04/06/08

Deve-se dizer “deve dizer‑se” ou deve dizer-se “deve‑se dizer”? (1)

Uma das questões mais vezes colocadas em consultórios linguísticos e mais discutidas entre gramáticos e especialistas de bem-dizer e bem-escrever é a da colocação do pronome objecto em orações em que há dois ou mais verbos, o primeiro, naturalmente, conjugado (“auxiliar” ou não) e o(s) outro(s) em formas não finitas. Para quem ficou um bocado na mesma depois desta definição abstracta da problemática, a questão que eu trato aqui pode sintetizar‑se da seguinte forma: deve-se dizer “deve dizer‑se” ou deve dizer-se “deve-se dizer”?

E começo com uma resposta de José Neves Henriques (professor aposentado, membro do Conselho Científico e director do boletim da Sociedade da Língua Portuguesa) a uma pessoa com uma ciberdúvida [foram notas que eu tomei há anos, já não está a resposta online] sobre se é mais correcto dizer e escrever «Vou-te dizer uma coisa» ou «Vou dizer-te uma coisa»:
«Vejamos estas duas frases:

(1) Vou-te dizer uma coisa.

(2) Vou dizer-te uma coisa.

Ambas estão correctas, mas a frase (1) soa melhor.

Há, até, quem ensine erradamente, dizendo que só é correcta a 2.ª frase, porque o te pertence a dizer e não a vou. Pois pertence. E na frase (1) também pertence. Está ligado a vou, não porque pertença a vou, mas porque a ele se liga na pronúncia. Como pertence a dizer, os brasileiros escrevem não raro assim, suprimindo o hífen: Vou te dizer uma coisa.»
É evidentemente discutível que a frase (1) soe melhor. Isso de soar melhor, pelos vistos, depende muito dos ouvidos de cada um, pelo que era preferível José Neves Henriques ter escrito «soa-me melhor». Mas, quanto ao resto, ele tem toda a razão: Tem razão quando diz que muita gente (puristas, sobretudo) considera que «Vou dizer-te uma coisa» é a única opção correcta; e tem razão quando diz que não se pode inferir da posição do pronome nenhuma ligação a outro verbo que não seja aquele a que ele está naturalmente ligado. Por outras palavras, o facto de o pronome não estar posposto ao verbo não significa que não continue ligado a ele. Se tomarmos qualquer frase só com um verbo em que haja anteposição do pronome, o pronome vem antes do verbo e continua a “pertencer” ao verbo: «Não me lembro de nada». Aliás, este argumento da ligação ao verbo é muito pobre. Quando se diz ou escreve «ela tinha‑me dito», ninguém argumenta que deveria dizer‑se ou escrever‑se «*ela tinha dito‑me» (só porque isso nunca se diz...), mas poderia argumentar‑se que também nesta situação não é ao verbo ter que o pronome pertence, mas antes ao verbo dizer. Ora, qual é de facto a diferença entre dois marcadores temporais/aspectuais como ter e estar (a) [já para não questionar a diferença entre estes e marcadores modais como querer e poder, ou outros verbos, como saber, tentar, etc.]? A questão é interessante, sobretudo, quando muitas pessoas preferem «está‑se fazendo» a «está fazendo‑se» (esta última forma creio que é muito pouca usada hoje em dia), mas, em frases que lhes são directamente correspondentes, tanto semântica como sintacticamente, preferem «está a fazer‑se» a «está‑se a fazer». Estranho!

Se a questão já é complexa em frases do tipo das que aqui analisei, mais complexa se torna em frases em que o sintagma verbal está numa situação em que há normalmente anteposição do pronome. Há muito quem defenda que, nesse caso, se o sintagma verbal for do tipo composto que aqui nos importa, a anteposição “normal” fica sem efeito e o pronome se mantém depois do verbo. Ou seja, todos concordam que é «como se diz» e nunca «*como diz‑se», mas «como deve dizer‑se» é, para alguns, preferível a «como se deve dizer».

É complicado. As regras existem, entre outras coisas, para facilitar a vida de quem acha que é opção demasiado vaga, em caso de hesitação, seguir apenas o seu instinto de falante da língua. Muito bem. O que parece é que mesmo os defensores mais acérrimos da posposição do pronome ao infinitivo não deixam de hesitar em determinadas frases. Por exemplo, uma frase como «ela parece capaz de se opor» não é sempre preferida a «ela parece capaz de opor‑se»? E não é também preferível «ninguém pode acusar‑me de me estar a submeter» a «ninguém pode acusar‑me de estar a submeter‑me»? Talvez não, talvez não... «Como se aceitam tantas coisas pode, sem dúvida alguma, aceitar‑se submeter-se a esta decisão» ou «como se aceitam tantas coisas pode‑se, sem dúvida alguma, aceitar submeter‑se a esta decisão»? A segunda é errada, segundo alguns, mas soa muito melhor aos meus ouvidos... «Volta‑se sempre a descobrir o que já se sabia» ou «volta sempre a descobrir‑se o que já se sabia»? Prefiro, de longe, a primeira, não sei do vosso lado (como dizem os moçambicanos). E haverá alguém que, para ser coerente com a preferência de «pode dizer‑se» a «pode‑se dizer», prefira«pode dizer‑se-o» a «pode‑se dizê‑lo»?

Que confusão! Consultemos os mestres.

Pero Vaz de Caminha escreve que, no Brasil, “a terra é de tal maneira graciosa que, querendo‑a aproveitar, dar‑se-á nela tudo”. É verdade, Pero Vaz de Caminha não é mestre nenhum. E é português de há muito tempo, ainda de antes desta nossa modernidade.

Posso citar antes o Padre António Vieira, esse sim um mestre incontestado. Escrevia ele: “Com uma candeia pode‑se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma cidade”. , Mas o Padre António Vieira também é de um período longínquo do português, há-de haver quem o não queira aqui como juiz…

Já Eça de Queiroz é autoridade não só reconhecida como moderna: “Quando viesse a monção de sudoeste, a chuva cairia, a colheita seria rica, podia‑se esperar”. E ainda, por exemplo: “Mas a isto pode‑se dizer que aos gregos tem faltado uma oportunidade de revelar as suas qualidades industriosas, sagazes, activas, expansivas”.

Entre antigos e modernos, a hesitação parece vir de longe, porque nestes autores encontram‑se também os pronomes pospostos ao infinitivo em contextos do mesmo tipo. A “instabilidade” na posição do pronome em português é tão antiga que já nem parece muito sensato falar de instabilidade – a regra que temos na cabeça deve ser de um tipo a que poderíamos, só para simplificar, chamar “flexível” (de facto, não há regras flexíveis e uma regra deste tipo é forçosamente mais complexa do que uma regra que obrigue o pronome a ter uma posição fixa determinada).

Para voltar ao princípio, que é também chegar ao fim, se deixarmos de lado o hífen, que é apenas uma convenção ortográfica, e não marcarmos na escrita a relação das partículas átonas com o segmento não átono anterior, o que temos numa frase como «deve se dizer» é uma anteposição do se relativamente a dizer exactamente como a do me na frase «foi-se embora sem me dizer»*. Por outras palavras ainda, a discussão nunca pode passar por um hífen que é uma marca usada de forma perfeitamente arbitrária.

«Pois, conversa tens tu muita, mas a gente fica na mesma: deve-se dizer “deve dizer‑se” ou deve dizer-se “deve-se dizer”?»

Eu respondo-lhe já, em redondilha maior a fingir que prosa: Não há, p’ra mim, que se deva nem deixe de se dever. Que cada qual fal’e escreva o que bem lhe parecer. Eu digo bem o que digo, se o disser com’eu quiser. Car’amiga ou car’amigo, diga como lh’aprouver!
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* Nota a 13 de março de 2014: Até hoje, o texto tinha aqui a seguinte frase:
Se quisermos marcar essa ligação fonética, muito bem, escrevamos então «deve-se dizer», mas a lógica obrigar-nos-ia então a escrever «foi-se embora sem‑me dizer». 
Como um leitor anónimo teve a gentileza de notar, em «foi-se embora» deveria implicar igual procedimento em «sem‑me dizer», mas [esqueço-me] de que "foi" é um verbo e "sem", uma preposição", pelo que, se é possível escrever foi-se, é completamente impossível escrever *sem-me, já que, na ortografia portuguesa (e nas outras...), não se podem ligar com hífen pronomes a preposições, nem a palavras de outra categoria que não sejam verbos. Era, por isso, uma proposição disparatada, que resolvi eliminar. Os meus agradecimentos ao leitor que fez o reparo.

Além disso, esta frase levanta, reparo agora, uma questão interessante: as preposições, são em princípio, itens átonos, como se pode observar pelo timbre das vogais, que é sempre o de vogais átonas, mas parece haver contextos (estarem seguidas de outro elemento átono, como aqui) em que se tornam portadoras de acento. Mas não refleti ainda sobre o assunto, é uma observação surgida agora mesmo.

9 comentários:

  1. Uma curiosidade para complementar o texto.

    Na segunda metade do século 18, no período em que Portugal era governado pelo marquês de Pombal e seus cofres enriquecidos por grandes quantidades de ouro embarcadas no Brasil, ocorreu uma sensível mudança na prosódia, ou seja, na maneira como as palavras são pronunciadas, no português falado na Europa. Ainda não se sabe como e por que isso aconteceu. Mas o fato de se seguirem no tempo sugere uma relação de causa e efeito entre as mudanças prosódicas do século 18 e as sintáticas do século 19.

    "Trabalhamos com a hipótese de que o português brasileiro seja muito próximo do português clássico em termos rítmicos", explica a professora Galves, referindo-se como português clássico ao falado nos séculos 16 a 18. "Assim, os padrões prosódicos dos dois serão contrastados, como se fosse uma comparação entre o português clássico e o português europeu moderno", acrescenta.

    Comendo sílabas

    Sabemos que ocorreu a grande mudança prosódica do fim do século 18 principalmente por meio dos comentários sobre apresentações teatrais e representações de sotaques que saíam nos jornais da época. Gonçalves Viana, um foneticista português do século 19, por exemplo, queixava-se de que os atores da época pronunciavam apenas sete ou oito sílabas das dez dos decassílabos de Camões. Eles simplesmente "comiam" as sílabas que vinham antes da tônica, as pré-tônicas.

    Isso ocorre até hoje. Em Portugal, muitas vezes, as vogais pré-tônicas desaparecem por completo na fala. No Brasil, porém, elas são mantidas. "Esse é o aspecto mais saliente da mudança fonológica", diz a professora Galves. "Nós o interpretamos como uma mudança rítmica, ou seja, uma mudança na maneira como as sílabas átonas se reagrupam com as sílabas tônicas", prossegue.

    Qual é a relação entre a pronúncia das vogais pré-tônicas e a sintaxe dos pronomes clíticos e por que a redução das primeiras afeta a colocação dos segundos?
    Isso é uma das grandes questões do projeto. Do ponto de vista do lingüista norte-americano Noam Chomsky, a gramática muda na aquisição quando, por por algum motivo, uma geração de crianças fixa um ou mais parâmetros de maneira diferente dos pais. Galves explica que muitos lingüistas hoje defendem que, na aquisição de sua língua materna, as crianças usam "pistas" prosódicas indicativas das estruturas subjacentes aos enunciados. Se a prosódia dos adultos muda, as "pistas" também mudarão, levando, eventualmente, as crianças a uma gramática diferente.

    Entretanto, é difícil saber por que a prosódia mudou e, em decorrência, a gramática. Nos Sermões , por exemplo, o padre Antônio Vieira usa basicamente a ênclise na colocação dos pronomes. Outros autores da época e mesmo Vieira, em suas cartas, davam preferência à próclise. A lingüista portuguesa Ana Maria Martins, da Universidade de Lisboa, participante do projeto, considera Vieira, por isso, um pioneiro do português moderno. Para a professora Galves, não é bem assim. Vieira, em vez de olhar para o futuro, estaria voltando ao passado.

    Ele seria, assim, um purista, talvez como maneira de se contrapor ao uso do castelhano, que ganhou terreno enquanto Portugal esteve sob o domínio da Espanha, de 1580 a 1640. [Na origem da fase documentada da língua portuguesa, no século 12, o normal eraPedro viu-me . No século 15, houve uma mudança ePedro me viu tornou-se a preferida. No decorrer do século 19, porém, houve na Europa outra troca e a ênclise tornou-se a única opção.]

    "Na segunda metade do século 18, uma razão do mesmo tipo pode ter levado à adoção de uma maneira de falar que reforçou a tendência, já existente na língua portuguesa, a reduzir as vogais átonas", diz a pesquisadora da Unicamp. "Mas essa discussão é extralingüística e não há nenhuma evidência que possa indicar o porquê da mudança prosódica", acrescenta.


    revistapesquisa.fapesp.br/?art=694&bd=1&pg=1&lg=

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  2. Senhor anónimo ou senhora anónima, não quer por favor identificar-se e deixar-me um contacto imêilico para continuar a conversa doutra maneira? Não vejo assim uma relação muito directa entre o meu texto e este texto da revista Pesquisa (que agradeço!), mas tenho comentários a este último que não cabem bem aqui neste espaço de comentários (que confusão!)...

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  3. Na verdade eu "clonei" o texto de uma discussão de outro blog que acompanho:
    http://brasiliano.wordpress.com/2008/09/01/ensinar-portugues-ou-estudar-o-brasileiro/

    Achei o texto muito interessante e pensei que caberia aqui.

    Eduardo Torres

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  4. Caro senhor, embora o felicite pelo seu fantástico artigo, considero que deveria ser mais rigoroso em certos exemplos que apresenta.

    Repare: quando se refere à utilização do hífen, sugere que a sua "obrigatoriedade/ocorrência" em «foi-se embora» deveria implicar igual procedimento em «sem‑me dizer», mas esquece-se de que "foi" é um verbo e "sem", uma preposição...

    Obviamente, no melhor pano cai a nódoa... :)

    Mais uma vez, os meus parabéns pela qualidade do artigo.

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  5. Caro anónimo,

    Tem toda a razão, deveria ter sido acrescentado que mesmo que eu queira marcar a ligação fonética, a ortografia portuguesa não admite que se ligue com hífen uma preposição a um pronome. Vou emendar, referindo o seu comentário.

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    1. Vitor, porque algumas pessoas pronunciam a letra 7 chete ou xete e 5 chinco ou xinco ao invés com s que é a formal correcta? Por favor, eu preciso tirar essa dúvida.

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  6. Para que fique claro: no português padrão, em locuções verbais com verbo principal no infinitivo ou gerúndio, tanto se pode ligar o clítico ao verbo auxiliar como ao verbo principal, estando, portanto, corretas as formas «pode-se dizer» e «pode dizer-se»; o hífen é obrigatório. Se houver um dos atratores do clítico (palavras negativas, pronomes relativos, conjunções subordinativas, etc), o clítico ficará antes ou depois da locução: «não se pode dizer» ou «não pode dizer-se», «afirmei que se podia dizer» ou «afirmei que podia dizer-se», etc. Se o verbo principal estiver no particípio, o clítico ficará depois do auxiliar, ou antes dele em caso de atratores: «foi-me dito» ou «não me foi dito». Não se liga preposicões a pronomes oblíquos átonos por hífen: «...sem lhe falar».

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  7. Muito obrigado, caro anónimo, pelo resumo, claríssimo e conciso, das regras sintáticas e ortográficas que se aplicam aos casos aqui discutidos. Peço desculpa de não ter respondido antes; tinha-me esquecido de agradecer na altura e o seu comentário tinha ficado esquecido. Dei com ele agora ao fazer uma limpeza do meu Outlook.

    Aproveito para acrescentar uma coisa curiosa. É certo que a ortografia portuguesa não admite que se ligue com hífen uma preposição a um pronome, mas há um caso em que a tradição consagra uma ligação com hífen entre uma conjunção (creio que só se usa em casos em que "mais" é uma conjunção) e uma palavra átona, um artigo definido: mai-lo, mai-la, mai-los, mai-las ("Dança de roda mai-las moças o coveiro"). Claro, é forma cada vez mais rara... Creio que essa ligação por hífen surgiu porque se trata de contração que implica uma "anomalia" fonética, a mesma que encontramos na ligação das formas verbais em -s,-r e -z com o pronome acusativo. É curioso que, em casos como "nem/não no vi", já a tradição ortográfica não liga com hífen o advérbio e o clítico, por muito que desta atração resulte também uma "anomalia" fonética.

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  8. Caro Elias, as pessoas não pronunciam o c ou s como x ou ch, embora lhe possa parecer que sim. As pessoas de algumas regiões de Portugal (Beiras, Trás-os-Montes) pronunciam o som /s/ com a língua a tocar nos alvéolos, mas não como ela a tocar no palato, como no x ou ch. Quer dizer, essas pessoas distinguem sempre são de chão, naturalmente. Tente ouvir com muita atenção, da próxima vez que encontrar uma pessoa com essa pronúncia e verá que não é ch que dizem. Veja aqui um pouco da história desses sons.

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