13/02/09

E onde mora, por favor, Dona Europa, essa cachopa, filha de D. Agenor?

… Pus-me então a especular: o que é que dá à Europa unidade, que já nem falo de união? E pensei: «Para me lançar na pesquisa de uma identidade europeia, o ideal seria aplicar o velho preceito que diz que “um gato é um gato, um cão é um cão, e uma coisa é aquilo que as outras não são”» – só devia considerar verdadeiramente europeu o que fosse comum a toda a Europa e não se achasse nunca fora dela!

Mas ‘tá quieto! Seguindo o princípio a rigor, não havia de ir muito longe...; e a conseguir chegar a algum lado, os poucos resultados seriam, provavelmente, bastante surpreendentes e ainda mais desinteressantes… De maneira que decidi antes adoptar outro método, comum, aliás, nas pesquisas de identidade, que consiste em fazer um bocadinho de batota; e, feita a batota necessária (pouco ou muita, não vos diz isso respeito), consegui descobrir os três itens que mais essencialmente definem a europeidade – apresentados aqui por ordem alfabética, que não de importância:

1. Barrete: De vários materiais, cores e feitios, mas mais iguais do que diferentes, acho que, da Tornedália ao Ribatejo, o barrete faz sempre parte de algum traje tradicional. Há alguns mais famosos do que outros, como as barretinas catalãs ou o barrete da Marianne, mas não haja dúvida de que é coisa que unifica a Europa!

2. Gaita de foles: Da Suécia a Portugal e de Portugal a Malta e de Malta à Polónia, o que para aí vai de gaitas de foles. Ora aí está, é bom de ver, mais um símbolo incontornável da unidade europeia.

3. Shawarma: Pensem bem: não é verdade que Portugal só começou a poder ser considerado um país europeu quando começou a coexistir com a bifana e o prego a shawarma que nos faltava? Não foi só nessa altura (pensem bem!...) que entrámos definitivamente na Europa ao mesmo tempo que – através desse petisco, precisamente – a Europa entrava em nós?


Prevejo inúmeras (e, nalguns casos, enraivecidas…) objecções: Os barretes podem bem ter vindo originalmente da Frígia, isto é, da Anatólia (ou de mais longe ainda)! As gaitas de foles podem ser de origem hitita, ou seja, também da Anatólia! Quanto à shawarma, essa, não há dúvida de que vem mesmo da Anatólia!

Mas... e depois? Mesmo que isso seja tudo verdade, o que é que vocês têm contra a Anatólia? A Europa começa, sempre começou, muito para lá do que são hoje os seus limites mais aceites. Geográfica e culturalmente, não há entre o Médio Oriente e a Europa barreira nenhuma, quanto mais ruptura… Do Crescente Fértil vieram-nos trigo, cevada, grão, ervilhas, lentilhas, vacas, cabras, ovelhas, porcos, roda, monoteísmo, estado, escrita, todos os alicerces do desenvolvimento que viria a resultar na imposição da Europa a grande parte do mundo*. Por quê insistir em fazer do Bósforo uma fronteira que ele nunca foi? Aliás, facto de um simbolismo fundamental!, até a Europa original, madrinha do continente, filha de Agenor e Telephassa, era fenícia, que é como quem diz libanesa!

André-Pierre Taguieff, no seu livro Résister au bougisme, diz a certa altura que “o interminável e vão debate sobre o “alargamento” da Europa, processo para o qual, a não ser que recorramos a critérios baseados no racismo biológico ou no neo-racismo cultural, parece impossível definir limites justificáveis, mostra que a utopia europeísta não é senão uma figura da utopia globalista, um momento na mundialização apresentada como inevitável.”

Discordo de Taguieff em muitas coisas, nomeadamente da sua obsessão nacionista**. Se pus aqui esta citação, no entanto, é porque me parece que ele faz nesta frase algo tão importante como incomum, que é chamar a atenção para a questão moral de base que subjaz não só à discussão do alargamento da União, mas, em última análise, à própria ideia de União Europeia: É que não há nenhuma justificação moral para o processo que tem até aqui sido de “alargamento da União Europeia” se ficar pela Europa. Posso entender (e concordar ou discordar, isso é outra história) argumentos estratégicos para que esse alargamento se faça gradualmente, mas todos os outros argumentos para reduzir as vantagens de se ser sócio desta colectividade apenas a alguns não podem senão radicar, como diz Taguieff, nalgum tipo de imoral discriminação. Mesmo quando se chegar ao limite do que é de alguma forma identificável com Europa, não há razão nenhuma para parar o alargamento – quando muito, haverá razão para mudar o nome à união…
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* Concorde-se ou não com a tese nele desenvolvida, o polémico livro de Jared Diamond Guns, Germs, and Steel dá informação resumida e preciosa sobre a importância do Crescente Fértil para o desenvolvimento da Europa – e do mundo. Vale a pena ler.

** É claro que não cabe aqui discutir a posição política de Taguieff no seu todo, mas quero, ainda assim, fazer um pequeno comentário àquilo de que discordo na frase citada: Taguieff erra, na minha opinião, ao fazer uma amálgama de todas as propostas políticas que valorizem instâncias supranacionais – sempre houve e ainda há quem defenda utopias mundialistas sem as apresentar como resultado inevitável de uma globalização “natural”, mas antes como o possível resultado da vontade das pessoas de alargar a toda a humanidade os privilégios (e os deveres, claro está) de que hoje apenas goza uma parte relativamente pequena dessa humanidade. Se, para Taguieff, o debate sobre o alargamento da Europa é vão, é porque, para ele, não deveria haver espaços de solidariedade mais amplos do que as nações que actualmente existem. Para mim, o círculo de solidariedade tem de continuar sempre a alargar-se.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olha para isto... hoje também me deu para falar de gaitas de foles e até de pataniscas, passando por torresmos... esqueceste-te do torresmo como factor unificador da Europa. Quanto aos barretes, sem barrete não haveria chapéu e filmes de cóbois... que estranho mundo este!

R

Vítor Lindegaard disse...

Relvas, tens toda a razão! É imperdoável! O torresmo é mesmo um elemento essencial da europeidade. Na Dinamarca, compra-se em saquinhos tipo de batatas fritas em qualquer quiosque ou supermercado; e no Reino Unido é normalmente a única coisa que se consegue comer nos pubs (excepto quando é um daqueles pubs que servem almoços, claro está)... Virá também da Anatólia, o torresmo? Ah, provavelmente de um bocadinho mais longe...

Um grande abraço