02/06/08

Da ideia de base e do seu desenvolvimento

Isto é uma adaptação de uma conversa entre duas personagens de um conto que eu escrevi há uns anos:

“Diga-me lá então... Quais é que você acha que são os requisitos essenciais de uma boa narrativa? Um bom conto, um bom romance, não interessa...”
“Eu diria que o mais importante é que a história propriamente dita, o enredo, seja bom; e que esteja bem contada, bem escrita...”
“Pois, precisamente! É exactamente o que eu acho! E agora, diga me lá, você acha que a capacidade de observação, ou a imaginação, por um lado, e a técnica de escrita, por outro, são qualidades assim tão indissociáveis num indivíduo?”
“O que é que você quer dizer com isso?”
“Bom, o que eu quero dizer é que, para conceber uma boa história é de uma das duas primeiras qualidades que eu mencionei – ou das duas juntas – que você precisa, mas não precisa da terceira para nada. Aliás, você pode inventar uma excelente história que só sabe contar muito mal... ou que mal sabe contar... Por outro lado, para escrever bem, você não precisa dessas qualidades para nada... Nem delas, nem de histórias – um bom escritor escreve bem sobre qualquer assunto – nem que seja a descrição de uma moeda de um florim... E o que eu digo é que se perdem assim muitos talentos, ao exigir essa combinação da capacidade de conceber boas histórias com o saber contá-las bem. Bem vê, há quem tenha grandes ideias que não sabe pôr no papel, e há quem escreva muitíssimo bem e não tenha que contar... Uma maneira de ultrapassar este problema seria trabalhar em conjunto, não lhe parece?”
“É uma perspectiva interessante, e é uma coisa que, embora rara, às vezes acontece de facto. Há escritores que confessam que não são suas certas histórias que contam – ou as tiraram de algum livro e apenas as rescreveram, ou foram-lhes sugeridas por alguém, e eles apenas as redigiram... Mas o normal é que seja o escritor a fazer os dois trabalhos. Até porque as duas capacidades costumam desenvolver-se paralelamente na maior parte dos escritores, porque têm uma mesma origem – vêm ambas da leitura de muitas narrativas.”

Não tenho nada de concordar com as minhas personagens só porque fui eu que inventei o que pensam. Neste caso, concordo muito relativamente… Que se possam separar o enredo de base da narrativa e a sua concretização num conto, numa novela ou num romance, é óbvio. É aliás, o que acontece muitas vezes no cinema, por exemplo, em que uma história preexistente, escrita por uma determinada pessoa, é adaptada por outra pessoa para argumento de um filme, que é realizado por uma terceira pessoa. Mas, por muito que todos os escritores, estou eu convencido, procurem sempre uma boa ideia de história a partir da qual possam desenvolver as suas narrativas, o que distingue uma boa narrativa de uma má narrativa é mais a maneira como se conta do que o que se conta. Evidentemente, a discussão é complicada e depende em grande parte do que se considere “a história”, que é uma coisa que estas duas vozes não discutem. Esta discussão passa também pela discussão dos conceitos de autoria, plágio, etc., e não a quero ter agora aqui. Quero só dizer que a ideia de base do enredo, quer dizer, aquilo que cabe num resumo da narrativa, por exemplo numa enciclopédia ou numa crítica, é completamente irrelevante para o interesse ou para a qualidade dessa mesma narrativa.

Pode argumentar-se que uma novela como Moby Dick deve muito da sua força à ideia de base, mas é mais difícil argumentar o mesmo de Crime e castigo… Uma ideia de base como o retrato que acumula o envelhecer e os crimes de Dorian Gray é uma ideia poderosa à partida, mas não é, só por si, melhor do que, por exemplo, a ideia de herança da memória de alguém através de um transplante, que tem servido de base a algumas histórias em livro e em filme. Não vi o filme The Eye, dos irmãos Pang, nem os seus remakes indiano e americano, e, até prova em contrário, acho que isso de memória corporal ou memória celular é do domínio do fantástico, mas tenho a certeza de que, tivessem Melville, Dostoievski ou Wilde feito um romance sobre uma mulher que, quando lhe põem os olhos de uma morta, começa a ver coisas que essa morta viu em vida, e haveria, de certeza, de sair uma coisa como deve ser…

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