Flora vai ao banco levantar o vencimento. Recebeu um cheque em dólares americanos. Quando chega à caixa, é informada de que o banco, infelizmente, está sem dólares naquele momento, mas que, se ela quiser, pode levantar o cheque em meticais. Flora quer saber qual é a taxa de câmbio do banco e o rapaz da caixa diz-lhe que é cerca de 25 meticais por dólar, e que depois tem de pagar mais uma taxa que o banco cobra pela operação.
“Você acha que eu vou aceitar esse preço, responde Flora, quando é só sair a porta e pagam-me 27 ou mais?”
É a pura verdade. No jardim em frente ao banco estão os rapazes todos que trocam dinheiro no mercado negro. Hoje em dia não há grande diferença entre o valor das divisas no banco e no mercado negro, mas 27 meticais por dólar ela consegue de certeza.
“Iá, tem razão, diz-lhe o caixa, mas se quiser a 27 meticais por dólar eu também lhe troco a esse preço.”
Uma história real e fresquinha, passada hoje. Não sei como não se mudaram para aqui todos os libertarianistas e outros liberais radicais: se há país onde o mercado impera e o estado não existe, como eles acham que deve ser, esse país é Moçambique.
25/02/09
Ciência e bom senso: la vie en prose (1)
Está bastante difundida a concepção de ciência como forma de conhecimento “à parte”. É, em certa medida, compreensível essa ideia, porque muito do trabalho científico exige um grau de especialização que o torna inacessível à maior parte das pessoas fora da área técnica a que ele diz respeito (inclusive, naturalmente, a cientistas de outras áreas); mas essa distância é característica da especialização, não da ciência como tal: para mim, é incompreensível o trabalho de um compositor, por exemplo...
Na realidade, estou eu em crer, não há nada de específico na maneira de pensar ou de agir de um cientista nem no objecto do seu trabalho que distingam a ciência de outras áreas da actividade humana. Coloca-se um problema e tenta-se encontrar uma resposta, é só isso. E, sobretudo, não há nenhuma maneira especial de confirmar ou infirmar as proposições a que o trabalho científico vai chegando. Quer se trate dos efeitos do aumento ou da redução dos níveis de receptores D2 de dopamina, da aniquilação dos dinossauros por uma parte do asteróide Baptistina, da presença de tribos célticas no Norte da Península Ibérica, da geração das formas irregulares dos verbos através de regras computacionais da nossa mente, de o Pedro ter devolvido à Luísa o livro que ela diz que ele não lhe devolveu, ou da existência de fadas (deixo-vos decidir o que, desta lista, é ou não passível de ser estudado “cientificamente”…), as afirmações que se fazem são baseadas em observáveis e outras evidências ou não, lógicas ou não, e, em última análise, verdadeiras ou falsas [Em última análise, digo bem, o que não significa que seja óbvio saber o que é verdade e o que não é. A plausibilidade do valor de verdade e, sobretudo, a possibilidade do valor de verdade, no entanto, são normalmente mais óbvias do que muitos pretendem!].
Ser cuidadoso e sistemático, usar instâncias de controlo e duvidar de generalizações fáceis são características de todo o raciocínio rigoroso, mas não delineiam bem a fronteira (que eu digo que, no fundo, não há) entre ciência e não-ciência. Até porque muitas teorias que, numa determinada altura, são exclusivamente aceites pela comunidade científica – ou pela comunidade académica em geral –, passam, mais tarde a fazer parte do chamado senso comum.
Na realidade, estou eu em crer, não há nada de específico na maneira de pensar ou de agir de um cientista nem no objecto do seu trabalho que distingam a ciência de outras áreas da actividade humana. Coloca-se um problema e tenta-se encontrar uma resposta, é só isso. E, sobretudo, não há nenhuma maneira especial de confirmar ou infirmar as proposições a que o trabalho científico vai chegando. Quer se trate dos efeitos do aumento ou da redução dos níveis de receptores D2 de dopamina, da aniquilação dos dinossauros por uma parte do asteróide Baptistina, da presença de tribos célticas no Norte da Península Ibérica, da geração das formas irregulares dos verbos através de regras computacionais da nossa mente, de o Pedro ter devolvido à Luísa o livro que ela diz que ele não lhe devolveu, ou da existência de fadas (deixo-vos decidir o que, desta lista, é ou não passível de ser estudado “cientificamente”…), as afirmações que se fazem são baseadas em observáveis e outras evidências ou não, lógicas ou não, e, em última análise, verdadeiras ou falsas [Em última análise, digo bem, o que não significa que seja óbvio saber o que é verdade e o que não é. A plausibilidade do valor de verdade e, sobretudo, a possibilidade do valor de verdade, no entanto, são normalmente mais óbvias do que muitos pretendem!].
Ser cuidadoso e sistemático, usar instâncias de controlo e duvidar de generalizações fáceis são características de todo o raciocínio rigoroso, mas não delineiam bem a fronteira (que eu digo que, no fundo, não há) entre ciência e não-ciência. Até porque muitas teorias que, numa determinada altura, são exclusivamente aceites pela comunidade científica – ou pela comunidade académica em geral –, passam, mais tarde a fazer parte do chamado senso comum.
18/02/09
Meditação em forma de pão
A seta já contém o alvo, mas só percorre a seta aquele que lhe conhece o alvo;
assim, é de olhos vendados que o grande atirador alveja.
António Maria Lisboa
Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... J. Guimarães Rosa
assim, é de olhos vendados que o grande atirador alveja.
António Maria Lisboa
Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... J. Guimarães Rosa
Desde que se inventou a agricultura que os cereais são a base da alimentação humana, mas a maneira de os preparar varia muito de sítio para sítio. Na Europa (e cá estou eu outra vez, sem querer, às voltas com a identidade europeia...), há muito tempo que é o pão a maneira mais comum de comer cereais. Como temos hoje, nos países ricos, uma alimentação muito variada, esquecemo-nos de que expressões como ganhar o pão de cada dia ou faltar a alguém o pão para a boca eram, antigamente, para serem literalmente entendidas. Aliás, há ainda algumas maneiras de designar o dinheiro que revelam bem que o pão era o mais fundamental dos bens de consumo: chama-se-lhe massa, por exemplo, e não é com certeza do macarrão que termo vem, mas da massa do pão, precisamente, como aliás o inglês dough, que é também massa (de pão) e também uma maneira normal de referir os carcanhóis. E pronto, para repositório de trivialidades, não está má a introdução. Mas vejam lá agora aonde eu quero chegar:
Lembro-me de ler, era eu rapaz, um livro de Robert M. Pirsig que estava na moda nessa altura e que se chamava Zen e a arte da manutenção de motocicletas. Não me lembro já bem do que dizia o livro, já lá vão muitos anos, mas lembro-me de o achar cheio de banalidades, exactamente como o meu parágrafo anterior, só que apresentadas como se tratasse da descoberta da pólvora. Há uma ideia forte do livro[1], porém, que me seduziu muito e que continuo a achar interessante: a ideia de que uma parte do nosso mal-estar quotidiano nos vem da incapacidade de lidarmos com os instrumentos de que nos servimos.
Em comunidades pequenas, não urbanas, sem especialização do trabalho e em que, por isso mesmo, se usa um número limitado de utensílios, toda a gente sabe mais ou menos construir ou reparar os instrumentos de que se serve. Mas nós hoje não. Nem um esquentador, nem um fogão, máquinas primitivas que são, nós sabemos arranjar…
Podemos levar mais longe a reflexão e passar dos instrumentos aos alimentos, que são, em última análise, um aspecto ainda mais fundamental da nossa vida. Continuamos a fazer comida, vá lá, mas no percurso do prado ao prato, como se diz, só lhe começamos a tocar a meio caminho, quando não só já perto da chegada. Vem-nos parar às mãos tudo já pronto, ou quase, a entrar para a panela[2]. Há muitas coisas que só compramos e que nunca fazemos, que não sabemos fazer nós próprios – conservas, enchidos, queijos, que sei eu?... E pão…
Ora, da mesma forma que é saudável esvaziar a cabeça em frente a um motor a dois tempos desafinado ou a um autoclismo com fuga de água, as chavinhas todas alinhadas, na posição do lótus (as chaves ou nós, tanto faz), também é saudável alinhar facas e recipientes vários de cozinha, na calma de um fim-de-semana, e preparar o seu próprio pâté de tête (pode ser cabeça de xara, para ser mais à portuguesa), as suas próprias salsichas ou as suas próprias conservas de beterraba. E mais repousante, mais saudável, mais gratificante, mais tudo isso e mais ainda, mais zen, enfim, … é fazer o seu próprio pão!
Zen e a arte de fazer pão, então. O que se pode dizer a isto? O que diz o zen do pão? É difícil dizer com certeza o que o zen diz seja lá do que for, porque o zen diz muita coisa e não diz nada, e nem sempre sabe bem o que diz, senão não seria zen; mas acho que não ofendo nenhum simpatizante de disciplina se disser que, no zen, é sempre individual o caminho que nos leva para além da nossa enganosa individualidade. Pois bem, assim é também com o pão: os mestres, incluindo os mestres padeiros, são sempre e só uma ilusão. Uma ilusão mais. Vou dar-vos uma receita, mas esta receita é uma receita que eu fui desenvolvendo ao longo dos anos e que, por isso mesmo, me serve mais a mim do que a qualquer outra pessoa. Cabe-vos agora a vocês pegar nela (ou noutra qualquer, para o caso tanto faz) e encontrar a receita de pão que seja realmente vossa, o vosso lugar único na panificação, o pão da vossa mais alta e perfeita iluminação…
Agarrem em 6 decilitros de água tépida (não se pode sentir quente, tem de estar abaixo da temperatura do corpo) e despejem-nos num recipiente grande. Deitem lá dentro duas colheres de sopa de sal fino e duas colheres de sopa de mel e, depois, 250 gramas de farinha de trigo. Mexam bem com uma colher de pau grande, grossa e resistente. Agora, juntem-lhe mais 600/700 gramas de ingredientes que vos pareçam que ficam bem no vosso pão. Eu ponho cerca de 350 gramas de grão de trigo cozido[3], uns 150 gramas de flocos de aveia, um bocado de linhaça, um punhado de gergelim, umas pevides e umas sementes de girassol e um bocado de caju triturado, mas nada vos obriga a seguir esta proposta. Mexam tudo bem e juntem agora a massa azeda.
Ah, pois, tinha-me esquecido de dizer no início: é preciso ter massa azeda. Eu tenho a minha há tanto tempo, que já nem me lembro de a ter feito, mas sei que fui eu que a fiz e sei como se faz: junta-se 1,5 decilitros de iogurte, 2,5 dl de farinha de centeio e 1 colher de chá de sal numa tigela, mexe-se, tapa-se e deixa-se ficar assim uns dias à temperatura ambiente (o mais quente possível), até começar a borbulhar. A massa azeda está então pronta para usar. Guarda-se no frigorífico e quanto mais se a usa melhor vai ficando. E agora que já temos massa azeda, voltemos ao nosso pão:
Junta-se então a massa azeda à massa e mexe-se. Junta-se mais 3 decilitros de água tépida e mexe-se tudo bem outra vez. Agora, é juntar mais farinha – meio quilo para começar e depois logo se vê. Se gostarem de centeio e tiverem farinha de centeio, muito bem. Se não, podem usar farinha de trigo, que é o que faço, e também fica bom. Depois de mexer muito bem, tirem uns 300 gramas de massa e guardem no frigorífico – é a vossa massa azeda para a próxima vez.
Em seguida, há que verificar a consistência. Conforme o que lá tenham posto dentro e o tipo de farinha que utilizarem, a massa pode estar agora mais ou menos líquida. Devem ir acrescentando farinha até ela ser difícil de mexer com a colher de pau, até começarem a pensar que «isto de não fazer exercício nenhum não pode continuar…». Ou, dito de outra maneira, talvez mais zen, até a massa olhar assim para vocês mesmo com cara de massa de pão. Pronto.
Pega-se depois numa forma daquelas a que acho que se chama “de bolo inglês”[4] (vale a pena investir numa boa, que o barato sai caro…), barra-se a dita com manteiga abundante e despeja-se lá dentro a massa. Se a massa escorrer bem do recipiente onde a tinham para a forma, é porque está líquida demais: a massa deve ser renitente, cair muito devagarinho e pedir, no fim, para se lhe puxar o resto com a colher de pau...
Tapem o futuro pão com um pano e deixem ficar a levedar entre 10 e 12 horas, talvez até um bocadinho mais, conforme a temperatura do sítio onde o deixam, e conforme gostem do pão com um travo mais ou menos azedo: quanto mais tempo estiver a levedar e quanto mais alta for a temperatura, mais azedo fica, claro está.
Passado esse meio dia, forno com ele. Ponham-no no forno a 200 graus durante 70 minutos (a contar do momento em que ligam o forno já com a forma lá dentro) e depois subam para 250 graus durante 25 minutos. Tirem o pão do forno e barrem com a manteiga a parte de cima do pão (e as paredes laterais, se quiserem, mas sem desenformar, só espalhando a manteiga com uma faca entre a forma e o pão), que é para ficar a crosta tostada . Se não gostarem da crosta tostada, escusado será dizer, saltem esta etapa.
Só faltam agora mais uns 10 minutinhos no forno, ainda a 250 graus. Não se esqueçam de desenformar o pão mal o tirem do forno e de o deixar em cima de uma grelha (a grelha do fogão, por exemplo), de maneira a que apanhe ar de todos os lados. E bom proveito!
[P. S.: Música e pão são duas coisas que ligam sempre bem, e é quase certo que o pão fica melhor se o fizerem ao som de uma música que vos agrade e que achem adequada à panificação. Como se trata de um exercício zen, porém, não se aconselha nada de muito espiritual, porque a espiritualidade (penso que nisso também todos os simpatizante desta disciplina estarão de acordo comigo…) é mais uma armadilha da mente, uma das muitas formas que toma a ilusão que nos aprisiona. Como se trata de desfazer o espírito em massa, em vez de o elevar, talvez seja mais apropriada música com os pés solidamente assentes na terra, como, sei lá..., Béla Bartók, Digable Planets, Carlos Paredes ou Art Blakey & The Jazz Messengers.]
__________________
[1] De facto, como já não me lembro bem do livro, não posso garantir que isto lá seja dito assim. É capaz de ser um truque da minha memória, a impingir-me como sendo ideia do Pirsig uma fantasista interpretação minha de outra coisa que ele diga, mas isso agora não importa muito…
[2] Eu não podia dizer isto ali onde apareceu a chamada para esta nota de rodapé, porque estragava o texto todo, mas digo agora aqui (…muito baixinho…): Se, por um lado, perdemos a noção do trabalhão que dá cultivar cenouras e batatas e, sobretudo, da nossa própria animalidade (deixámos de matar), por outro, ainda bem que se compra a carninha já lavada e embalada. Contra calçar umas socas e meter os pés à lama para ir buscar uns legumes ao quintal, não tenho absolutamente nada, pelo contrário; mas sei bem o que é ter de tratar da carne de porcos e vacas desde o abate até à panela e há uma altura, digo-vos eu, em que aquele cheiro nauseabundo a carne morta não nos larga, nem nos sonhos, e começamos muito seriamente a considerar a possibilidade de nos tornarmos vegetarianos…
[3] Tem de se cozer primeiro o grão de trigo, senão, mesmo que se deixe de molho muito tempo, fica sempre duro demais. Uma pessoa arrisca-se depois a estalar um dente ao comer o pão.
[4] Eu nunca lavo a forma, porque aprendi o preceito clássico que formas de pão não se lavam, limpam-se só com papel ou com um pano, mas é mais mania do que outra coisa qualquer, porque eu conheço gente que faz pão excelente e lava as formas…
Lembro-me de ler, era eu rapaz, um livro de Robert M. Pirsig que estava na moda nessa altura e que se chamava Zen e a arte da manutenção de motocicletas. Não me lembro já bem do que dizia o livro, já lá vão muitos anos, mas lembro-me de o achar cheio de banalidades, exactamente como o meu parágrafo anterior, só que apresentadas como se tratasse da descoberta da pólvora. Há uma ideia forte do livro[1], porém, que me seduziu muito e que continuo a achar interessante: a ideia de que uma parte do nosso mal-estar quotidiano nos vem da incapacidade de lidarmos com os instrumentos de que nos servimos.
Em comunidades pequenas, não urbanas, sem especialização do trabalho e em que, por isso mesmo, se usa um número limitado de utensílios, toda a gente sabe mais ou menos construir ou reparar os instrumentos de que se serve. Mas nós hoje não. Nem um esquentador, nem um fogão, máquinas primitivas que são, nós sabemos arranjar…
Podemos levar mais longe a reflexão e passar dos instrumentos aos alimentos, que são, em última análise, um aspecto ainda mais fundamental da nossa vida. Continuamos a fazer comida, vá lá, mas no percurso do prado ao prato, como se diz, só lhe começamos a tocar a meio caminho, quando não só já perto da chegada. Vem-nos parar às mãos tudo já pronto, ou quase, a entrar para a panela[2]. Há muitas coisas que só compramos e que nunca fazemos, que não sabemos fazer nós próprios – conservas, enchidos, queijos, que sei eu?... E pão…
Ora, da mesma forma que é saudável esvaziar a cabeça em frente a um motor a dois tempos desafinado ou a um autoclismo com fuga de água, as chavinhas todas alinhadas, na posição do lótus (as chaves ou nós, tanto faz), também é saudável alinhar facas e recipientes vários de cozinha, na calma de um fim-de-semana, e preparar o seu próprio pâté de tête (pode ser cabeça de xara, para ser mais à portuguesa), as suas próprias salsichas ou as suas próprias conservas de beterraba. E mais repousante, mais saudável, mais gratificante, mais tudo isso e mais ainda, mais zen, enfim, … é fazer o seu próprio pão!
Zen e a arte de fazer pão, então. O que se pode dizer a isto? O que diz o zen do pão? É difícil dizer com certeza o que o zen diz seja lá do que for, porque o zen diz muita coisa e não diz nada, e nem sempre sabe bem o que diz, senão não seria zen; mas acho que não ofendo nenhum simpatizante de disciplina se disser que, no zen, é sempre individual o caminho que nos leva para além da nossa enganosa individualidade. Pois bem, assim é também com o pão: os mestres, incluindo os mestres padeiros, são sempre e só uma ilusão. Uma ilusão mais. Vou dar-vos uma receita, mas esta receita é uma receita que eu fui desenvolvendo ao longo dos anos e que, por isso mesmo, me serve mais a mim do que a qualquer outra pessoa. Cabe-vos agora a vocês pegar nela (ou noutra qualquer, para o caso tanto faz) e encontrar a receita de pão que seja realmente vossa, o vosso lugar único na panificação, o pão da vossa mais alta e perfeita iluminação…
Agarrem em 6 decilitros de água tépida (não se pode sentir quente, tem de estar abaixo da temperatura do corpo) e despejem-nos num recipiente grande. Deitem lá dentro duas colheres de sopa de sal fino e duas colheres de sopa de mel e, depois, 250 gramas de farinha de trigo. Mexam bem com uma colher de pau grande, grossa e resistente. Agora, juntem-lhe mais 600/700 gramas de ingredientes que vos pareçam que ficam bem no vosso pão. Eu ponho cerca de 350 gramas de grão de trigo cozido[3], uns 150 gramas de flocos de aveia, um bocado de linhaça, um punhado de gergelim, umas pevides e umas sementes de girassol e um bocado de caju triturado, mas nada vos obriga a seguir esta proposta. Mexam tudo bem e juntem agora a massa azeda.
Ah, pois, tinha-me esquecido de dizer no início: é preciso ter massa azeda. Eu tenho a minha há tanto tempo, que já nem me lembro de a ter feito, mas sei que fui eu que a fiz e sei como se faz: junta-se 1,5 decilitros de iogurte, 2,5 dl de farinha de centeio e 1 colher de chá de sal numa tigela, mexe-se, tapa-se e deixa-se ficar assim uns dias à temperatura ambiente (o mais quente possível), até começar a borbulhar. A massa azeda está então pronta para usar. Guarda-se no frigorífico e quanto mais se a usa melhor vai ficando. E agora que já temos massa azeda, voltemos ao nosso pão:
Junta-se então a massa azeda à massa e mexe-se. Junta-se mais 3 decilitros de água tépida e mexe-se tudo bem outra vez. Agora, é juntar mais farinha – meio quilo para começar e depois logo se vê. Se gostarem de centeio e tiverem farinha de centeio, muito bem. Se não, podem usar farinha de trigo, que é o que faço, e também fica bom. Depois de mexer muito bem, tirem uns 300 gramas de massa e guardem no frigorífico – é a vossa massa azeda para a próxima vez.
Em seguida, há que verificar a consistência. Conforme o que lá tenham posto dentro e o tipo de farinha que utilizarem, a massa pode estar agora mais ou menos líquida. Devem ir acrescentando farinha até ela ser difícil de mexer com a colher de pau, até começarem a pensar que «isto de não fazer exercício nenhum não pode continuar…». Ou, dito de outra maneira, talvez mais zen, até a massa olhar assim para vocês mesmo com cara de massa de pão. Pronto.
Pega-se depois numa forma daquelas a que acho que se chama “de bolo inglês”[4] (vale a pena investir numa boa, que o barato sai caro…), barra-se a dita com manteiga abundante e despeja-se lá dentro a massa. Se a massa escorrer bem do recipiente onde a tinham para a forma, é porque está líquida demais: a massa deve ser renitente, cair muito devagarinho e pedir, no fim, para se lhe puxar o resto com a colher de pau...
Tapem o futuro pão com um pano e deixem ficar a levedar entre 10 e 12 horas, talvez até um bocadinho mais, conforme a temperatura do sítio onde o deixam, e conforme gostem do pão com um travo mais ou menos azedo: quanto mais tempo estiver a levedar e quanto mais alta for a temperatura, mais azedo fica, claro está.
Passado esse meio dia, forno com ele. Ponham-no no forno a 200 graus durante 70 minutos (a contar do momento em que ligam o forno já com a forma lá dentro) e depois subam para 250 graus durante 25 minutos. Tirem o pão do forno e barrem com a manteiga a parte de cima do pão (e as paredes laterais, se quiserem, mas sem desenformar, só espalhando a manteiga com uma faca entre a forma e o pão), que é para ficar a crosta tostada . Se não gostarem da crosta tostada, escusado será dizer, saltem esta etapa.
Só faltam agora mais uns 10 minutinhos no forno, ainda a 250 graus. Não se esqueçam de desenformar o pão mal o tirem do forno e de o deixar em cima de uma grelha (a grelha do fogão, por exemplo), de maneira a que apanhe ar de todos os lados. E bom proveito!
[P. S.: Música e pão são duas coisas que ligam sempre bem, e é quase certo que o pão fica melhor se o fizerem ao som de uma música que vos agrade e que achem adequada à panificação. Como se trata de um exercício zen, porém, não se aconselha nada de muito espiritual, porque a espiritualidade (penso que nisso também todos os simpatizante desta disciplina estarão de acordo comigo…) é mais uma armadilha da mente, uma das muitas formas que toma a ilusão que nos aprisiona. Como se trata de desfazer o espírito em massa, em vez de o elevar, talvez seja mais apropriada música com os pés solidamente assentes na terra, como, sei lá..., Béla Bartók, Digable Planets, Carlos Paredes ou Art Blakey & The Jazz Messengers.]
__________________
[1] De facto, como já não me lembro bem do livro, não posso garantir que isto lá seja dito assim. É capaz de ser um truque da minha memória, a impingir-me como sendo ideia do Pirsig uma fantasista interpretação minha de outra coisa que ele diga, mas isso agora não importa muito…
[2] Eu não podia dizer isto ali onde apareceu a chamada para esta nota de rodapé, porque estragava o texto todo, mas digo agora aqui (…muito baixinho…): Se, por um lado, perdemos a noção do trabalhão que dá cultivar cenouras e batatas e, sobretudo, da nossa própria animalidade (deixámos de matar), por outro, ainda bem que se compra a carninha já lavada e embalada. Contra calçar umas socas e meter os pés à lama para ir buscar uns legumes ao quintal, não tenho absolutamente nada, pelo contrário; mas sei bem o que é ter de tratar da carne de porcos e vacas desde o abate até à panela e há uma altura, digo-vos eu, em que aquele cheiro nauseabundo a carne morta não nos larga, nem nos sonhos, e começamos muito seriamente a considerar a possibilidade de nos tornarmos vegetarianos…
[3] Tem de se cozer primeiro o grão de trigo, senão, mesmo que se deixe de molho muito tempo, fica sempre duro demais. Uma pessoa arrisca-se depois a estalar um dente ao comer o pão.
[4] Eu nunca lavo a forma, porque aprendi o preceito clássico que formas de pão não se lavam, limpam-se só com papel ou com um pano, mas é mais mania do que outra coisa qualquer, porque eu conheço gente que faz pão excelente e lava as formas…
13/02/09
E onde mora, por favor, Dona Europa, essa cachopa, filha de D. Agenor?
… Pus-me então a especular: o que é que dá à Europa unidade, que já nem falo de união? E pensei: «Para me lançar na pesquisa de uma identidade europeia, o ideal seria aplicar o velho preceito que diz que “um gato é um gato, um cão é um cão, e uma coisa é aquilo que as outras não são”» – só devia considerar verdadeiramente europeu o que fosse comum a toda a Europa e não se achasse nunca fora dela!
Mas ‘tá quieto! Seguindo o princípio a rigor, não havia de ir muito longe...; e a conseguir chegar a algum lado, os poucos resultados seriam, provavelmente, bastante surpreendentes e ainda mais desinteressantes… De maneira que decidi antes adoptar outro método, comum, aliás, nas pesquisas de identidade, que consiste em fazer um bocadinho de batota; e, feita a batota necessária (pouco ou muita, não vos diz isso respeito), consegui descobrir os três itens que mais essencialmente definem a europeidade – apresentados aqui por ordem alfabética, que não de importância:
1. Barrete: De vários materiais, cores e feitios, mas mais iguais do que diferentes, acho que, da Tornedália ao Ribatejo, o barrete faz sempre parte de algum traje tradicional. Há alguns mais famosos do que outros, como as barretinas catalãs ou o barrete da Marianne, mas não haja dúvida de que é coisa que unifica a Europa!
2. Gaita de foles: Da Suécia a Portugal e de Portugal a Malta e de Malta à Polónia, o que para aí vai de gaitas de foles. Ora aí está, é bom de ver, mais um símbolo incontornável da unidade europeia.
3. Shawarma: Pensem bem: não é verdade que Portugal só começou a poder ser considerado um país europeu quando começou a coexistir com a bifana e o prego a shawarma que nos faltava? Não foi só nessa altura (pensem bem!...) que entrámos definitivamente na Europa ao mesmo tempo que – através desse petisco, precisamente – a Europa entrava em nós?
Prevejo inúmeras (e, nalguns casos, enraivecidas…) objecções: Os barretes podem bem ter vindo originalmente da Frígia, isto é, da Anatólia (ou de mais longe ainda)! As gaitas de foles podem ser de origem hitita, ou seja, também da Anatólia! Quanto à shawarma, essa, não há dúvida de que vem mesmo da Anatólia!
Mas... e depois? Mesmo que isso seja tudo verdade, o que é que vocês têm contra a Anatólia? A Europa começa, sempre começou, muito para lá do que são hoje os seus limites mais aceites. Geográfica e culturalmente, não há entre o Médio Oriente e a Europa barreira nenhuma, quanto mais ruptura… Do Crescente Fértil vieram-nos trigo, cevada, grão, ervilhas, lentilhas, vacas, cabras, ovelhas, porcos, roda, monoteísmo, estado, escrita, todos os alicerces do desenvolvimento que viria a resultar na imposição da Europa a grande parte do mundo*. Por quê insistir em fazer do Bósforo uma fronteira que ele nunca foi? Aliás, facto de um simbolismo fundamental!, até a Europa original, madrinha do continente, filha de Agenor e Telephassa, era fenícia, que é como quem diz libanesa!
André-Pierre Taguieff, no seu livro Résister au bougisme, diz a certa altura que “o interminável e vão debate sobre o “alargamento” da Europa, processo para o qual, a não ser que recorramos a critérios baseados no racismo biológico ou no neo-racismo cultural, parece impossível definir limites justificáveis, mostra que a utopia europeísta não é senão uma figura da utopia globalista, um momento na mundialização apresentada como inevitável.”
Discordo de Taguieff em muitas coisas, nomeadamente da sua obsessão nacionista**. Se pus aqui esta citação, no entanto, é porque me parece que ele faz nesta frase algo tão importante como incomum, que é chamar a atenção para a questão moral de base que subjaz não só à discussão do alargamento da União, mas, em última análise, à própria ideia de União Europeia: É que não há nenhuma justificação moral para o processo que tem até aqui sido de “alargamento da União Europeia” se ficar pela Europa. Posso entender (e concordar ou discordar, isso é outra história) argumentos estratégicos para que esse alargamento se faça gradualmente, mas todos os outros argumentos para reduzir as vantagens de se ser sócio desta colectividade apenas a alguns não podem senão radicar, como diz Taguieff, nalgum tipo de imoral discriminação. Mesmo quando se chegar ao limite do que é de alguma forma identificável com Europa, não há razão nenhuma para parar o alargamento – quando muito, haverá razão para mudar o nome à união…
_______________
* Concorde-se ou não com a tese nele desenvolvida, o polémico livro de Jared Diamond Guns, Germs, and Steel dá informação resumida e preciosa sobre a importância do Crescente Fértil para o desenvolvimento da Europa – e do mundo. Vale a pena ler.
** É claro que não cabe aqui discutir a posição política de Taguieff no seu todo, mas quero, ainda assim, fazer um pequeno comentário àquilo de que discordo na frase citada: Taguieff erra, na minha opinião, ao fazer uma amálgama de todas as propostas políticas que valorizem instâncias supranacionais – sempre houve e ainda há quem defenda utopias mundialistas sem as apresentar como resultado inevitável de uma globalização “natural”, mas antes como o possível resultado da vontade das pessoas de alargar a toda a humanidade os privilégios (e os deveres, claro está) de que hoje apenas goza uma parte relativamente pequena dessa humanidade. Se, para Taguieff, o debate sobre o alargamento da Europa é vão, é porque, para ele, não deveria haver espaços de solidariedade mais amplos do que as nações que actualmente existem. Para mim, o círculo de solidariedade tem de continuar sempre a alargar-se.
Mas ‘tá quieto! Seguindo o princípio a rigor, não havia de ir muito longe...; e a conseguir chegar a algum lado, os poucos resultados seriam, provavelmente, bastante surpreendentes e ainda mais desinteressantes… De maneira que decidi antes adoptar outro método, comum, aliás, nas pesquisas de identidade, que consiste em fazer um bocadinho de batota; e, feita a batota necessária (pouco ou muita, não vos diz isso respeito), consegui descobrir os três itens que mais essencialmente definem a europeidade – apresentados aqui por ordem alfabética, que não de importância:
1. Barrete: De vários materiais, cores e feitios, mas mais iguais do que diferentes, acho que, da Tornedália ao Ribatejo, o barrete faz sempre parte de algum traje tradicional. Há alguns mais famosos do que outros, como as barretinas catalãs ou o barrete da Marianne, mas não haja dúvida de que é coisa que unifica a Europa!
2. Gaita de foles: Da Suécia a Portugal e de Portugal a Malta e de Malta à Polónia, o que para aí vai de gaitas de foles. Ora aí está, é bom de ver, mais um símbolo incontornável da unidade europeia.
3. Shawarma: Pensem bem: não é verdade que Portugal só começou a poder ser considerado um país europeu quando começou a coexistir com a bifana e o prego a shawarma que nos faltava? Não foi só nessa altura (pensem bem!...) que entrámos definitivamente na Europa ao mesmo tempo que – através desse petisco, precisamente – a Europa entrava em nós?
Prevejo inúmeras (e, nalguns casos, enraivecidas…) objecções: Os barretes podem bem ter vindo originalmente da Frígia, isto é, da Anatólia (ou de mais longe ainda)! As gaitas de foles podem ser de origem hitita, ou seja, também da Anatólia! Quanto à shawarma, essa, não há dúvida de que vem mesmo da Anatólia!
Mas... e depois? Mesmo que isso seja tudo verdade, o que é que vocês têm contra a Anatólia? A Europa começa, sempre começou, muito para lá do que são hoje os seus limites mais aceites. Geográfica e culturalmente, não há entre o Médio Oriente e a Europa barreira nenhuma, quanto mais ruptura… Do Crescente Fértil vieram-nos trigo, cevada, grão, ervilhas, lentilhas, vacas, cabras, ovelhas, porcos, roda, monoteísmo, estado, escrita, todos os alicerces do desenvolvimento que viria a resultar na imposição da Europa a grande parte do mundo*. Por quê insistir em fazer do Bósforo uma fronteira que ele nunca foi? Aliás, facto de um simbolismo fundamental!, até a Europa original, madrinha do continente, filha de Agenor e Telephassa, era fenícia, que é como quem diz libanesa!
André-Pierre Taguieff, no seu livro Résister au bougisme, diz a certa altura que “o interminável e vão debate sobre o “alargamento” da Europa, processo para o qual, a não ser que recorramos a critérios baseados no racismo biológico ou no neo-racismo cultural, parece impossível definir limites justificáveis, mostra que a utopia europeísta não é senão uma figura da utopia globalista, um momento na mundialização apresentada como inevitável.”
Discordo de Taguieff em muitas coisas, nomeadamente da sua obsessão nacionista**. Se pus aqui esta citação, no entanto, é porque me parece que ele faz nesta frase algo tão importante como incomum, que é chamar a atenção para a questão moral de base que subjaz não só à discussão do alargamento da União, mas, em última análise, à própria ideia de União Europeia: É que não há nenhuma justificação moral para o processo que tem até aqui sido de “alargamento da União Europeia” se ficar pela Europa. Posso entender (e concordar ou discordar, isso é outra história) argumentos estratégicos para que esse alargamento se faça gradualmente, mas todos os outros argumentos para reduzir as vantagens de se ser sócio desta colectividade apenas a alguns não podem senão radicar, como diz Taguieff, nalgum tipo de imoral discriminação. Mesmo quando se chegar ao limite do que é de alguma forma identificável com Europa, não há razão nenhuma para parar o alargamento – quando muito, haverá razão para mudar o nome à união…
_______________
* Concorde-se ou não com a tese nele desenvolvida, o polémico livro de Jared Diamond Guns, Germs, and Steel dá informação resumida e preciosa sobre a importância do Crescente Fértil para o desenvolvimento da Europa – e do mundo. Vale a pena ler.
** É claro que não cabe aqui discutir a posição política de Taguieff no seu todo, mas quero, ainda assim, fazer um pequeno comentário àquilo de que discordo na frase citada: Taguieff erra, na minha opinião, ao fazer uma amálgama de todas as propostas políticas que valorizem instâncias supranacionais – sempre houve e ainda há quem defenda utopias mundialistas sem as apresentar como resultado inevitável de uma globalização “natural”, mas antes como o possível resultado da vontade das pessoas de alargar a toda a humanidade os privilégios (e os deveres, claro está) de que hoje apenas goza uma parte relativamente pequena dessa humanidade. Se, para Taguieff, o debate sobre o alargamento da Europa é vão, é porque, para ele, não deveria haver espaços de solidariedade mais amplos do que as nações que actualmente existem. Para mim, o círculo de solidariedade tem de continuar sempre a alargar-se.
05/02/09
O autocarro ateísta e outras histórias
(Escolham, dos dois subtítulos que proponho, o que mais vos agradar:)
Não batas mais na velhinha ou Ele a dar-l’e a burra a fugir
1. O nome e a coisa:Diz Filipe Pereirinha[1], a propósito da primeira campanha publicitária ateísta[2], que «Saramago – um ateu, por sinal – [disse] que Deus não desaparecerá enquanto não desaparecer o nome de Deus. Mesmo que Deus não exista, que seja um puro vazio, enquanto a linguagem o fizer ex-sistir, Deus ex-sistirá. Certainly! A frase escrita no autocarro [da campanha, “there’s probably no god”] é uma prova da existência de Deus». É uma retórica conhecida e, a julgar pela fortuna que tem, sedutora, mas é só mesmo isso. Se não… eu amanhã vou começar a dizer a toda a gente que não fale mais de malária. Se nunca mais o nomearmos, havemos de erradicar o parasita.
É um abuso, eu sei, o que eu estou a fazer, mas também é um abuso reduzir a existência de Deus (ou dos gnomos, das fadas, dos unicórnios ou dos leprechauns, para o caso tanto faz…) à sua nomeação, sobretudo porque quem acredita na existência de deus não é na existência dele como nome que acredita. Aliás, há até quem acredite na coisa-deus sem acreditar na possibilidade da sua nomeação. Por outras palavras, a discussão entre ateístas e teístas é uma discussão sobre a existência de facto de uma entidade com as características que estes últimos atribuem aos seus deuses.
2. Mais vale ignorá-los do que dar-lhes importância
Há, porém, outra leitura (mais interessante, talvez…) que se pode fazer das palavras de Saramago citadas por Pereirinha: é que é má estratégia da parte dos ateístas passar a vida a discutir a existência de Deus. Há muitos ateus que insistem nisso: «Deixem estar isso, não batam mais na velhinha, é vocês a darem-lhe e a burra a fugir…», dizem eles, «A única coisa que conseguem assim é dar a deus uma importância que ele não tem». A discussão aqui é, pois, de estratégia política. Tenho visto nos últimos tempos acusações a Richard Dawkins, a Sam Harris, ao falecido George Carlin e outros proeminentes ateístas militantes de, pela sua “intolerância” ou pela sua “agressividade”, terem contribuído mais para a causa religiosa do que os próprios religiosos. Mas não concordo. Vi seguirem-se estratégias de abstenção da discussão em relação a outras questões e com maus resultados. Estou convencido, por exemplo, de que uma das razões para o crescimento da extrema-direita racista na Europa, nos anos 90, foi a recusa dos não-racistas de se “rebaixarem” ao ponto de discutir em público com ela...
3. Orgulho ateu?
Pereirinha diz também que “vivemos na época da marcha e do orgulho; coube, desta vez, ao orgulho ateu fazer também a sua marcha”. Orgulho? Mas orgulho por quê ou em quê? A história da campanha publicitária ateísta, explica o seu site, é a seguinte (traduzo eu):
A campanha começou quando a escritora de comédia Ariane Sherine viu um anúncio, num autocarro londrino, em que se citava uma frase da Bíblia, “Quando o Filho do Homem vier, será que encontra Fé nesta Terra?” [sic]. Abaixo da citação, havia um URL, e quando Sherine visitou o respectivo site ficou a saber que, não sendo crente, seria “condenada à eterna separação de Deus e passaria toda a eternidade em tormento no inferno”.
Orgulho ateu? Então uma pessoa estar sempre a levar com estas e outras campanhas de terrorismo mental não é razão mais do que suficiente para reagir? Toda a gente refere agora (porque é, como dizer?, giro… pois, fora do vulgar, divertido até...) a campanha ateísta, mas não me lembro de haver muita gente a referir os milhares de campanhas publicitárias religiosas que houve e há por esse mundo fora. Um dos méritos desta campanha é precisamente fazer notar às pessoas o estranho que é para elas alguém fazer o contrário daquilo a que estão habituadas, que é evangelização a torto e a direito.
Mostra de orgulho? E por que não legítima defesa? Uma verdade simples e demasiado ignorada é que os ateus são sistematicamente discriminados. Fala-se muito hoje da liberdade de crença e culto, como se fosse a crença e o culto a única opção possível, mas ninguém fala da liberdade de cultivar activamente a negação da existência de deuses e toda a classe de superstições. A constituição e as leis de diversas nações reconhecem a todas as religiões os mesmos direitos, em termos de educação, por exemplo, mas nunca mencionam os direitos dos ateus (nos países onde se pode escolher para os filhos educação moral e religiosa, posso requisitar para o meu filho um professor de ateísmo?). Os parágrafos sobre blasfémia (que presumo que incluam a asserção simples de que “Deus não existe”, como é que isso pode não ser blasfémia?) existem nas leis de vários países muito democráticos e muito progressistas; mas eu não posso levar ninguém a tribunal por ter afirmado que deus há-de punir o meu racionalismo com eterno sofrimento, uma asserção que me ofende profundamente… A esmagadora maioria dos atlas e das páginas de factos sobre os diversos países e áreas geográficas menciona a percentagem de praticantes das várias religiões, mas muito raramente se menciona o número de ateus e agnósticos – mesmo quando, como no caso de Moçambique, um quarto dos cidadãos declararam, no último censo, não terem nenhuma religião. Há muitos estados oficialmente religiosos e vários estados laicos, mas não conheço nenhum estado oficialmente ateu ou agnóstico [3]. Orgulho ateu? Nós estamos é fartos, muito sinceramente.
4. Ciência, racionalismo, religião e democracia: a questão moral
Outra discussão interessante, aflorada também por Pereirinha no seu texto, é a da palavra probably no anúncio inglês. «Para quem leu Nietzsche ou Dostoiévski», diz ele, «este “probably” está a mais.» Bom, de certeza que não é só para quem tenha lido Nietzsche ou Dostoiévski que o probably pode estar a mais. Mas o facto é que ele não está a mais para muitos ateístas. A palavra é um indicador claro de uma atitude que o racionalismo ateísta não partilha com as crenças religiosas – uma diferença moral. Na já referida página FAQ do site da campanha, uma das “perguntas frequentes” a que se responde é «Por que é que só “provavelmente” não há deus?». A resposta:
Tal como acontece nos famosos anúncios da Carlsberg («provavelmente a melhor cerveja do mundo»), “provavelmente” contribui para garantir que os nossos anúncios não infrinjam regras de publicidade. A Comissão da Prática Publicitária informou a campanha de que «a inclusão da palavra “provavelmente” torna a campanha menos susceptível de ofender, e, portanto, de quebrar o Código da Publicidade».
Disse Ariane Sherine: «Também gosto de “provavelmente” por outra razão: significa que o slogan é mais rigoroso, uma vez que, embora não exista prova científica da existência de Deus, também é impossível provar que Deus não exista (ou que outra coisa qualquer, seja ela qual for, não existe). Como Richard Dawkins diz em The God Delusion, dizer que “Deus não existe” é assumir uma posição de “fé”. Escreve ele: “Os ateus não têm fé; e a razão apenas não pode dar a ninguém a perfeita convicção de que uma coisa definitivamente não existe”. As palavras que ele usa no livro são “almost certainly [quase de certeza]”; mas, embora isto reflicta mais directamente aquilo em que crê a maior parte dos ateus, “probably” é mais curto e soa melhor, o que ajuda em publicidade”.
Aliás, acrescento agora eu, é evidente que provar a existência de Deus, altamente improvável à luz do que se pode verificar do funcionamento do mundo, nem sequer compete a quem dela duvide, mas antes a quem nela creia. O que muitos ateístas dizem é que, porque têm uma atitude permanentemente aberta a tudo o que é verificável ou de qualquer forma demonstrável, estão dispostos a mudar de opinião, se alguém lhes der uma boa razão para acreditarem na existência de algum deus.. Mas nenhum religioso a dá, porque a prova que cada crente tem do seu deus não é observável por ninguém que não partilhe a sua crença e chama-se fé… Evidentemente, os religiosos não acreditam na boa-fé (credo!) dos ateístas. Não conseguem imaginar uma mente menos fechada do que a sua [4]…
É curioso: discute-se mais a oposição entre o racionalismo científico e a religião enquanto formas de conhecer e explicar o mundo do que enquanto sistemas morais. Ora, para um moralista como eu, por muito que seja importante discutir o valor de verdade das propostas de explicação do mundo, interessa também sempre, e muito, discutir a justeza das propostas de códigos de comportamentos – porque elas afectam directamente a vida da gente, não é?
E creio que há, de facto, uma grande diferença moral entre quem acredita na racionalidade e quem acredita na fé: os racionalistas acreditam que o conhecimento da verdade é algo perecível e frágil, que se vai acumulando devagarinho, muito devagarinho, com paciência e trabalho de rigor, e têm sempre o cuidado de o procurar no que pode ser partilhado por todos os seres humanos. Para eles, o valor de verdade de uma afirmação pode sempre ser discutido e pode-se sempre provar que, afinal, a verdade proposta não o era. E isto aplica-se tanto às descrições dos fenómenos do mundo como aos conjuntos de normas de comportamento de uma sociedade. Para um religioso (lato sensu), não há nada a discutir: o mundo está explicado a priori e estão definidas à partida as maneiras correctas e incorrectas de agir, que lhe foram reveladas por entidades sobre-humanas.
Uma diferença moral, dizia eu: quem acredite que todos os seres humanos têm o mesmo direito a participar na discussão do mundo e das linhas com que ele se cose não pode deixar de constatar que, à religião, lhe faltam modéstia e democraticidade.
5. Um sonho:
Isto não tem nada a ver com o texto de Filipe Pereirinha, é só para terminar num tom mais alegre. Como a discussão da compatibilidade do conhecimento científico com a crença religiosa não só não acabou como parece estar cada vez na ordem do dia (vejam, por exemplo, a recensão de Jerry Coyne no New Republic de Saving Darwin: How to be a Christian and Believe in Evolution, de Karl W. Giberson e Only A Theory: Evolution and the Battle for America's Soul, de Kenneth R. Miller), conto-vos um sonho que tive:
Era um tipo qualquer com uma cara diferente da minha, mas que eu reconhecia como sendo eu próprio, a falar com outro tipo com outra cara diferente, tanto da do primeiro tipo como da minha, mas que eu continuava a reconhecer como sendo eu próprio (os sonhos têm destas coisas…). E perguntava a primeira à segunda cara:
Mas afinal, pode um cientista crer em deus?
E respondia a segunda cara à primeira:
Pode, pois claro que pode. Um cientista é como as outras pessoas, acho eu, pode fazer tudo o que lhe apetecer, desde que não prejudique mais ninguém. Até pode comer sardinhas assadas com doce de groselha. O problema é dele…
_________________
[1] Embora não o veja já há muito tempo, é um rapaz que eu conheço e por quem tenho simpatia. Este texto é só a saudável expressão de um desacordo.
[2] Explico a distinção que faço entre ateísta e ateu: chamo ateu a quem não acredite em deuses, sem mais; mas chamo ateísta a alguém que professa o ateísmo como filosofia e, sobretudo, que tem uma posição proactiva, como agora se diz, na discussão entre religião e racionalismo não religioso. A distinção dá jeito, até porque permite estabelecer a oposição simples teísta vs ateísta, que não funciona com a palavra ateu.
[3] Talvez o Butão, o Camboja e a Tailândia, porque são oficialmente budistas e, para os budistas, não existe propriamente um deus… Seja como for, não acho que deva haver estados ateus, prefiro a noção de estado laico, mas é só para vocês verem como as coisas andam.
[4] Se bem que, como tem sido frequentemente argumentado, todos os seres humanos sejam ateus: todos duvidam de existência de alguns deuses, mesmo que acreditem noutros. Mas isso é uma questão que deixamos os religiosos discutirem entre eles; nós, ateus, já demos um passo em frente, e passámos a duvidar de um deus mais (ou de um grupo de deuses mais) do que cada religioso…
Não batas mais na velhinha ou Ele a dar-l’e a burra a fugir
1. O nome e a coisa:Diz Filipe Pereirinha[1], a propósito da primeira campanha publicitária ateísta[2], que «Saramago – um ateu, por sinal – [disse] que Deus não desaparecerá enquanto não desaparecer o nome de Deus. Mesmo que Deus não exista, que seja um puro vazio, enquanto a linguagem o fizer ex-sistir, Deus ex-sistirá. Certainly! A frase escrita no autocarro [da campanha, “there’s probably no god”] é uma prova da existência de Deus». É uma retórica conhecida e, a julgar pela fortuna que tem, sedutora, mas é só mesmo isso. Se não… eu amanhã vou começar a dizer a toda a gente que não fale mais de malária. Se nunca mais o nomearmos, havemos de erradicar o parasita.
É um abuso, eu sei, o que eu estou a fazer, mas também é um abuso reduzir a existência de Deus (ou dos gnomos, das fadas, dos unicórnios ou dos leprechauns, para o caso tanto faz…) à sua nomeação, sobretudo porque quem acredita na existência de deus não é na existência dele como nome que acredita. Aliás, há até quem acredite na coisa-deus sem acreditar na possibilidade da sua nomeação. Por outras palavras, a discussão entre ateístas e teístas é uma discussão sobre a existência de facto de uma entidade com as características que estes últimos atribuem aos seus deuses.
2. Mais vale ignorá-los do que dar-lhes importância
Há, porém, outra leitura (mais interessante, talvez…) que se pode fazer das palavras de Saramago citadas por Pereirinha: é que é má estratégia da parte dos ateístas passar a vida a discutir a existência de Deus. Há muitos ateus que insistem nisso: «Deixem estar isso, não batam mais na velhinha, é vocês a darem-lhe e a burra a fugir…», dizem eles, «A única coisa que conseguem assim é dar a deus uma importância que ele não tem». A discussão aqui é, pois, de estratégia política. Tenho visto nos últimos tempos acusações a Richard Dawkins, a Sam Harris, ao falecido George Carlin e outros proeminentes ateístas militantes de, pela sua “intolerância” ou pela sua “agressividade”, terem contribuído mais para a causa religiosa do que os próprios religiosos. Mas não concordo. Vi seguirem-se estratégias de abstenção da discussão em relação a outras questões e com maus resultados. Estou convencido, por exemplo, de que uma das razões para o crescimento da extrema-direita racista na Europa, nos anos 90, foi a recusa dos não-racistas de se “rebaixarem” ao ponto de discutir em público com ela...
3. Orgulho ateu?
Pereirinha diz também que “vivemos na época da marcha e do orgulho; coube, desta vez, ao orgulho ateu fazer também a sua marcha”. Orgulho? Mas orgulho por quê ou em quê? A história da campanha publicitária ateísta, explica o seu site, é a seguinte (traduzo eu):
A campanha começou quando a escritora de comédia Ariane Sherine viu um anúncio, num autocarro londrino, em que se citava uma frase da Bíblia, “Quando o Filho do Homem vier, será que encontra Fé nesta Terra?” [sic]. Abaixo da citação, havia um URL, e quando Sherine visitou o respectivo site ficou a saber que, não sendo crente, seria “condenada à eterna separação de Deus e passaria toda a eternidade em tormento no inferno”.
Orgulho ateu? Então uma pessoa estar sempre a levar com estas e outras campanhas de terrorismo mental não é razão mais do que suficiente para reagir? Toda a gente refere agora (porque é, como dizer?, giro… pois, fora do vulgar, divertido até...) a campanha ateísta, mas não me lembro de haver muita gente a referir os milhares de campanhas publicitárias religiosas que houve e há por esse mundo fora. Um dos méritos desta campanha é precisamente fazer notar às pessoas o estranho que é para elas alguém fazer o contrário daquilo a que estão habituadas, que é evangelização a torto e a direito.
Mostra de orgulho? E por que não legítima defesa? Uma verdade simples e demasiado ignorada é que os ateus são sistematicamente discriminados. Fala-se muito hoje da liberdade de crença e culto, como se fosse a crença e o culto a única opção possível, mas ninguém fala da liberdade de cultivar activamente a negação da existência de deuses e toda a classe de superstições. A constituição e as leis de diversas nações reconhecem a todas as religiões os mesmos direitos, em termos de educação, por exemplo, mas nunca mencionam os direitos dos ateus (nos países onde se pode escolher para os filhos educação moral e religiosa, posso requisitar para o meu filho um professor de ateísmo?). Os parágrafos sobre blasfémia (que presumo que incluam a asserção simples de que “Deus não existe”, como é que isso pode não ser blasfémia?) existem nas leis de vários países muito democráticos e muito progressistas; mas eu não posso levar ninguém a tribunal por ter afirmado que deus há-de punir o meu racionalismo com eterno sofrimento, uma asserção que me ofende profundamente… A esmagadora maioria dos atlas e das páginas de factos sobre os diversos países e áreas geográficas menciona a percentagem de praticantes das várias religiões, mas muito raramente se menciona o número de ateus e agnósticos – mesmo quando, como no caso de Moçambique, um quarto dos cidadãos declararam, no último censo, não terem nenhuma religião. Há muitos estados oficialmente religiosos e vários estados laicos, mas não conheço nenhum estado oficialmente ateu ou agnóstico [3]. Orgulho ateu? Nós estamos é fartos, muito sinceramente.
4. Ciência, racionalismo, religião e democracia: a questão moral
Outra discussão interessante, aflorada também por Pereirinha no seu texto, é a da palavra probably no anúncio inglês. «Para quem leu Nietzsche ou Dostoiévski», diz ele, «este “probably” está a mais.» Bom, de certeza que não é só para quem tenha lido Nietzsche ou Dostoiévski que o probably pode estar a mais. Mas o facto é que ele não está a mais para muitos ateístas. A palavra é um indicador claro de uma atitude que o racionalismo ateísta não partilha com as crenças religiosas – uma diferença moral. Na já referida página FAQ do site da campanha, uma das “perguntas frequentes” a que se responde é «Por que é que só “provavelmente” não há deus?». A resposta:
Tal como acontece nos famosos anúncios da Carlsberg («provavelmente a melhor cerveja do mundo»), “provavelmente” contribui para garantir que os nossos anúncios não infrinjam regras de publicidade. A Comissão da Prática Publicitária informou a campanha de que «a inclusão da palavra “provavelmente” torna a campanha menos susceptível de ofender, e, portanto, de quebrar o Código da Publicidade».
Disse Ariane Sherine: «Também gosto de “provavelmente” por outra razão: significa que o slogan é mais rigoroso, uma vez que, embora não exista prova científica da existência de Deus, também é impossível provar que Deus não exista (ou que outra coisa qualquer, seja ela qual for, não existe). Como Richard Dawkins diz em The God Delusion, dizer que “Deus não existe” é assumir uma posição de “fé”. Escreve ele: “Os ateus não têm fé; e a razão apenas não pode dar a ninguém a perfeita convicção de que uma coisa definitivamente não existe”. As palavras que ele usa no livro são “almost certainly [quase de certeza]”; mas, embora isto reflicta mais directamente aquilo em que crê a maior parte dos ateus, “probably” é mais curto e soa melhor, o que ajuda em publicidade”.
Aliás, acrescento agora eu, é evidente que provar a existência de Deus, altamente improvável à luz do que se pode verificar do funcionamento do mundo, nem sequer compete a quem dela duvide, mas antes a quem nela creia. O que muitos ateístas dizem é que, porque têm uma atitude permanentemente aberta a tudo o que é verificável ou de qualquer forma demonstrável, estão dispostos a mudar de opinião, se alguém lhes der uma boa razão para acreditarem na existência de algum deus.. Mas nenhum religioso a dá, porque a prova que cada crente tem do seu deus não é observável por ninguém que não partilhe a sua crença e chama-se fé… Evidentemente, os religiosos não acreditam na boa-fé (credo!) dos ateístas. Não conseguem imaginar uma mente menos fechada do que a sua [4]…
É curioso: discute-se mais a oposição entre o racionalismo científico e a religião enquanto formas de conhecer e explicar o mundo do que enquanto sistemas morais. Ora, para um moralista como eu, por muito que seja importante discutir o valor de verdade das propostas de explicação do mundo, interessa também sempre, e muito, discutir a justeza das propostas de códigos de comportamentos – porque elas afectam directamente a vida da gente, não é?
E creio que há, de facto, uma grande diferença moral entre quem acredita na racionalidade e quem acredita na fé: os racionalistas acreditam que o conhecimento da verdade é algo perecível e frágil, que se vai acumulando devagarinho, muito devagarinho, com paciência e trabalho de rigor, e têm sempre o cuidado de o procurar no que pode ser partilhado por todos os seres humanos. Para eles, o valor de verdade de uma afirmação pode sempre ser discutido e pode-se sempre provar que, afinal, a verdade proposta não o era. E isto aplica-se tanto às descrições dos fenómenos do mundo como aos conjuntos de normas de comportamento de uma sociedade. Para um religioso (lato sensu), não há nada a discutir: o mundo está explicado a priori e estão definidas à partida as maneiras correctas e incorrectas de agir, que lhe foram reveladas por entidades sobre-humanas.
Uma diferença moral, dizia eu: quem acredite que todos os seres humanos têm o mesmo direito a participar na discussão do mundo e das linhas com que ele se cose não pode deixar de constatar que, à religião, lhe faltam modéstia e democraticidade.
5. Um sonho:
Isto não tem nada a ver com o texto de Filipe Pereirinha, é só para terminar num tom mais alegre. Como a discussão da compatibilidade do conhecimento científico com a crença religiosa não só não acabou como parece estar cada vez na ordem do dia (vejam, por exemplo, a recensão de Jerry Coyne no New Republic de Saving Darwin: How to be a Christian and Believe in Evolution, de Karl W. Giberson e Only A Theory: Evolution and the Battle for America's Soul, de Kenneth R. Miller), conto-vos um sonho que tive:
Era um tipo qualquer com uma cara diferente da minha, mas que eu reconhecia como sendo eu próprio, a falar com outro tipo com outra cara diferente, tanto da do primeiro tipo como da minha, mas que eu continuava a reconhecer como sendo eu próprio (os sonhos têm destas coisas…). E perguntava a primeira à segunda cara:
Mas afinal, pode um cientista crer em deus?
E respondia a segunda cara à primeira:
Pode, pois claro que pode. Um cientista é como as outras pessoas, acho eu, pode fazer tudo o que lhe apetecer, desde que não prejudique mais ninguém. Até pode comer sardinhas assadas com doce de groselha. O problema é dele…
_________________
[1] Embora não o veja já há muito tempo, é um rapaz que eu conheço e por quem tenho simpatia. Este texto é só a saudável expressão de um desacordo.
[2] Explico a distinção que faço entre ateísta e ateu: chamo ateu a quem não acredite em deuses, sem mais; mas chamo ateísta a alguém que professa o ateísmo como filosofia e, sobretudo, que tem uma posição proactiva, como agora se diz, na discussão entre religião e racionalismo não religioso. A distinção dá jeito, até porque permite estabelecer a oposição simples teísta vs ateísta, que não funciona com a palavra ateu.
[3] Talvez o Butão, o Camboja e a Tailândia, porque são oficialmente budistas e, para os budistas, não existe propriamente um deus… Seja como for, não acho que deva haver estados ateus, prefiro a noção de estado laico, mas é só para vocês verem como as coisas andam.
[4] Se bem que, como tem sido frequentemente argumentado, todos os seres humanos sejam ateus: todos duvidam de existência de alguns deuses, mesmo que acreditem noutros. Mas isso é uma questão que deixamos os religiosos discutirem entre eles; nós, ateus, já demos um passo em frente, e passámos a duvidar de um deus mais (ou de um grupo de deuses mais) do que cada religioso…