes. Qual é a solução mais justa?
Nós preferimos que de cada vez decida um, até porque é assim que os miúdos estão habituados a fazer com a escolha dos filmes que vêem todos os dias, enquanto eu e a Karen fazemos o jantar. Se votassem todos os dias que filme queriam ver, estou convencido de que haveria muito mais problemas. Como o número de filmes em que se pode votar é maior do que o de votantes, ia ser difícil chegar a uma decisão por maioria, cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Podia também acontecer que dois deles se começassem a aliar contra o terceiro, para terem a vantagem de escolher de dois em dois dias em vez de de três em três dia. Bom, provavelmente eles não têm ainda esta capacidade estratégica, mas é pelo menos uma possibilidade e, como a discussão não é tanto sobre os meus filhos mas mais sobre a maior ou menor democraticidade das práticas democráticas, esta possibilidade de perversão da democracia que já referi é uma das que mais importa discutir. Outra alternativa seria estabelecer o consenso como forma de decisão. Eu não considero o consenso um modo de decisão democrático, mas há muito quem assim o considere – e até uma espécie de forma superior da democracia… O que havia de acontecer, digo eu, porque foi sempre assim que vi funcionar a necessidade de consenso, é que quem tivesse a boca maior é que se safava, como se costuma dizer. Por outras palavras, alguém havia de impor aos outros a sua vontade e os mais fracos, conscientes de que sem consenso não haveria filme, haviam de preferir dar o braço a torcer do que não ver filme nenhum…
Conclusões? Conclusões, não há. Quer dizer, não há outras que não sejam aquelas que fui tirando durante esta divagação. Que algumas destas observações triviais sobre tomada de decisões numa família ou noutro grupo pequeno são de interesse para a reflexão do funcionamento da democracia em círculos maiores, parece-me claro. A questão da alternância nas decisões versus tomada de decisão por maioria em cada caso é difícil de aplicar à vida política de um país, mas não é sem interesse reflectir sobre a questão de fundo que lhe subjaz e que vale, essa, para a discussão da democracia no âmbito de uma nação ou até em âmbitos mais alargados: o que importa é montar um sistema justo à partida e em abstracto, independentemente das questões concretas com que ele venha a lidar e das situações em que lide com elas. Mas, e como é se garante a todos o acesso real a alguma decisão – inclusive aos que têm sempre opiniões minoritárias? E, questão anterior a essa: é mesmo imprescindível fazê-lo?
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