08/05/25

Canções que referem outras canções #9: "Thirteen" e "Paint It Black"


A canção “Thirteen” foi escrita por Alex Chilton e Chris Bell e foi publicada originalmente em #1 Record dos Big Star, de 1972. A canção está na 396ª posição da lista das 500 melhores canções de sempre da revista Rolling Stone. É claro que fazer parte de uma lista dessas não diz nada sobre a canção nem sobre a sua qualidade. Mas olhem que eu, apesar de achar listas de melhores canções uma coisa bastante pateta, se fosse obrigado um dia a fazer uma lista dessas (espero que tal nunca aconteça!), era bem capaz de a incluir.

“Thirteen” é uma canção do início dos anos 70 sobre a adolescência em meados dos anos 60. Quando escreveram a canção, partindo do princípio que ela foi escrita em 1971, ano em que foi gravada, Alex Chilton e Chris Bell deviam ter 20 anos. A adolescência era ainda uma memória recente. Quando saiu “Paint it Black”, na primavera de 1966, Chilton e Bell tinham 15 anos.

 Won't you let me walk you home from school?
Won't you let me meet you at the pool?
Maybe Friday I can get tickets for the dance
And I'll take you


Won't you tell your dad get off my back?

Tell him what we said 'bout "Paint It Black"

Rock and roll is here to stay, come inside, well, it's okay

And I'll shake you


Won't you tell me what you're thinkin' of?

Would you be an outlaw for my love?

If it's so, well, let me know, if it's no, well, I can go

I won't make you

 Muitos concordarão que “Paint It Black”, de Mick Jagger e é uma das mais importantes canções dos Rolling Stones e também está na lista das 500 melhores canções de sempre da Rolling Stone: está em número 213, uns bons lugares acima de “Thirteen”. Agora, se me forçassem mesmo a fazer uma dessas disparatadas listas, livrem-me os deuses todos de tal pesadelo, era capaz de não me lembrar de “Paint It Black”, apesar de ser uma canção que conheço de cor e há muito tempo. Ao que consigo perceber, é canção sobre uma perda. O que será que as personagens da canção “Thirteen” terão dito de “Paint It Black”?

I see a line of cars

And they're all painted black

With flowers and my love

Both never to come back


I've seen people turn their heads

And quickly look away

Like a newborn baby

It just happens everyday


I look inside myself

And see my heart is black

I see my red door

I must have it painted black


Maybe then, I'll fade away

And not have to face the facts

It's not easy facing up

When your whole world is black



06/05/25

Vivement la retraite !


Não é que eu não goste do meu trabalho, não é isso… Mas, se os anos de vida que me restam passarem tão devagar como eu pressinto que hão de passar estes sete meses que restam até à reforma, terei então ainda muito tempo de vida... 

La_Motte-Chalancon_-_Fausse_plaque_avenue_de_la_retraite_tranquille_(mai_2022)
Foto de Sebleouf, licença Creative Commons, daqui.
«Avenida da Reforma Tranquila». Placa toponímica falsa, uma brincadeira.
Para quem não saiba francês, o «nome da comuna» lê-se como
 «j'ai bien bossé e j'en profite», 
que significa
«trabalhei muito e agora disfruto disso».
Vivement significa aqui «quem me dera já». Um dos exemplos do dicionário do CNRTL para este significado da palavra é precisamente o título deste breve apontamento (que lhe tinha já sido dado antes de o consultar). Isto deve significar que ansiar pela reforma não é um sentimento incomum, também entre os franceses.  

A retraite francesa é, para os portugueses, um conhecido «falso amigo», que é como se costuma chamar às palavras que, numa determinada língua, fazem lembrar palavras de outra língua (por serem cognatas ou por simples coincidência), mas significam coisas diferentes. O que é curioso é que retrete é de facto a palavra francesa, apenas com a grafia adaptada, que foi importadas para as línguas ibéricas e que ganhou aí, vá lá saber-se porquê, um sentido específico que não se lhe conhece em francês: o de sanita. A evolução é fácil de perceber: retraite significa «retirada» ou «retiro» (além de «reforma», como no título deste texto...); e, de um dos significados de «retiro», não o acontecimento mas o lugar onde este se dá, retrete fixou-se num lugar de retiro específico, tendo em seguida passado a significar um objeto central deste lugar. Duvido muito de que, em francês, retraite alguma vez tenha referido a casa de banho, e muito menos a sanita, porque o CNRTL, que costuma ser exaustivo nas suas entradas, dando também conta dos usos antigos, não o menciona



P. S.: O CNRTL classifica vivement apenas como advérbio. É-o seguramente, quanto à sua formação e a todos os seus outros usos, mas, neste que aqui trato, porta-se como uma forma verbal impessoal, com uma estrutura semelhante (que não o significado) a uma construção como «il faut», por exemplo, requerendo um objeto direto que, no caso de ser uma proposição, vem forçosamente no conjuntivo: Vivement qu'on en finisse ! Um advérbio, defina-se como se definir, não pode exigir objetos nem orações subordinadas, não é verdade? De maneira que definir categorias das palavras em abstrato, fora das frases em que são usadas, nem sempre funciona. Já agora: um caso curioso é também oxalá em português, galego e asturo-leonês ou ojalá em castelhano, que se consideram interjeições e que se portam como aquilo que de facto são, uma oração inteira – só que uma oração árabe, tomada de empréstimo e cristalizada nas línguas ibéricas, mas que continua a funcionar na frase como o que era originalmente. Outro caso curioso é eis, de que já aqui falei uma vez.  


02/05/25

Letra de médico

Dizia um artigo da Time de janeiro de 2007:

A descuidada letra dos médicos mata mais de 7000 pessoas anualmente. É uma estatística chocante e, segundo um relatório de julho de 2006 do Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências, há também erros de medicação evitáveis que afetam mais de  milhão e meio de americanos anualmente, muitos dos quais resultam de abreviaturas e indicações de dosagem pouco claras e de letra ilegível em algumas das 3,2 mil milhões de receitas passadas nos Estados Unidos todos os anos.

Não faço ideia de qual seria a dimensão do problemas noutros países, mas, como todos sabemos, não é só nos Estados Unidos que a letra de médico tem uma longa e robusta tradição de ilegibilidade. E é incompreensível! Quero dizer, não só a letra de médico é incompreensível como é incompreensível que ela seja incompreensível. Porque será que os médicos escrevem assim? Enfim, ainda bem que agora as receitas já são eletrónicas em muitos sítios.

O rabisco abaixo é uma brincadeira que tem andado aí pela Internet e de que, infelizmente, não consigo descobrir o autor. Anónimo, passa ele então a chamar-se aqui. Sabem o que quer isto dizer (em letra de médico, claro)?

Paracetamol%20Blogue

É paracetamol, obviamente (!?).

E porque estou agora a escrever isto? Bom, recebi há bocadinho uma mensagem de uma amigo meu que é médico (ou era, seja, está reformado), em que ele me pedia a morada de um amigo comum.

«Tu já me deste a morada», escreve ele, «mas tomei nota num papel e agora não consigo ler a minha letra.»

 A sério. Para que vejam.





01/05/25

As torres dos Suanos e outras torres

 

Qualquer texto sobre a Suanécia, no Cáucaso georgiano, refere as famosas torres dos Suanos e datará provavelmente a sua construção de entre os séculos VIII e XII. A página da Convenção do Património Mundial da Unesco sobre a Alta Suanécia vai até mais longe (traduzo eu do inglês):

As origens das casas-torres da Suanécia remontam à pré-história. As suas características refletem a economia e a organização social tradicionais das comunidades suanas. Estas torres têm geralmente de três a cinco andares e a espessura das muralhas vai diminuindo a partir da base, dando às torres um perfil esguio e afunilado. As moradias têm geralmente dois andares. No rés-do-chão, há uma única sala com uma lareira e alojamento para pessoas e animais domésticos, estes últimos separados das pessoas por uma divisória de madeira, muitas vezes ricamente decorada. Um anexo no corredor contribuía para o isolamento térmico do edifício. O piso superior era utilizado pelas pessoas durante o verão e servia também para guardar forragem e ferramentas. Uma porta no segundo andar dava acesso à torre, que tinha também uma ligação ao corredor que protegia a entrada. As casas-torres eram utilizadas como residência e como postos de defesa contra os invasores que assolavam a região.

Pode parecer-nos surpreendente que construções familiares, mesmo sendo de alguma forma militares, tenham durado tanto tempo, mas não nos virá a surpresa do hábito que temos de associar monumentos à aristocracia ou à religião?

De facto, há um pouco por toda a parte habitações privadas de camponeses e burgueses que foram construídas há muito tempo, mas a maior parte delas sofreu tantas modificações que é mais correto dizer que começaram a ser construídas há muitos séculos. Evidentemente, isto passa-se também com pontes e arcos, igrejas e conventos, castelos e palácios, e todas as construções enfim, de que se costuma datar a construção, mas não surpreende que se passe em maior escala em construções mais modestas e que servem fundamentalmente para habitação. 

As grandes torres meio fortaleza meio armazém, como as da Suanécia, parecem ser uma exceção de longevidade com poucas alterações na sua arquitetura. E eu, que nunca tinha visto nada semelhante noutras partes do mundo, pensei, quando descobri essas torres dos Suanos, que eram um fenómeno único, que só havia torres daquele tipo naquela zona. Mas não é bem assim. Escreve Studiolum no seu blogue Poemas del Río Wang (traduzo eu do inglês):

Os povos das planícies, sobre os quais a abóboda celeste paira a uma altura inalcançável, constroem cúpulas que imitam esse céu: iurtas, mesquitas, catedrais. Os povos das montanhas constroem torres, como se só fosse preciso somar aqueles vinte metros aos seus mil ou dois mil metros de altitude para conseguir tocar o céu estendendo apenas a mão. Depois das torres de Assis e de San Gimignano, do vale de Theth na Albânia, das casbás marroquinas e das torres do Svaneti, Tusheti e Inguchétia, as torres de Kham, no leste do Tibete, fornecem mais provas disso.

É uma explicação muito romântica da construção das torres, mas cheia de charme. (Ou talvez se deva usar um «portanto» em vez de um «mas»…) O artigo dá informação muito interessante sobre as torres tibetanas, ilustrada por excelentes fotografias. 

As fotografias das torres da Suanécia são minhas. 

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Alta Suanécia: Adishi com as suas torres
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Infelizmente, nem todas as torres da Suanécia estão em bom estado
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Ushguli é uma das localidades da Alta Suanécia com mais torres mais bem preservadas

Não é só na Alta Suanécia que há casas-torres na Geórgia. «Localizada na encosta norte das Montanhas do Grande Cáucaso, Tusheti é famosa pelas suas casas-fortaleza e torres fortificadas. … Semelhantes em termos de construção às torres da Suanécia, têm geralmente três a cinco andares… .

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Datlo, Tusheti, Geórgia. Foto: Lidia Ilona, CC License, daqui
Também na República da Inguchétia na Federação Russa se encontram casas-torres semelhantes às da Geórgia.

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Pyaling, Ingushétia. Foto: Timur Agirov. CC License, daqui
      
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Foto: LigaDue, CC License, daqui

Também há casas-torres em várias regiões dos Balcãs. São mais baixas que as do Cáucaso, do Tibete ou de San Gimignano e também alguns séculos mais recentes, tendo a sua construção começado no séc. XVII. 

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Thethi, Albânia. Foto: Doron, CC License, daqui

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Bujan, Albânia. Foto: ShkelzenRexha, CC License, daqui

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Vratsa, Bulgária. Foto: Nikolai Karaneschev, CC License, daqui


28/04/25

Os sons da língua, os sons da fala e os sons das letras

 

Acontece algumas vezes, na discussão de sistemas ortográficos, e, nomeadamente, na discussão da última reforma ortográfica do português, referir-se os conceitos de fonética e fonologia ou de elementos fonéticos e elementos fonológicos. Estes conceitos são desconhecidos da maior parte das pessoas, o que é perfeitamente natural, já que são conceitos técnicos, mas podem ser importantes em certas discussões. Por isso, decidi escrever um pequeno texto a descrevê-los muito sumariamente, para poder remeter para este texto quando/se, de futuro, o achar necessário. Já fiz isto antes: deixar aqui um texto a esclarecer conceitos que possa referir noutros textos do blogue. Note-se então: não é de modo nenhum de uma introdução à fonologia que aqui se trata, mas apenas de tentar esclarecer o que se quer dizer quando se diz que a escrita do português é, desde a reforma de 1911, uma escrita tendencialmente fonológica – e não fonética: uma escrita que tende a dar conta das unidades do sistema e não forçosamente dos sons pronunciados.

O que se segue é uma descrição muito simplificada e forçosamente pouco rigorosa de alguns conceitos, que eu creio que é suficiente para a discussão da ortografia e que espero que possa ser entendida por qualquer pessoa sem formação na área — embora não espere, claro, que uma pessoa que leia isto seja capaz de aplicar confortavelmente os conceitos no seu dia-a-dia. Os sons do português referidos neste texto são os do português europeu padrão. Quando falo de letras, refiro-as com maiúscula (A, B, C…); os sons efetivamente pronunciados são representados entre parênteses retos ([a], [b], [s]); as unidades do sistema (os fonemas, que podem corresponder a vários sons, como verão) são representadas entre barras oblíquas (/a/, /b/,/s/); e as pronúncias das palavras são apresentadas em negrito itálico. Para tudo isto, não recorro ao alfabético fonético, mas uso antes uma transcrição dos sons baseada na grafia do português ([j] para o primeiro som de giro, [ch] para o primeiro som de chácómudu para o som da palavra cómodo, etc.).

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Mas de que falo eu então quando falo de unidades do sistema – ou fonemas, como se costumam chamar? Dizemos que o som [f] de faca é um fonema, como o som [v] de vaca, porque estes sons distinguem estas palavras, entre muitas outras. Dizemos que os fonemas são unidades distintivas. Isto é uma definição simplificada, até porque [f] e [v] continuam a ser fonemas diferentes mesmo quando as palavras em que existem não têm nenhuma «parente próxima» que se distinga dela apenas por um som. Convém, pois, acrescentar que não se deve entender distintivas como «que distinguem de facto», mas antes como «que têm a capacidade de distinguir». 

Os sons [s] e [z] correspondem, portanto, a diferentes fonemas e distinguem, por exemplo, caçar de casar. Os sons [ch] e [j] também correspondem a fonemas diferentes, que distinguem, por exemplo, chá e , etc. Mas agora, vejamos qual é a relação entre letras e sons – e fonemas... Podemos constatar, por exemplo, que a letra S corresponde em português a quatro sons: 

[s], por exemplo em saber (em que tem o mesmo som que os dois SS em passo ou o Ç de loiça[1]); 

[z], por exemplo em casar (em que tem o mesmo som que o Z de zero ou fazer

[ch], por exemplo em rosto e nós (em que tem o mesmo som que o CH de chorar ou do X de lixo); e 

[j], por exemplo em pasmar (em que tem o mesmo som que o J de hoje ou do G de giro

Usamos então a mesma letra para representar quatro fonemas diferentes? Bom, nalguns casos usamos a mesma letra para representar fonemas diferentes: por exemplo, o S para o fonema /s/ em saber e para o fonema /z/ em casar. Mas, nalguns casos, os quatro possíveis sons do S são apenas variantes de uma mesma unidade. São os casos em que um som é determinado pelo som que se lhe segue e não se pode fugir a isso. O S de rosto, por muito que represente o mesmo som que o CH de chorar ou do X de lixo[1], não representa a mesma unidade do sistema que encontramos naquelas palavras, é apenas uma variante do fonema /s/, que se pronuncia forçosamente [ch] antes de uma consoante surda, isto é, uma consoante em que não vibram as cordas vocais, como [f], [k], [p], [t], [s]. Também o S de pasmar, por muito que se pronuncie [j], como o J de hoje ou o G de giro, não representa um fonema — o som é apenas uma variação obrigatória de /s/ antes de consoantes sonoras, isto é, as consoantes que se pronunciam com vibração das cordas vogais [b], [d], [g], [l], [m], [n], [r], [v], [z]. Então, neste caso, a letra S tem uma relação mais direta, se se pode dizer assim, com a unidade do sistema que representa em rosto e pasmar, que é a mesma, que os sons que correspondem a esses SS, que são diferentes entre si. Curioso é também o caso do S pronunciado [z]. Se, nalgumas situações, representa claramente um fonema /z/ distinto de /s/, como em casar, que se opõe a caçar, quando está no fim de uma palavra antes de outra palavra começada por vogal, é também só uma variante obrigatória de /s/, que naquela situação tem de ser pronunciado [z]: tens os olhos azuis diz-se tenzuzólhuzazuich [2]

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Um espetrograma: o som da palavra «é»
Não é só a letra S que pode representar vários sons que são variantes de um mesmo fonema. As letras B, D e G também correspondem, cada uma, a dois sons diferentes, mas a um único fonema. Isto é mais difícil de entender para a maioria dos falantes do português europeu, porque não têm consciência da diferença entre as duas maneiras de pronunciar cada uma destas letras, mas, se tomarem atenção (ou se virem um espetrograma do som pronunciado ou ouvirem uma gravação em velocidade mais lenta), verão que B, D e G entre vogais são pronunciados de forma mais «ligeira» (poupo-vos a descrição técnica, que é complicada, mas que podem encontrar aqui, aqui e aqui, respetivamente), de tal forma que podem corresponder a dois sons diferentes de outras línguas. É por não os considerarem sons diferentes que a grande maioria dos portugueses não distingue o D de day do TH de they em inglês padrão, embora eles correspondam respetivamente aos dois sons que se encontram na palavra dado em português falado normalmente. E digo falado normalmente, porque, se disserem as sílabas isoladas (por exemplo, para ver como as pronunciam, depois de lerem isto…), vão ter «dá… do», em que os dois DD têm o mesmo som. 

Agora, este fenómeno não se verifica só com consoantes. Também cada uma das letras A, E e O pode, às vezes, representar vários sons que correspondem a uma única unidade do sistema, porque naquela situação não pode ocorrer mais nenhuma. Uma maneira fácil de ver isto são as conjugações verbais. Se tomarmos o presente do verbo comer, por exemplo, estamos perante unidades do sistema, cuja pronúncia varia conforme estejam ou não na sílaba tónica. O O de comer pode pronunciar-se [ó], [ô] ou [u] e o E pode pronunciar-se [ê] ou [e] (E dito «fechado», às vezes não pronunciado), conforme estejam ou não na silaba tónica: eu cômu, tu cóm(e)s, ela cóm(e), nós cumêmus[3]

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Uma escrita fonológica ideal reduz a uma única letra todas as variantes de uma unidade do sistema, independentemente dos sons em que se manifeste e das diversas maneiras de falar essa língua. Isto não acontece numa escrita fonética, que é muito menos prática, porque, em princípio, um mesmo fonema se pode representar de várias formas e a representação direta da variação regional é forçosamente muito maior. É claro, a variação regional pode ser também fonológica, isto é, uma determinada palavra pode ter, num determinando dialeto, um fonema que não existe no outro. Por exemplo, facto tem, no português europeu, um fonema /k/ que não existe no português americano. Também é muitas vezes difícil, se não impossível, decidir o que tem relevância fonológica, especialmente quando se trata da oposição entre vogais, por exemplo, [ê] e [é] mas isso é uma discussão muito longa que não cabe aqui. 

O que me parece importante salientar é que, ao contrário do que muitas vezes se diz, a escrita atual do português é essencialmente fonológica e abarca, por isso, a grande maioria das variações de pronúncia dos seus falantes – porque as letras não tendem a representar os sons efetivamente ditos, mas sim as unidades que lhes subjazem, que podem ter várias pronúncias, também consoante a variante regional. E as reformas que tem havido, desde a de 1911, em que se inaugurou esse padrão, têm sido coerentes nesse sentido. Agora, digo «essencialmente fonológica», porque há ainda algumas coisas (o uso de H inicial é o mais óbvio, mas há muitas outras) que não têm nada nem de fonético nem de fonológico — e que, aliás, nem sequer seguem sempre uma lógica etimológica… Até à escrita completamente fonológica, há ainda algum caminho a percorrer... 


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[1] Isto não é verdade em todos as variantes do português, porque, no nordeste de Portugal, há ainda algumas (muito poucas) pessoas que pronunciam os CC sibilantes de forma diferente dos SS, mas esta oposição, que tem vindo a desparecer ao longo dos séculos, vai muito em breve desaparecer de vez. Em fases anteriores da língua, porém, esta distinção existia numa grande área do romance ibérico: distinguia-se uma pronúncia do S com a língua a tocar os alvéolos (o chamado «s beirão») e a pronúncia do Ç/CE, CI, igual à nossa pronúncia atual de todos estes sons, com a língua a tocar nos dentes (ver aqui).

[2] Há exceções dialetais a esta regra: em certos falares regionais portugueses e nalgum português moçambicano, ocorre nesta situação não o som [z], mas antes o som [j]: ‘tájaver?

[3] Esta regra está apresentada de uma forma simplificada. Por exemplo, em português europeu, o fonema /o/ (escrito O), quando não faz parte de um ditongo, pronuncia-se [u] quando é átono, ou seja, não está na sílaba tónica: culurídu, cómudu, pud(e)rôsu, etc. Ora esta regra aplica-se numa grande maioria dos casos, mas não sempre. 

Outra regra que a complementa é que, no início de uma palavra, quando /o/ é uma sílaba sozinho ou é início de sílaba seguido de uma consoante, se pronuncia sempre [ó]: obrigado, ostentação, organização, obtuso, etc. Outra regra complementar desta última é que o /o/ mantém essa abertura de [ó] em compostos por prefixação dessas palavras: desorganização, inoperante, etc. 

Muitos prefixos relativamente autónomos, como mono-, poli-, etc. mantém também o som [ó] quando formam compostos: monomania, polivalente, etc. Além disso, há exceções avulsas, em princípio por razões históricas que não vou aqui descrever: ecònomia, sòmente, etc.

Outra questão interessante é que, quando um O final nunca aparece em posição tónica na flexão de uma palavra, não haveria razão para o considerar uma variante de um /o/. Por exemplo, não há nenhuma palavra com a mesma raiz que político em que o O final se pronuncie [ô] ou [ó], mas a prova de que é um /o/ que está por baixo do [u] surge quando se liga o termo a outro termo: político-militar, etc.



27/04/25

Rimas poucas ou que não há: um texto em permanente atualização

 

Em francês, para se dizer de algo que é um disparate ou uma coisa sem sentido, pode dizer-se que «não rima com nada», ou então que é «sem rima nem razão». Agora, apesar de o francês ser uma língua em que é muito fácil rimar, tem, ainda assim, palavras que não rimam

Como não é tão fácil rimar em português como em francês, devia haver na nossa língua muitas mais palavras que não rimam com nenhumas outras palavras, ou seja, palavras que têm uma sequência de sons a partir da vogal da sílaba tónica que mais nenhuma palavra tem[1]. E é de facto o que acontece. Há muitas!!!; e são, na sua esmagadora maioria, esdrúxulas, uma coisa que não existe em francês[2]. É natural: se têm mais sons desde a tónica até ao fim da palavra, mais possibilidades há de não haver duas sequências de sons iguais.

E antão, que palavras não rimam com nenhumas outras? Vasco Castro Lima diz, em O Mundo Maravilhoso do Soneto, que «Mário de Alencar, em seu dicionário de consonâncias, revela que, em nossa língua, não encontrou rima para 146 palavras e locuções, inclusive nomes próprios. Ao que parece, a relação está incompleta, além do que não foi feita com o necessário cuidado». Pois bem, eu nem metade de 146 consigo encontrar. É certo que só há muito pouco tempo comecei a tomar nota delas. Com mais tempo — e a little help from my friends, que é como quem diz, os leitores deste blogue… —, talvez consiga fazer uma lista tão extensa como a de Mário de Alencar e, quem sabe, mais rigorosa.

Agora, não se faz uma lista assim sem uma importante decisão de base: o que conta como rima? Deve ou não aceitar-se como rima de uma palavra outra palavra dela composta por prefixação, aglutinação ou justaposição? Para dar exemplos, devem aceitar-se como rimas de célebre, côncavo e múltiplo as palavras palavra arquicélebre, recôncavo e submúltiplo? E aceita-se que estátua rima com homem-estátua ou púrpura com vermelho-púrpura? Parece fácil recusar estas últimas, por se considerar que as palavras estátua e púrpura mantêm a sua autonomia no composto; e talvez também arquicélebre, porque o elemento está disponível para juntar a quaisquer adjetivos como maneira de formar uma espécie de superlativo; mas os prefixos de recôncavo e submúltiplo são ou não um caso diferente, já que não se juntam com tanta facilidade a qualquer palavra? E casos como penúltima e antepenúltima como rima de última? E recâmara, antecâmara e sobrecâmara como rimas de câmara? E se as palavras que rimam com uma palavra relativamente comum, como bólide, forem apenas obscuros termos técnicos que ninguém conhece e que ninguém nunca usará para fazer um verso (que é aquilo para que as rimas normalmente servem…) como as rimas alcoólide, vacuólide ou hemifólide? E como avaliar se uma palavra é exclusiva de um jargão altamente especializado?

Bom, para já (para me facilitar a vida, sobretudo), não considero as rimas entre uma palavra e outras dela formadas com um prefixo, como nos exemplos do parágrafo anterior, nem palavras técnicas especializadíssimas. Para já, digo bem, talvez venha a rever ou afinar as regras. Ah, e assentemos também, já agora, numa regra de listagem: as palavras com flexão em género (masculino, feminino) e número (singular e plural) sem rima para nenhuma dessas formas são listadas no feminino singular, que é primeira forma por ordem alfabética; se for só a forma feminina que não tem rima, assiná-lo-ei.

Comecemos então pelas esdrúxulas, que são a maior parte, porque, como vimos, as rimas esdrúxulas são muito mais raras. N’Os Lusíadas, só para vos dar um exemplo (espero não me ter enganado a contar), nos 8 816 versos do poema, só 171 têm rimas esdrúxulas, ou seja, um pouco menos de 2% dos versos[3].

É claro, pode distinguir-se entre dois tipos de esdrúxulas: as que chamarei «verdadeiras esdrúxulas», com duas sílabas inegáveis depois da tónica, e as que chamarei «falsas esdrúxulas», que o são estruturalmente, mas que, na prática, são pronunciadas como graves, porque as duas últimas vogais são pronunciadas como um ditongo: prudência, história, mistério, perícia, etc. São muito mais abundantes as rimas com este segundo tipo de palavras. Voltando a’Os Lusíadas, só há nove versos que rimam com «verdadeiras» esdrúxulas. Tendo em conta que três deles são com rimas em -íssima e outros três com rimas em -íssimo, rimas em se faz rimar o sufixo flexional e que, por isso, são tão pobres que se podem quase considerar batota, só há três versos com rima esdrúxula «verdadeira», em que rimam válida, esquálida e pálida[4].

Até agora, encontrei 63 palavras esdrúxulas sem rima, algumas delas tão comuns que ninguém as suspeitaria assim, coitadas, abandonadas...: ápice, apólicebárbara, bátega, bêbada, bêbeda, bólide, cálicecélebre, célere, cérebro, cócega, côncavo, cúspide, discípula (discípulo tem rima), ébano, efémeroêmbolo, esdrúxula, fátuo, féretro, fígado, fôlego, fórmula, gáspeahéliceímpeto, inépcialágrima, lâmpada, lêndea, lúbricalúgubre, máquina, mármore, máxima, máximo, múltipla, música, músico, náufrago, néscioóbiceparalelepípedo, pássaro, pétala, pródiga (pródigo tem rima), príncipe, próxima, púlpitopúrpura, pústula, rômbicorótulo, sábado, século, sólida, têmpera, tímido, tráfego, última, víbora, xícara e zéfiro.

Quanto às outras, só me consigo lembrar de 17: âmbar, cãibra, cesta (cesto tem rima), cinza, glútenhífen, hímen, mesclamuita, muito, nuvem, órfã, quinze, sempre, sexta, sílex e simples. Mas também deve haver muitas mais. Agradecem-se contribuições, que acrescentarei logo às listas acima.

É de notar que é de sons e não de letras que se trata e que, por isso, pode haver casos em que uma rima pode depender da pronúncia do leitor. Por exemplo, em muitos sotaques de toda a lusofonia, mãe também é uma palavra sem rima — a não ser com o seu próprio diminutivo em português do Brasil, mamãe, uma rima também um pouco batota. Em português europeu standard, porém, mãe rima com todas as palavras terminadas em -em/ém tónico (bem, porém, contém, etc.), tal como -ães rima, naturalmente, com todos os -ens/éns tónicos (por exemplo, capitães ou pães com tens ou parabéns). No meu sotaque lisboeta, que é, neste aspeto desviante relativamente à norma, também rimam riu e rio, tio e partiu, etc., uma coisa que alguns acham muito divertida, outros muito feia…

Na tradição francesa, há por vezes «rima para o olho», quando as palavras que deviam rimar terminam com as mesmas letras, mas em que estas letras se pronunciam de forma diferente, como fusil, cujo L final não se pronuncia, e exil, cujo L final se pronuncia; ou seigneur, cujo R final se pronuncia e monsieur, cujo R final não se pronuncia. Nunca vi este artifício usado em português, mas, a usar-se, poderia resolver o problema de muita (muito, muitas, muitos), que não têm rima, por causa do ditongo nasal [ũj̃], que só ocorre nestas palavras, mas poderiam rimar «para o olho» com circuito e derivados (curto-circuito, etc.), fortuito, gratuito e intuito.

Como as palavras — e as rimas — são como as cerejas, quero aqui notar que algo que poderia corresponder um pouco à «rima para o olho» francesa é a tradição de pôr a rimar palavras com vogais tónicas de timbres diferentes, uma mais aberta que a outra, como em cometa e profeta, testa e cesta, logo e jogo; sedutora e demora, etc., às vezes apesar de diferenciadas pela grafia, como mês e dez, por exemplo. Se, em textos antigos, estas rimas podem dar indicações sobre pronúncias de outras épocas, a verdade é que elas hoje persistem, aceitando-se simplesmente que rimam palavras com vogais tónicas diferentes. Aliás, chega a parecer sofisticado que alguém distinga claramente as vogais de timbre «próximo», como por exemplo nesta quadra de Gabriel de Oliveira para o fado «Senhora do Monte»: Vai lá muita pecadora / Que de arrependida chora / Mas não é Nossa Senhora / Que naquela casa mora»

Outra palavra como muita que têm no meio um ditongo nasal único é cãibra, mas a esta não se lhe consegue arranjar rima «para o olho»...

E depois, há pares de palavras que só rimam entre si e com mais nenhumas. Encontrei 26 desses pares, alguns bastante curiosos, como escrúpulo e lúpulo, estúpida e cúpida, discípulo e manípulo, e lívido e vívido, mas há com certeza muitos mais[5]:

E depois, bem, há palavras com várias rimas sofisticadas e todas do mesmo tipo. Nuvem, por exemplo, só rima com formas de verbos acabados em -uvar, como enviúvem, enluvem e coadjuvem, por exemplo; ítem também só rima com formas verbais, mas rima com muitas (emitem, permitem, etc.). Se se pronunciar [íteme], porém, como às vezes se pronuncia, não rima com mais palavra nenhuma...

Também há palavras que só rimam com nomes próprios, como delével, que, além de rimar com a negação de si próprio, indelével, rima apenas com Pontével ou pícaro, que só rima com Ícaro. Já que falo de nomes, quero referir de passagem que os nomes Cristóvão e Estêvão têm também rimas tão incomuns como órfão ou órgão: só podem ser, respetivamente, formas de verbos em -ovar, como desovam, inovam ou provam e formas de verbos em -ever, como, por exemplo, atrevam, devam ou descrevam — que é o que usa Gabriel de Oliveira (é a segunda vez que aqui parece neste texto!) no fado «Igreja de Santo Estêvão»: «Na igreja de Santo Estêvão / Junto ao cruzeiro do adro / Houve em tempos guitarradas // Não há pincéis que descrevam / Aquele soberbo quadro / Dessas noites bem passadas».

Por fim, quero notar que pode haver rima de sequências de sons maiores que uma palavra: de uma palavra com mais que uma palavra, ou de sequências de palavras com outras sequências de palavras. Pode haver até holorrimas, rimas de versos inteiros, mas o fenómeno é tão raro em português que os dicionários nem registam o termo. Já aqui falei disso uma vez . Uma solução para fazer rimar palavras que não rimam com mais nenhuma palavra pode ser, precisamente, fazê-las rimar com mais que uma palavra. Mas isto também não é fácil. O poema «Berceuse das rimas riquíssimas», de Guilherme de Almeida, é um mostruário deste tipo de rimas .

Durma! A noite suave e grande
anda com passos de lã de
luar, de penugem de nuvem...
Durma! Em seu corpo alvo e nu vem
tocar as asas um ar de
jardins distantes... É tarde.
Durma à sombra dos meus olhos
como de uma árvore e molhe os
seus sonhos nas minhas lágrimas,
não esbrerando um milagre mas
sentindo que o mal e o bem são
uma única e mesma bênção...
Durma! E que a minha voz seja
uma voz que só você já
ouviu em sonhos: a voz que
a Adormecida do Bosque
nunca escutou no seu sono...
Durma! E sonhe que eu não sou no
mundo mais do que um silêncio:
este silêncio que vence o
meu corpo todo e brotou do
seu corpo e que o envolve todo...

Está quase perfeito. O truque de fazer rimar nuvem com «nu vem» quase funciona, mas vem é acentuado, ao contrário da última sílaba de nuvem. Tirando isso, a rima depende aqui muito da pronúncia do leitor. Em português europeu, muito dificilmente lágrimas rima com «milagre mas» e «bem são» com bênção; e seja nunca rima com «você já» (mesmo descontando a mudança de posição do acento tónico) e, nalguns dialetos, «brotou do» não rima com todo, nem «sou no» com sono.

E acho que por agora é tudo. Alguma coisa a gente tem de arranjar para fazer passar o tempo, não é verdade?

P.S.: Não conheço nenhum verdadeiro dicionário de rimas online. Há sites que se autodenominam assim, mas não o são de facto, mas antes ferramentas que organizam por terminação (escrita!) bases de dados com muitas palavras. Não dão conta da acentuação e misturam, por isso, palavras agudas e esdrúxulas (rótula e rotula) e terminações gráficas iguais com sons diferentes (léxico e México), além de que não mostram eventuais rimas com grafias diferentes (opiáceo e prefácio, por exemplo). Conhecendo as suas limitações e sabendo como lidar com eles, podem ser, porém, boas ferramentas. Creio que o melhor que experimentei é este.

__________________


[1] Rima é uma daquelas coisas que muitas pessoas sabem o que é, sem saberem ao certo como se define, mas a definição exata é precisamente «total coincidência de sons de duas palavras a partir da vogal tónica, inclusive». Quer dizer, isto de facto não é bem verdade: chama-se à rima como acabo de a definir rima consoante e há outra rima, chamada soante ou toante, em que coincidem só as vogais tónicas. É uma rima fácil demais, que não tem, a bem dizer, limites nenhuns, pelo que não interessa falar dela aqui….

[2] Esdrúxulas ou proparoxítonas são palavras com o acento na antepenúltima sílaba tónica. Em francês, as palavras têm sempre o acento tónico na última sílaba, a não ser quando terminam em E não acentuado — nesse caso têm o acento na penúltima. Não há, pois, esdrúxulas em francês. Já agora, uma curiosidade: como tenham talvez lido acima, a palavra esdrúxulo, nas suas variações em género e número, é precisamente uma palavra que não rima com mais nenhuma.

[3] Mais concretamente, há dois versos em -águas, -ânia, -égia, e -ópia; três versos em -álida, -éria, -íssima, -íssimo, -ónia, -ónios e -ório; quatro versos em -ábio; seis versos em -ária; oito versos em -ícia(s); nove versos em -ério(s); 11 versos em -ário(s); 20 versos em -ício(s); 38 versos em -ória(s); e 46 versos em -ência.

[4] Canto V, estrofe 39: «Não acabaua, quando ũa figura / Se nos mostra no ar, robusta & valida, / De disforme & grandíssima estatura; / O rosto carregado, a barba esqualida, / Os olhos encouados, & a postura / Medonha & maa, & a cor terrena & palida […]»

[5]  Eis aqui a lista de palavras só com uma rima (trabalho em permanente atualização): antitússico e prússico; arfam e garfam; autópsia e biópsia; bólido e sólido; câmara e tâmara; cisne e tisne; cítrico e nítrico; código e pródigo; escrúpulo e lúpulo, estirpe e extirpe; estúpida e cúpida; discípulo e manípulo; frígida e rígida (bom, há Brígida, mas isso…); hórrida e tórrida; húmida e túmida; lívido e vívido (lívida tem uma terceira rima, dívida); lápide e cápide (uma palavra rara. mas registada nos dicionários. que refere uma taça usada em sacrifícios e que fica, por isso, muito bem a rimar com lápide); mandíbula e fíbula; máscula e báscula; másculo e básculo (note-se que báscula e básculo são objetos muito diferentes...), nádega e tádega (uma bonita flor); órfão e morfam; órgão e outorgam; ósculo e flósculo (cada uma das florzinhas de um capítulo, que romântica rima!), pênsil e estêncil (os dicionários registam assim, mas eu digo setêncil); público e repúblico (um estranho adjetivo que nunca vi nem ouvi, mas de significado transparente e que os dicionários acolhem); sólida e apólida (uma forma muito incomum de dizer «apátrida» que os dicionários registam); timbro e zimbro; trémula e gémula (outra palavra bastante desconhecida que os dicionários registam), e úbere e púbere.


23/04/25

De negativas não muito negativas

No aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, há uma escultura de Charles Pétillon chamada Le Phare, «O farol». De um dos lados da obra, há uma placa com uma frase que, presumo eu, o artista ali quis como complemento da escultura: A Paris, il n’y a pas d’heure pour rêver. Como muitos utentes do aeroporto não falam inglês, pode ler-se, por baixo desta frase, a sua tradução para inglês: In Paris, there is always time to dream.
A frase está, parece-me, bem traduzida. À primeira vista, porém, surpreendeu-me que, sendo todos os elementos que constituem as duas frases diretamente correspondentes, a francesa seja negativa e a inglesa não. Depois de refletir um bocadinho, dei-me conta de que são possíveis, em português, duas frases que correspondem, elemento por elemento, à frase francesa e à frase inglesa: «Em Paris, não há hora para sonhar» e «Em Paris, há sempre tempo para sonhar».
Dos muitos significados que hora pode ter, significa aqui – com a preposição para, note-se! – «tempo específico (para); momento destinado (a); período marcado (para)». Curiosamente, na lógica do português e do francês, «não há hora para sonhar» entende-se imediatamente como «pode sonhar-se a qualquer hora» e não como «não existe nenhum período para a ocorrência de sonho». O mesmo, por exemplo, em «não tenho hora para comer», que se compreende como «não como a uma hora certa» e não como «não tenho nenhum período em que coma». Ou seja, «não há hora para x» significa «x pode dar-se a qualquer hora» e não «x não ocorre em nenhuma hora».
Na frase inglesa, tempo significa de facto «tempo suficiente» ou «tempo livre, disponibilidade». Por muito que, como disse, me pareça bem a tradução, as duas frases não são de facto correspondentes: se as juntarmos (ou as proposições que lhes subjazem, seja, aqui «traduzidas» para português), vemos que a inglesa decorre da francesa, mas não ao contrário. Faz sentido a frase «em Paris, sonha-se a qualquer hora, porque há sempre tempo para tal», mas a frase «em Paris, há sempre tempo para sonhar, porque se sonha a qualquer hora» é de uma lógica muito duvidosa...
São duas as morais desta história: uma é que, ao contrário do que muita gente pretende, a língua tem uma lógica que lhe é própria, sem deixar de ser lógica; outra é que Paris tem sorte em se poder lá sonhar a qualquer hora, de lá haver sempre tempo para sonhar – porque há muitos lugares do mundo em que isso não acontece...

21/04/25

In Memoriam William Labov

William Labov morreu a 17 de dezembro passado e eu só agora soube da sua morte, por uma emotiva eulogia de um seu aluno e seguidor. Labov foi um dos grandes linguistas do século XX e um dos pais da sociolinguística. 

A sociolinguística é uma área de estudos a que nunca me dediquei muito, mas posso dizer, ainda assim, que foi um dos linguistas que mais me marcou. Lembro-me bem que, quando li Sociolinguistic Patterns, fiquei muito impressionado com o rigor da metodologia e da análise dos dados recolhidos. Foi sem dúvida uma das obras que criou em mim a paixão que tenho pela linguística. 

Muito haveria a dizer sobre a obra de Labov, mas não sou a pessoa mais indicada para o fazer. O link aí acima pode dar-vos uma boa ideia, se dominarem bem o inglês, da importância do linguista e de algumas das suas principais áreas de atividade. Também deixo aqui um link para um vídeo com doze anos, feito quando Labov tinha 85 anos, que dá uma muito breve panorâmica da sua vida, obra e ideias. Também podem ler, por exemplo, um texto que o próprio Labov escreveu em 1987, a contar como é que foi parar à linguística e o que é que a linguística que lhe deu. Ou procurem vocês, há muita coisa dele e sobre ela na Internet. Hão de gostar.




PS: Falei aqui uma vez na Travessa de um dos seus princípios da mudança linguística e talvez queiram dar uma saltada a esse breve artigo. A foto é tirada de uma página da Universidade da Pensilvânia e acho que se pode aqui considerar uso aceitável...

  

19/04/25

Os primórdios de Giraud e o mestre Jijé


É lugar-comum — de tão evidente que é — referir-se a influência de Jijé em Jean Giraud. Joseph Gillain, mais conhecido como Jijé, é sem dúvida um dos autores mais importantes de banda desenhada da chamada escola belga e não foi apenas Jean Giraud que o seu traço influenciou. Mas, dos seus muitos discípulos, digamos assim, Jean Giraud, também conhecido como Gir e Mœbius, foi talvez o mais importante — e partilhou com o mestre um dos géneros em que se tornou mais popular, o western: sem dúvida que Blueberry deve muito a Jerry Spring

O que vos apresento a seguir é um olhar de relance sobre o início da relação entre os dois criadores e o impacto que ela tem em Giraud. Gilles Ratier diz-nos que «[e]m 1958, pouco antes de cumprir o serviço militar[, Jean Giraud] decide conhecer pessoalmente, na companhia dos seus amigos [Jean-Claude] Mézières e [Patrick] Mallet, o desenhador que sempre os inspirou: Jijé. Este último, que vive nessa altura na região de Paris, encoraja calorosamente estes promissores novatos». Giraud diz que este encontro o marcou muito. Jijé tinha em comum com ele ter vivido no México, mas, reconhece Giraud (obviamente) em bota tivessem ambos «fontes autênticas», Jijé tinha-as integrado muito melhor do que ele: «a sua bagagem gráfica era muito maior». 

É curioso ver como Jijé relata este encontro e a sua «colaboração» com Giraud (daqui):

Jean [Giraud] veio a minha casa, acompanhado por Mézières e Mallet; deviam ter uns dezoito anos e estudavam, creio eu, nas Arts-Déco ou na Estienne. Pareceram-me muito atenciosos com Mallet, que sofria de surdez. Não me recordo de nada desta visita, a não ser da jovialidade e da descontração de Mézières. Mais tarde — não sei como, nem quando, nem porquê —, foi sobretudo Giraud que voltei a ver. O seu desenho era o único, na época, que tinha valor do ponto de vista técnico. Não me recordo em que circunstâncias começou a trabalhar para mim. Sem dúvida, como aconteceu várias vezes com outros jovens, passou algumas tardes a desenhar e a conversar no atelier... Ofereci-lhe uma colaboração no Jerry Spring. Já não me recordo do verdadeiro motivo; penso que foi com a intenção de lhe ensinar o ofício na prática. Iniciou «La Route de Coronado» com grande dificuldade e imediatamente, sempre com um objetivo prático, passámos a dividir o trabalho: Jijé desenhado a lápis, Giraud passava a tinta, sob a minha direção, e com retoques de Jijé.

Não se deixem confundir pela referência a si próprio na terceira pessoa: é Jijé quem fala. O «mais tarde» a que ele se refere é o reencontro quando Giraud volta da tropa. Agora a perspetiva de Giraud:

Quando voltei da tropa, fui ter com Gillain outra vez […]. Ele achou que já estava em condições de fazer uma banda desenhada com ele: «La Route de Coronado», no Spirou: Joseph desenhava e eu passava a tinta. […] Não era seu «assistente», era seu «aluno». Tendo eu a admiração que tinha por ele, esta proposta foi uma grande emoção da minha vida. Era quase como se ele me tivesse dito: «Queres que eu seja teu pai?» Eu não tinha pai e, coisa maravilhosa!, arranjei um. E um pai no desenho! Trabalhámos assim durante um ano. […]

A minha relação com Gillain é realmente uma relação de pai e filho. Durante o tempo em que trabalhei com ele, ele quis ser meu pai e eu quis ser seu filho. A transferência parental deu-se na esfera artística, assumi com entusiasmo o papel de filho dele no desenho. Foi uma época maravilhosa. Joseph era um pai perfeito. Só me posso congratular pelas lições que ele me deu...

Para os amadores de BD, e em especial para os admiradores de Jijé e de Jean Giraud, como eu, é interessante saber tudo isto, mas não é menos interessante ver como o traço de Giraud evolui desde os seus primeiros westerns «realistas» com a personagem Art Hawell em 1957 até ao início da série Blueberry no Spirou, em 1963, naquela altura ainda como «Fort Navajo» (que veio a ser o nome do primeiro álbum, quando a série foi publicada em álbuns).

Se olharmos para pranchas de Giraud de 1957 e 1958, é fácil ver por que razão, da visita dos jovens Giraud, Mézières e Mallet, Jijé se lembra sobretudo da vivacidade de Mezières; e pode-se imaginar em que termos encorajou o jovem Giraud... A técnica de Giraud é ainda perfeitamente amadora, com falhas básicas em termos de anatomia, proporções e perspetivas etc., mas não deixa de se notar claramente a influência de Jerry Spring.

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Duas pranchas da série Art Hawell, com desenhos de Jean Giraud. A da esquerda é de 1957 e a da direita de 1958.

Nas pranchas de Jerry Spring passadas a tinta por Giraud, já não se nota nada deste amadorismo — nem podia notar-se, já que o desenho, onde se notavam, nas pranchas acima, as insuficiências de Giraud, é aqui só de Jijé. Se houve também insuficiências na passagem a tinta, Jijé corrigiu-as. Mas foi sem dúvida uma grande escola. Aprende-se muito ao passar a tinta os desenhos de um grande desenhador, sobretudo se se tem já o talento inato que Giraud tinha.

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As páginas 12 e 14 de «La Route de Coronado», um episódio da série Jerry Spring, de Jijé. Desenho de Jijé, tinta de Jean Giraud e Jijé. 

Nas histórias ilustradas apenas por Giraud nesse mesmo ano, notam-se grandes progressos, embora o desenhador não tivesse ainda atingido a sua maturidade artística. A influência de Jijé e do seu Jerry Spring continua a ser evidente.

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Um western de Jean Giraud em 1961.
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A primeiríssima prancha da famosa série Blueberry.
Foi publicada no nº 210 da revista Pilote, a 31.10.1963.
Note-se que Giraud já assina Gir. O pseudónimo Mœbius só surgirá em 1974.   
Em 1963, é publicada a primeira aventura do tenente Mike Blueberry, com guião de Jean-Michel Charler, que viria a suplantar em fama o seu «antepassado» Jerry Spring. É clara a evolução do desenho de Gir relativamente às páginas de 1961 apresentadas acima, mas não tem ainda a qualidade que lhe conhecemos na sua obra posterior e que fará dele não só um nome maior da BD mas também um dos grandes desenhadores da segunda metade do século passado.

Em 1972, dez anos depois de o jovem Giraud ter colaborado com o seu mestre Jijé na passagem a tinta de algumas pranchas de Jerry Spring, «pai» e «filho» fazem um cadavre exquis em direto na televisão francesa. Nessa altura, Gir tinha já publicado dez volumes da sua famosa série Blueberry, era já um autor de BD famoso e o seu traço já não era em nada menos seguro e elegante que o do seu mestre.

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Nota: Todas as traduções do francês são minhas.




17/04/25

Idade e sabedoria

 I

A ideia de que uma pessoa se vai tornando mais sábia com a idade está tão espalhada que a aceitamos sem a escrutinar, como verdade a priori. Mas será mesmo assim? 

Evidentemente, a questão de fundo é definir sabedoria. Uma volta pelas definições dos dicionários, depois da limpeza de redundâncias e sinonímias mascaradas, dá-nos dois tons de sabedoria

Às vezes, diz-se sábia a pessoa com erudição, com grandes conhecimentos. É natural: afinal a palavra vem de saber, não é verdade? Sábio é quem sabe muito, pois então… 

Mas sabedoria também pode ser bom senso, sensatez, juízo, em última análise talvez maturidade. Aqui já não é saber coisas que conta, mas saber da vida, ter dela experiência. 

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Ludwig Knaus, Avô e neto a conversar, s.d. ca. 1900
Quanto ao primeiro significado de sabedoria, se se pode argumentar que mais tempo de vida dá mais tempo para se instruir, também é inegável que há quem aos 25 anos tenha mais conhecimentos que a maior parte das pessoas aos 75; e que o tempo, a partir de certa altura, já não é saber que traz, mas perda da capacidade de articular — quando não de recordar — os conhecimentos que já se teve. O diabo sabe muito por ser velho, mas talvez já tenha sabido ainda mais antes de o ser… 

Passemos ao outro significado de sabedoria. Na aceção de sensatez, a idade conta, mas talvez nem sempre como estamos habituados a pensar. É evidente que a acumulação de experiência de vida nos vai tornando mais ajuizados. Quando temos um reportório maior de resultados observados de determinadas ações e escolhas, sabemos melhor quais é resultam ou, no mínimo, quais é que não resultam. Agora, pode-se pensar-se também que talvez haja outro lado menos positivo do acumular de experiência, se esta cristalizar, a certa altura, numa conceção de normalidade que freia a acumulação de novas experiências. 

Mas enfim, isto sou a falar, com algum bom senso, talvez, mas duvidosa sabedoria. Que diz sobre a questão quem muito refletiu sobre ela e/ou a investiga? É uma coisa que me acontece cada vez mais com a idade: quando acabo de refletir sobre qualquer coisa, sinto necessidade de ver o que já foi dito sobre ela. E, claro, a minha própria reflexão revela-se normalmente sem grande interesse, quando confrontada com o que pensaram pessoas mais informadas que eu. Agora, não sei esta consciência é um produto da minha crescente sabedoria ou se o que eu penso, com a degradação de capacidades que a idade vai trazendo, é cada vez menos inspirado e interessante… Mas adiante. 


II

Antes de mais, assentemos em que wisdom em inglês corresponde bem a sabedoria em português. Pode haver nuances semânticas entre a noção de wisdom em inglês e a noção de sabedoria em português, mas creio que, no geral, as duas palavras são usadas para referir uma mesma capacidade ou característica; e que, quando se fala de uma pessoa sábia se está querer dizer o mesmo que quando se diz a wise person. E esclareço isto, porque não encontrei estudos sobre sabedoria em português, só sobre wisdom em inglês. 

É claro, uma vertente fundamental da investigação sobre sabedoria é a investigação sobre a própria definição do conceito. Embora sempre em relativa consonância com as definições do senso comum e dos dicionários, os estudiosos não têm todos exatamente a mesma conceção de sabedoria*. Há quem defina a sabedoria a partir de três facetas essenciais: um profundo e abrangente conhecimento de si próprio, dos outros e do mundo [a faceta cognitiva da sabedoria], regulação de emoções complexas, no sentido de tolerância da ambiguidade [a faceta emotiva da sabedoria]; e uma orientação que transcenda o interesse próprio e se centre no bem-estar dos outros e do mundo [a faceta motivacional]. Há quem defina a sabedoria a partir de cinco critérios de base: grande conhecimento de factos, grande conhecimento processual (estratégias para dar conselhos ou resolver conflitos), contextualização dos problemas, relativismo de valores (aceitar as divergências entre indivíduos); e reconhecimento e gestão da incerteza. E há também quem defina mais sucintamente a sabedoria como aplicação de conhecimentos tácitos a problemas em que há conflitos entre indivíduos ou aspetos da vida.

É importante notar, sobretudo, que as capacidades atrás referidas não são, isoladamente, suficientes para constituir sabedoria. Para que a sabedoria se desenvolva numa pessoa, é necessária a convergência de certos traços de personalidade, como inteligência, criatividade, sociabilidade, equilíbrio emocional, orientação ética; alguma, mas não demasiada, autoestima e voluntarismo; e experiência de vida, sobretudo de situações difíceis. 

Além disso, costuma dividir-se a sabedoria em sabedoria individual e sabedoria geral, conforme se trate de sabedoria sobre si próprio ou sabedoria sobre os outros. Estes dois tipos de sabedoria podem estar mais ou menos presentes numa pessoa, ou pode até estar presente só um deles. Muitos de nós conhecemos provavelmente pessoas que são boa conselheira de outros, mas procuram aconselhamento para os seus próprios problemas, que não conseguem analisar nem resolver. 

Outra questão que se coloca é a da natureza da sabedoria: pensamos na sabedoria como característica ou competências, ou leque de capacidades ou competências, mas de um tipo mais essencial ou mais ocasional? Alguns estudiosos discutem se se trata de uma característica pessoal (uma pessoa é sábia ou não é) ou antes de um estado (uma pessoa tem sabedoria em certos momentos ou situações, mas não forçosamente em todas). E há quem defenda, com base em evidência, que se trata mais de um estado que de um traço estável de um indivíduo**. 


III

E então, a sabedoria vai ou não aumentando com a idade? Evidentemente, não é fácil medir sabedoria e, como as definições de sabedoria nem sempre coincidem em pormenor, não são sempre exatamente as mesmas capacidades, competências, etc. — ou seja, a mesma sabedoria — que cada investigador quer medir, o que dificulta uma análise conjunta dos diversos estudos. Ainda assim, parece haver algumas conclusões a tirar da análise das medições que se fazem, às vezes como questionários de autoavaliação, outras vezes como análise de desempenho — e também no que toca à relação entre sabedoria e idade.

Sabe-se que, em geral, é mais difícil uma pessoa, sábia ou não, ter um bom conhecimento de si própria que das outras e que as crianças desenvolvem um conhecimento do mundo antes do autoconhecimento. Poderíamos, portanto, pensar que a sabedoria geral surge antes da sabedoria individual. Sabe-se também que, por outro lado, a memória funciona melhor para informação relacionada connosco próprios — mas que há casos, porém, em que apagamos ou modificamos inconscientemente recordações negativas. 

No geral, a idade não parece ser fator determinante nem de sabedoria geral, nem de sabedoria. «Adultos mais velhos apresentam desempenho tão bom quanto adultos mais jovens. (…) Mas, como esperado, envelhecer não é suficiente para se tornar mais sábio. Em vez disso, descobrimos que adultos mais velhos tiveram melhor desempenho em dilemas típicos da sua idade, e adultos jovens tiveram melhor desempenho em dilemas típicos da juventude.»*

Demos a palavra a Julie Erickson, que resume a questão muito melhor do que eu seria capaz de fazer***: 

«Há componentes que aumentam, permanecem estáveis e diminuem, bem como fatores contextuais relevantes que influenciam a trajetória da sabedoria ao longo da vida. 

Aspetos da sabedoria que se sabe que melhoram, com base em pesquisas longitudinais e transversais, são a experiência de vida, a capacidade de autorreflexão sobre essas experiências, a regulação emocional, a empatia e a perspetivação. Isso sugere que, à medida que envelhecemos, geralmente vamos aprendendo a guardar espaço para diversas emoções e vamos aprendendo com a experiência, ao mesmo tempo que nos vamos tornando mais amáveis e mais conscientes das experiências dos outros. 

Também há aspetos da sabedoria que podem não ser tão fortes numa idade mais avançada: quando é necessária rapidez no processamento de informações — por exemplo, na resolução de problemas novos e complexos — os idosos têm um desempenho inferior. Muitos idosos, porém, podem aprender a compensar esse declínio usando outros pontos fortes, como basear-se em experiências anteriores com problemas semelhantes.» 


IV

Não que a minha impressão inicial se afastasse muito destas conclusões, mas sinto que o texto ganhou em não ter ficado só pelos sete parágrafos iniciais. E eu mais que o texto. Quando se investiga alguma coisa, encontra-se sempre mais do que se procura e, também por isso, é sempre bom investigar tudo — ora aí está uma migalha de sabedoria que a minha experiência me ensinou. 

Já agora, para terminar, uma constatação interessante descrita num artigo de Ursula Staudinger e Judith Glück*: as pessoas consideradas sábias dão conta de menos emoções, tanto negativas como positivas, que as outras pessoas, mas revelam-se emocionalmente mais empenhadas nos outros que as pessoas não consideradas sábias. Sábio é, concluo eu então, quem vive com moderação, também emocional, e não num romântico carrossel de afetos; e quem centra a sua vida nos outros e não em si próprio — virtudes em que muito já se tem insistido, não é verdade?, e desde há muito tempo... e que se aplicam a qualquer idade. 


_________________


* A maioria das informações que me permitiram compor o texto que se segue e a citação assinalada com * vêm de um artigo que Ursula Staudinger e Judith Glück publicaram no nº 62 da Annual Review of Psychology, em 2011: Psychological wisdom research: Commonalities and differences in a growing field. Foi o que de mais panorâmico consegui encontrar quando me propus tentar ter uma ideia do que diziam os psicólogos sobre a questão. 

** Ver este artigo no número de 31.8.2016 da revista The Psychologist, da Sociedade Britânica de Psicologia, sobre um trabalho de Igor Grossman e outros. Também se pode aceder à versão pré-publicação de um artigo de Grossman, Kung, & Santos de 2019 sobre o mesmo tema

*** Julie Erickson, «Do We Get Wiser as We Age? Aspects of wisdom both increase and decrease as we age», publicado em Psychology Today a 16 de junho de 2024.


12/04/25

O cavalinho branco e outras cantigas: da influência de Brassens

 

Há uns anos, encontrei, já não me lembro onde, umas páginas de um jornal sueco dos anos setenta, que tinham uma entrevista com Cornelis Vreeswijk — um importante cantautor sueco-neerlandês, muito conhecido em toda a Escandinávia —, em que ele contava como ficara fascinado com o primeiro álbum de Georges Brassens: dizia que, quando ouviu «Le petit cheval blanc», foi um mundo novo que se abriu para ele. E considerava Brassens um dos cantautores que mais o influenciara[1].

No outro dia, vi uma entrevista com Isabelle Mayereau — uma cantautora francesa, menos conhecida do que merecia, acho eu —, em que ela descreve o mesmo fascínio quando, menina ainda, ouviu pela primeira vez esse álbum, que o seu pai acabava de comprar. Foi esse disco, diz ela, que, lhe deu vontade de começar a aprender a guitarra[2].

Não há nada mais diferente de Cornelis Vreeswijk que Isabelle Mayereau. E, no entanto, Brassens foi influente para ambos — para terem feito o que fizeram. Não que os tenha influenciado musicalmente, que influência musical é outra coisa. Mas coincidirem Vreeswijk e Mayereau no fascínio por Brassens é mais que pura coincidência, se me permitem o trocadilho.

O primeiro álbum de Brassens, estou eu em crer, é uma obra altamente influente em toda a canção de autor europeia. Pelo menos, na canção de autor europeia. Evidentemente, não será o único álbum influente de Brassens, já que Brassens foi sempre influente. Mas era uma novidade, pelos textos e pelo espírito em geral, e também pela sonoridade: não se tinham com certeza gravado muitos álbuns europeus de canção de texto em que o autor se acompanhasse a si próprio com guitarra acústica, neste caso apenas secundado pelo contrabaixo de Pierre Nicolas.

Brassens foi, sem dúvida, um dos pioneiros desta sonoridade, mas, como acontece com todos os pioneiros, tinha havido outros pioneiros antes dele. Brassens diz, numa entrevista de 1961, que tinha sido Félix Leclerc — um grande cantautor quebequense — que o tinha ajudado, com «a sua singeleza, o seu despojamento, a sua maneira de cantar sem artifícios, uma maneira de cantar contrária a tudo o que se tinha feito até então». «Foi decerto isso», continua Brassens, «que me permitiu chegar ao palco e ser aceite, porque já se tinha aceitado Félix Leclerc.»

Leclerc também se apresentava, ao vivo e em disco, muitos vezes sozinho com a sua guitarra. Era sete anos mais velho que Brassens, mas a sua carreira discográfica só precedeu em dois anos a do cantautor francês. Entre 1950 e 1952, porém, Félix Leclerc dera muitos espetáculos em França e tivera aí um grande sucesso, sendo o seu estilo considerado muito inovador na canção de língua francesa. É neste contexto que se devem entender as declarações de Brassens.

Ainda bem que há um site como o Second Hand Songs que nos dá uma visão global, se bem que forçosamente incompleta, de uma das formas tangíveis da influência de um cantor ou de um compositor de canções: as versões que são feitas das suas canções. Das seis canções do primeiro álbum de Brassens atrás referido, todas foram objeto de muitas versões: há pelo menos[3] 13 versões gravadas de “La chasse aux papillons”, 25 versões gravadas de “La mauvaise réputation”, cinco versões gravadas de “Le fossoyeur”, 28 versões gravadas de “Le gorille”, 20 versões gravadas de “Le parapluie” e seis versões gravadas de “Le Petit Cheval”, uma das poucas canções de Brassens em que ele musica um poema alheio, neste caso «Complainte du petit cheval blanc», de Paul Fort.

Não surpreende que a maior parte das versões sejam em francês, mas há ainda assim um número razoável de versões noutras línguas: “La chasse aux papillons” tem versões em hebraico, espanhol e neerlandês; “La mauvaise réputation” tem versões em inglês, hebraico, italiano, duas em português[4], e três em espanhol, uma das quais (a de Paco Ibañez) cantada pelo próprio Brassens; “Le fossoyeur” tem uma versão em hebraico e outra em espanhol; “Le gorille” tem uma versão em inglês, duas em alemão, uma em hebraico, uma em italiano, uma em polaco, duas em espanhol, uma em neerlandês, uma em grego, e uma em sueco, gravada por vários artistas, entre os quais Cornelis Vreeswijk; e “Le parapluie” tem versões em catalão, finlandês, hebraico, italiano, espanhol e sueco.

“Le petit cheval” é a única que nunca foi adaptada para outro idioma.

A maioria das versões estrangeiras das canções deste primeiro disco de Brassens são do fim dos anos 60 e da década de 70. Talvez tenha sido só mais de uma década e uma dezena de álbuns mais tarde que Brassens começa a ser amplamente conhecido pelo mundo fora, ou na Europa, pelo menos. É bem possível que o contexto social dos anos sessenta e a difusão das sonoridades «despojadas» na canção popular tenham ajudado à divulgação da sua obra em geral, incluindo as canções mais antigas, junto de um público mais alargado. A exceção a este compasso de espera é a adaptação sueca de “Le gorille” por Lars Forssell, que data de 1959. É precisamente esta adaptação que Cornelis Vreeswijk viria a gravar em 1972

Das outras versões desta canção, destaco a de Fabrizio de Andrè, um dos maiores cantautores italianos e a de Jake Thackray. Thackray é às vezes referido como o «Noël Coward do Norte de Inglaterra», mas, muito provavelmente, ele teria preferido que lhe chamassem o «Brassens inglês». A versão ao vivo que aqui vos deixo é de finais de novembro ou início de dezembro de 1972, porque Thckray refere a execução na guillhotina de Claude Buffet e Roger Bontems, a 28 de novembro de 1972, na prisão La Santé, em Paris.


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[1] Vreeswijk tinha 16 ou 17 anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e estava a residir na Suécia há quatro anos. Não faço ideia de onde meti a revista onde li isto, mas esta influência é conhecida: Vreeswijk deu conta dela em várias entrevistas (ver aqui, por exemplo, infelizmente em sueco).

[2] Isabelle Mayereau tinha só seis ou sete anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e é natural que o tenha ouvido alguns anos mais tarde. Ouvir aqui a partir de 2:50.

[3] A informação disponível em Second Hand Songs é altamente fiável, devido ao rigor do processo de escrutínio das contribuições (e eu sei, porque contribuo para o site), mas, naturalmente, nada garante que cubra a totalidade das versões de uma canção. Aliás, é praticamente certo que não cobre...

[4] Na altura em que estou a escrever isto, das canções do  primeiro álbum de Brassens, só está listada uma versão confirmada em português,  «A má reputação», de Bïa; mas eu conheço uma segunda, de Luís Cília, que já enviei ao Second Hand Songs e que aguarda aprovação.