É provável que mesmo o mais revolucionário dos revolucionários do séc. XVIII não conseguisse imaginar uma sociedade tão igualitária, tão democrática e tão justa como aquelas em que muitos de nós vivemos hoje – já para não falar, é claro, de uma vida tão farta, tão longa e tão confortável como a nossa. Por não conseguir imaginar uma sociedade assim, não a podia reivindicar, claro está. Estou convencido de que as noções de igualdade e justiça social em que assentavam as reivindicações progressistas dessa época eram relativamente limitadas em comparação com as noções de igualdade e justiça que temos hoje interiorizadas. Basta lembrarmo-nos de que direitos que são hoje óbvios para toda a gente só há muito pouco tempo o são; e de que nem as pessoas mais progressistas de há dois séculos consideravam realmente a possibilidade de igualdade efectiva de direitos entre pessoas de todas as classes, sexos e origens étnicas. A própria ideia de direito à autodeterminação dos povos era demasiado ousada para ser levada a sério pela esquerda de há 150 anos.
Há sempre alguns aventureiros do pensamento que se adiantam na moral e todos os seus contemporâneos, mas são tão poucos que não chegam a constituir uma “corrente de pensamento”. John Stuart Mill foi sem dúvida um homem fora do seu tempo em muitos aspectos, sobretudo na crítica ao colonialismo inglês e na defesa da igualdade de direitos de mulheres e homens. Mas talvez seja a maneira como ele defende a liberdade de expressão que, no que eu li dele, mais me surpreendeu pela sua actualidade. E um dos seus argumentos fundamentais a favor da completa liberdade de expressão mesmo das ideias mais radicais – que tanto chocou os contemporâneos – assenta precisamente nessa consciência de que os extremismos mais ousados e mais minoritários de um período histórico podem bem vir a ser ideias amplamente partilhadas numa época posterior.
É um exercício interessante tentar compreender quais as novas propostas morais que se começam a delinear e que têm possibilidades de vir a alcançar grandes consensos num futuro próximo, de vir a fazer parte da ideologia dominante, digamos assim. Uma delas, estou eu em crer, é a extensão da noção de direitos – e, por conseguinte, de protecção legal efectiva – aos vizinhos mais próximos da humanidade, os animais. Eu ainda sou um humanista clássico, digamos assim, e não me consigo preocupar com o sofrimento dos borregos enquanto vejo, à minha volta, pessoas a passar mal e a morrer por causas que está na nossa mão evitar; e assumo perfeitamente a dentição e o sistema digestivo de omnívoro que tenho sem grandes remorsos – sou bicho e, como outros bichos que há, mato bichos bichos para os comer, pronto. Mas tenho a certeza de que muita gente que relativamente a outras questões terá posições morais semelhantes às minhas me considera, neste aspecto, um perigoso reaccionário… E é bem possível que, daqui por uns anos, já não reste desta minha postura senão a recordação de ter sido uma barbaridade dos tempos passados.
A ideia deste texto veio-me de uma notícia de um jornal dinamarquês que me mandou um amigo: um grupo de estudantes de jornalismo filmou-se a matar, cozinhar e comer um gato e pôs tudo na net. Houve muita gente a levar isso muito a mal, mas as intenções dos futuros jornalistas eram as melhores: lançar o debate sobre por que há-de um gato valer mais aos olhos da maior parte das pessoas do que uma vaca ou um porco – ou uma sardinha, se quisermos levar as coisas até ao fim... É esta, de facto, a primeira questão que terão de resolver os proponentes do alargamento do conceito de humanidade à sua vizinhança: todos os animais são nossos vizinhos, mas haverá uns que são mais vizinhos do que os outros?
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