11/02/22

Duas histórias de carne

 

Uma vez, um amigo meu perguntou-me, enquanto devorava uma perna de frango assado: 
 – Mas tu sabes porque é que toda a gente gosta de frango em qualquer lado do mundo? 
 – Não, porquê? 
– Porque é mesmo bom, pá! 
[Segundo o site statista, a produção mundial de carne de Gallus gallus domesticus em 2021 foi de cerca de 100 mil milhões de quilos, o que dá uma média de cerca de um quilo de carne por mês por ser humano. Uma média assim quer dizer que, por muito que toda a gente goste de frango em qualquer lado do mundo, como diz o meu amigo, há muito quem só muito raramente o coma.]


***
Tinha a certa altura, em Genebra, um grupo de amigos muito interessados na grande cozinha. Passavam muitas vezes fins de semana gastronómicos na Saboia e encontravam-se regularmente em casa uns dos outros. para comezainas requintadas. E a boa comida era, claro está, um dos seus temas de conversa favoritos. Numa das várias discussões a que assisti sobre o tema, em que se fazia uma apetitosa enumeração de pratos sofisticados, diz um dos gourmets
– Para mim, entrecôte com batatas fritas. Poucos pratos atingem tão grande sofisticação. 
[Entrecôte é um bife da vazia (ou do acém, como aqui se discute). O gosto do meu amigo suíço coincide com o de uma grande maioria dos franceses: há muitas sondagens sobre os pratos favoritos dos franceses e com resultados variados, mas o bife com batatas fritas, seja ele entrecôte ou não, vem sempre entre os dez primeiros.]

09/02/22

Faláfel

Diz-se que a prática faz o mestre e é bem verdade, na maior parte dos casos. Normalmente, faz-se mal aquilo que não se praticou o suficiente. Polmes, por exemplo — não sei fazer bons polmes, mas acho que é só porque não pratiquei o suficiente… Às vezes, porém, também é questão de encontrar uma maneira de fazer as coisas que funcione para nós.

Queria falar-vos de faláfeles, aqueles pastelinhos médio-orientais que há. Experimentei muitas receitas e improvisei muito à volta delas, com grão cozido, meio cozido e cru, e nunca me saíram bem. De sabor sim, mas sem a consistência devida. Até que encontrei, no Comidista, a receita que funciona mesmo — para mim! — e que sabe melhor que as outras todas. A questão, afinal, era usar três quartos de favas secas para um quarto de grão e não demolhar nem triturar demasiado as leguminosas. Vejam aqui a receita:

Já agora, há um artigo do History Today que confirma o que se ouve no vídeo do Comidista: o faláfel original é egípcio e é de fava, cuja designação em árabe egípcio está, aliás, na origem do seu nome. Mas vários dicionários, alguns deles fiáveis, como o dicionário etimológico Etymology Online, propõem um étimo árabe, falafil, que segundo alguns significa «pimenta(s)» e segundo outros «crocante, estaladiço».

Parece que as primeiras referências ao faláfel datam do séc. XIX. Como tudo o que é tradicional — já era de esperar – o faláfel não é, pois, uma coisa assim tão antiga... Cabe agora a quem se interesse muito pelo assunto investigá-lo mais a fundo e descobrir se há outras versões da história do faláfel que sejam mais dignas de crédito que este artigo do History Today. A mim, interessam-se mais os faláfeles que a sua história... Bom proveito! 


Moral e mercado

[Este é daqueles textos que está há seis anos (!) para eu lhe dar forma definitiva. Mas eu não sei dar forma definitiva a nada, e isto também é só um blogue, não é verdade? De maneira que aqui vai como está sem mais, meio em esboço. Fala-se de mercado e liberalismo económico numa perspetiva moral.]

Estou em crer que nem o mais ferrenho defensor do liberalismo económico defenderia, pelo menos às claras, que todo o comércio é sempre aceitável. Mas, para não se defender essa ideia tão pouco popular, há que ter como critério algo mais que o bom funcionamento da economia. E isto porque, como já uma vez aqui referi, de acordo com a teoria pura dos mercados, qualquer intervenção estatal, nem que para definir, com base nalgum critério moral (ou político, que neste caso é o mesmo), que comércio se pode ou não fazer reduz forçosamente a eficácia da economia. Por exemplo, se houver mercado para escravos não há razão nenhuma, numa perspetiva exclusivamente económica, para não se fazer comércio de escravos. Etc.

A verdade simples, de que nos esquecemos com demasiada frequência, é que o liberalismo económico é uma teoria económica, não uma teoria política, embora, como qualquer teoria económica, possa fazer parte de uma teoria política. É por isso que há uma tão grande divergência no plano propriamente político entre partidos que defendem o liberalismo económico (o grupo liberal do Parlamento Europeu é exemplo disso).

É claro que é perfeitamente possível a defesa de uma versão do liberalismo económico que não passe pela defesa de uma teoria pura dos mercados, avessa a toda e qualquer intervenção exterior e, por isso, completamente imoral. Saindo do louvor apenas do «bom funcionamento» dos mercados, pode definir-se alguma base moral do que é moralmente aceitável comerciar e defender, em seguida, que todas as transações moralmente aceitáveis se processem livremente, sem regulação do estado nem de entidade nenhuma que não sejam os agentes económicos nelas intervenientes*.

É extremamente difícil, porém definir as fronteiras do que é, em termos morais, suficientemente aceitável para poder ser comprado e vendido ou que tipo de transações comerciais devem estar sujeitas apenas à regulação do mercado. Por exemplo, se se aceita pagar muito dinheiro a uma pessoa pelos contactos e pela influência que tem (o valor dos salários de muitos gestores é nisso que assenta), então porque não aceitar o suborno e a corrupção, que são também a compra, num mercado autorregulado, do poder de uma pessoa? A questão dos monopólios é também interessante: uma lei antimonopólio é sempre contra o mercado, até porque, por muito que se afirme que os monopólios implicam o fim da concorrência (e a concorrência seria um motor de aumento da qualidade), o fim último de uma empresa a funcionar num mercado livre com o lucro apenas como telos é conseguir um monopólio.
Este são problemas da definição de mercado livre. Tem sido muitas vezes argumentado que a defesa de um mercado livre é, em última análise, contraditória, porque implica sempre a defesa de uma instância reguladora fora do mercado e não influenciável por ele que assegure o respeito da liberdade de transação e o respeito das regras comerciais. Porque um mercado realmente livre é um mercado em que manda mesmo e só a economia, mas isso é uma abstração do mesmo tipo que «o ser humano anterior à socialização»: é um conceito utilizável em exercícios de reflexão, mas que não corresponde a nada que tenha existido ou possa vir a existir.

Uma solução simples para estes dilemas é assentar que o comércio livre não deve ultrapassar os limites da lei, que a lei em vigor no lugar onde se comercia é a única instância reguladora aceite pelo mercado. Isto é, pelo menos em teoria, aceite pelos liberais, mas essa aceitação das leis vigentes é contraditória com o princípio do mercado livre, porque então devem também aceitar-se, sem protestar, as leis que regulam o mercado, até porque nunca ninguém defendeu a regulação do mercado per se, mas sempre esta regulação se deu para atingir fins políticos, que é outra maneira de dizer que a regulação do mercado se enquadra em programas éticos – pelo menos, quando não é determinada por uma parte poderosa dos participantes no mercado para se protegerem a si próprios**... Ora as forças do mercado não aceitam, precisamente, que as leis sejam como são quando as leis não são como elas as querem e tentam constantemente alterá-las, em função apenas da ideia de que «o mercado não deve ser regulado». O que nos traz de volta ao círculo da definição de limites morais essenciais a que os liberais não querem responder e que podiam resolver-se com a aceitação das leis vigentes, fossem elas quais fossem, porque são todas igualmente inimigas dos mercados – o que os liberais, afinal, não aceitam. E neste círculo giramos.

No fundo, o que não se diz, porque não convém, mas que determina em última análise a pressão do mercado sobre todos os regimes, é que se pretende que não haja mesmo nenhuma lei, nenhuma moral, que limite o funcionamento do mercado. O liberalismo económico acaba sempre por defender, opondo-se a toda a política, que o comércio é o único objetivo aceitável – o que, pelos vistos, é politicamente tão indefensável que nem o mais ferrenho defensor do liberalismo económico ousa admiti-lo às claras…

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* Complica um pouco as coisas o poder julgar-se especificamente a moralidade de uma transação comercial enquanto tipo específico de ação – a compra e a venda de sexo, por exemplo, são passíveis de uma análise moral independente da análise moral da prática de sexo não transacionado. Mas deixemos isto para outra conversa.

** Isto também dava uma conversa à parte: muitos liberais não se coíbem de defender a regulação do mercado, se esta regulação defender os seus interesses – alguém defende comércio livre com o mundo inteiro, que é o mesmo que dizer a desregulação efetiva do comércio?