19/04/25

Os primórdios de Giraud e o mestre Jijé


É lugar-comum — de tão evidente que é — referir-se a influência de Jijé em Jean Giraud. Joseph Gillain, mais conhecido como Jijé, é sem dúvida um dos autores mais importantes de banda desenhada da chamada escola belga e não foi apenas Jean Giraud que o seu traço influenciou. Mas, dos seus muitos discípulos, digamos assim, Jean Giraud, também conhecido como Gir e Mœbius, foi talvez o mais importante — e partilhou com o mestre um dos géneros em que se tornou mais popular, o western: sem dúvida que Blueberry deve muito a Jerry Spring

O que vos apresento a seguir é um olhar de relance sobre o início da relação entre os dois criadores e o impacto que ela tem em Giraud. Gilles Ratier diz-nos que «[e]m 1958, pouco antes de cumprir o serviço militar[, Jean Giraud] decide conhecer pessoalmente, na companhia dos seus amigos [Jean-Claude] Mézières e [Patrick] Mallet, o desenhador que sempre os inspirou: Jijé. Este último, que vive nessa altura na região de Paris, encoraja calorosamente estes promissores novatos». Giraud diz que este encontro o marcou muito. Jijé tinha em comum com ele ter vivido no México, mas, reconhece Giraud (obviamente) em bota tivessem ambos «fontes autênticas», Jijé tinha-as integrado muito melhor do que ele: «a sua bagagem gráfica era muito maior». 

É curioso ver como Jijé relata este encontro e a sua «colaboração» com Giraud (daqui):

Jean [Giraud] veio a minha casa, acompanhado por Mézières e Mallet; deviam ter uns dezoito anos e estudavam, creio eu, nas Arts-Déco ou na Estienne. Pareceram-me muito atenciosos com Mallet, que sofria de surdez. Não me recordo de nada desta visita, a não ser da jovialidade e da descontração de Mézières. Mais tarde — não sei como, nem quando, nem porquê —, foi sobretudo Giraud que voltei a ver. O seu desenho era o único, na época, que tinha valor do ponto de vista técnico. Não me recordo em que circunstâncias começou a trabalhar para mim. Sem dúvida, como aconteceu várias vezes com outros jovens, passou algumas tardes a desenhar e a conversar no atelier... Ofereci-lhe uma colaboração no Jerry Spring. Já não me recordo do verdadeiro motivo; penso que foi com a intenção de lhe ensinar o ofício na prática. Iniciou «La Route de Coronado» com grande dificuldade e imediatamente, sempre com um objetivo prático, passámos a dividir o trabalho: Jijé desenhado a lápis, Giraud passava a tinta, sob a minha direção, e com retoques de Jijé.

Não se deixem confundir pela referência a si próprio na terceira pessoa: é Jijé quem fala. O «mais tarde» a que ele se refere é o reencontro quando Giraud volta da tropa. Agora a perspetiva de Giraud:

Quando voltei da tropa, fui ter com Gillain outra vez […]. Ele achou que já estava em condições de fazer uma banda desenhada com ele: «La Route de Coronado», no Spirou: Joseph desenhava e eu passava a tinta. […] Não era seu «assistente», era seu «aluno». Tendo eu a admiração que tinha por ele, esta proposta foi uma grande emoção da minha vida. Era quase como se ele me tivesse dito: «Queres que eu seja teu pai?» Eu não tinha pai e, coisa maravilhosa!, arranjei um. E um pai no desenho! Trabalhámos assim durante um ano. […]

A minha relação com Gillain é realmente uma relação de pai e filho. Durante o tempo em que trabalhei com ele, ele quis ser meu pai e eu quis ser seu filho. A transferência parental deu-se na esfera artística, assumi com entusiasmo o papel de filho dele no desenho. Foi uma época maravilhosa. Joseph era um pai perfeito. Só me posso congratular pelas lições que ele me deu...

Para os amadores de BD, e em especial para os admiradores de Jijé e de Jean Giraud, como eu, é interessante saber tudo isto, mas não é menos interessante ver como o traço de Giraud evolui desde os seus primeiros westerns «realistas» com a personagem Art Hawell em 1957 até ao início da série Blueberry no Spirou, em 1963, naquela altura ainda como «Fort Navajo» (que veio a ser o nome do primeiro álbum, quando a série foi publicada em álbuns).

Se olharmos para pranchas de Giraud de 1957 e 1958, é fácil ver por que razão, da visita dos jovens Giraud, Mézières e Mallet, Jijé se lembra sobretudo da vivacidade de Mezières; e pode-se imaginar em que termos encorajou o jovem Giraud... A técnica de Giraud é ainda perfeitamente amadora, com falhas básicas em termos de anatomia, proporções e perspetivas etc., mas não deixa de se notar claramente a influência de Jerry Spring.

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Duas pranchas da série Art Hawell, com desenhos de Jean Giraud. A da esquerda é de 1957 e a da direita de 1958.

Nas pranchas de Jerry Spring passadas a tinta por Giraud, já não se nota nada deste amadorismo — nem podia notar-se, já que o desenho, onde se notavam, nas pranchas acima, as insuficiências de Giraud, é aqui só de Jijé. Se houve também insuficiências na passagem a tinta, Jijé corrigiu-as. Mas foi sem dúvida uma grande escola. Aprende-se muito ao passar a tinta os desenhos de um grande desenhador, sobretudo se se tem já o talento inato que Giraud tinha.

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As páginas 12 e 14 de «La Route de Coronado», um episódio da série Jerry Spring, de Jijé. Desenho de Jijé, tinta de Jean Giraud e Jijé. 

Nas histórias ilustradas apenas por Giraud nesse mesmo ano, notam-se grandes progressos, embora o desenhador não tivesse ainda atingido a sua maturidade artística. A influência de Jijé e do seu Jerry Spring continua a ser evidente.

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Um western de Jean Giraud em 1961.
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A primeiríssima prancha da famosa série Blueberry.
Foi publicada no nº 210 da revista Pilote, a 31.10.1963.
Note-se que Giraud já assina Gir. O pseudónimo Mœbius só surgirá em 1974.   
Em 1963, é publicada a primeira aventura do tenente Mike Blueberry, com guião de Jean-Michel Charler, que viria a suplantar em fama o seu «antepassado» Jerry Spring. É clara a evolução do desenho de Gir relativamente às páginas de 1961 apresentadas acima, mas não tem ainda a qualidade que lhe conhecemos na sua obra posterior e que fará dele não só um nome maior da BD mas também um dos grandes ilustradores da segunda metade do século passado.

Em 1972, dez anos depois de o jovem Giraud ter colaborado com o seu mestre Jijé na passagem a tinta de algumas pranchas de Jerry Spring, «pai» e «filho» fazem um cadavre exquis em direto na televisão francesa. Nessa altura, Gir tinha já publicado dez volumes da sua famosa série Blueberry, era já um autor de BD famoso e o seu traço já não era em nada menos seguro e elegante que o do seu mestre.

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Nota: Todas as traduções do francês são minhas.




17/04/25

Idade e sabedoria

 I

A ideia de que uma pessoa se vai tornando mais sábia com a idade está tão espalhada que a aceitamos sem a escrutinar, como verdade a priori. Mas será mesmo assim? 

Evidentemente, a questão de fundo é definir sabedoria. Uma volta pelas definições dos dicionários, depois da limpeza de redundâncias e sinonímias mascaradas, dá-nos dois tons de sabedoria

Às vezes, diz-se sábia a pessoa com erudição, com grandes conhecimentos. É natural: afinal a palavra vem de saber, não é verdade? Sábio é quem sabe muito, pois então… 

Mas sabedoria também pode ser bom senso, sensatez, juízo, em última análise talvez maturidade. Aqui já não é saber coisas que conta, mas saber da vida, ter dela experiência. 

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Ludwig Knaus, Avô e neto a conversar, s.d. ca. 1900
Quanto ao primeiro significado de sabedoria, se se pode argumentar que mais tempo de vida dá mais tempo para se instruir, também é inegável que há quem aos 25 anos tenha mais conhecimentos que a maior parte das pessoas aos 75; e que o tempo, a partir de certa altura, já não é saber que traz, mas perda da capacidade de articular — quando não de recordar — os conhecimentos que já se teve. O diabo sabe muito por ser velho, mas talvez já tenha sabido ainda mais antes de o ser… 

Passemos ao outro significado de sabedoria. Na aceção de sensatez, a idade conta, mas talvez nem sempre como estamos habituados a pensar. É evidente que a acumulação de experiência de vida nos vai tornando mais ajuizados. Quando temos um reportório maior de resultados observados de determinadas ações e escolhas, sabemos melhor quais é resultam ou, no mínimo, quais é que não resultam. Agora, pode-se pensar-se também que talvez haja outro lado menos positivo do acumular de experiência, se esta cristalizar, a certa altura, numa conceção de normalidade que freia a acumulação de novas experiências. 

Mas enfim, isto sou a falar, com algum bom senso, talvez, mas duvidosa sabedoria. Que diz sobre a questão quem muito refletiu sobre ela e/ou a investiga? É uma coisa que me acontece cada vez mais com a idade: quando acabo de refletir sobre qualquer coisa, sinto necessidade de ver o que já foi dito sobre ela. E, claro, a minha própria reflexão revela-se normalmente sem grande interesse, quando confrontada com o que pensaram pessoas mais informadas que eu. Agora, não sei esta consciência é um produto da minha crescente sabedoria ou se o que eu penso, com a degradação de capacidades que a idade vai trazendo, é cada vez menos inspirado e interessante… Mas adiante. 


II

Antes de mais, assentemos em que wisdom em inglês corresponde bem a sabedoria em português. Pode haver nuances semânticas entre a noção de wisdom em inglês e a noção de sabedoria em português, mas creio que, no geral, as duas palavras são usadas para referir uma mesma capacidade ou característica; e que, quando se fala de uma pessoa sábia se está querer dizer o mesmo que quando se diz a wise person. E esclareço isto, porque não encontrei estudos sobre sabedoria em português, só sobre wisdom em inglês. 

É claro, uma vertente fundamental da investigação sobre sabedoria é a investigação sobre a própria definição do conceito. Embora sempre em relativa consonância com as definições do senso comum e dos dicionários, os estudiosos não têm todos exatamente a mesma conceção de sabedoria*. Há quem defina a sabedoria a partir de três facetas essenciais: um profundo e abrangente conhecimento de si próprio, dos outros e do mundo [a faceta cognitiva da sabedoria], regulação de emoções complexas, no sentido de tolerância da ambiguidade [a faceta emotiva da sabedoria]; e uma orientação que transcenda o interesse próprio e se centre no bem-estar dos outros e do mundo [a faceta motivacional]. Há quem defina a sabedoria a partir de cinco critérios de base: grande conhecimento de factos, grande conhecimento processual (estratégias para dar conselhos ou resolver conflitos), contextualização dos problemas, relativismo de valores (aceitar as divergências entre indivíduos); e reconhecimento e gestão da incerteza. E há também quem defina mais sucintamente a sabedoria como aplicação de conhecimentos tácitos a problemas em que há conflitos entre indivíduos ou aspetos da vida.

É importante notar, sobretudo, que as capacidades atrás referidas não são, isoladamente, suficientes para constituir sabedoria. Para que a sabedoria se desenvolva numa pessoa, é necessária a convergência de certos traços de personalidade, como inteligência, criatividade, sociabilidade, equilíbrio emocional, orientação ética; alguma, mas não demasiada, autoestima e voluntarismo; e experiência de vida, sobretudo de situações difíceis. 

Além disso, costuma dividir-se a sabedoria em sabedoria individual e sabedoria geral, conforme se trate de sabedoria sobre si próprio ou sabedoria sobre os outros. Estes dois tipos de sabedoria podem estar mais ou menos presentes numa pessoa, ou pode até estar presente só um deles. Muitos de nós conhecemos provavelmente pessoas que são boa conselheira de outros, mas procuram aconselhamento para os seus próprios problemas, que não conseguem analisar nem resolver. 

Outra questão que se coloca é a da natureza da sabedoria: pensamos na sabedoria como característica ou competências, ou leque de capacidades ou competências, mas de um tipo mais essencial ou mais ocasional? Alguns estudiosos discutem se se trata de uma característica pessoal (uma pessoa é sábia ou não é) ou antes de um estado (uma pessoa tem sabedoria em certos momentos ou situações, mas não forçosamente em todas). E há quem defenda, com base em evidência, que se trata mais de um estado que de um traço estável de um indivíduo**. 


III

E então, a sabedoria vai ou não aumentando com a idade? Evidentemente, não é fácil medir sabedoria e, como as definições de sabedoria nem sempre coincidem em pormenor, não são sempre exatamente as mesmas capacidades, competências, etc. — ou seja, a mesma sabedoria — que cada investigador quer medir, o que dificulta uma análise conjunta dos diversos estudos. Ainda assim, parece haver algumas conclusões a tirar da análise das medições que se fazem, às vezes como questionários de autoavaliação, outras vezes como análise de desempenho — e também no que toca à relação entre sabedoria e idade.

Sabe-se que, em geral, é mais difícil uma pessoa, sábia ou não, ter um bom conhecimento de si própria que das outras e que as crianças desenvolvem um conhecimento do mundo antes do autoconhecimento. Poderíamos, portanto, pensar que a sabedoria geral surge antes da sabedoria individual. Sabe-se também que, por outro lado, a memória funciona melhor para informação relacionada connosco próprios — mas que há casos, porém, em que apagamos ou modificamos inconscientemente recordações negativas. 

No geral, a idade não parece ser fator determinante nem de sabedoria geral, nem de sabedoria. «Adultos mais velhos apresentam desempenho tão bom quanto adultos mais jovens. (…) Mas, como esperado, envelhecer não é suficiente para se tornar mais sábio. Em vez disso, descobrimos que adultos mais velhos tiveram melhor desempenho em dilemas típicos da sua idade, e adultos jovens tiveram melhor desempenho em dilemas típicos da juventude.»*

Demos a palavra a Julie Erickson, que resume a questão muito melhor do que eu seria capaz de fazer***: 

«Há componentes que aumentam, permanecem estáveis e diminuem, bem como fatores contextuais relevantes que influenciam a trajetória da sabedoria ao longo da vida. 

Aspetos da sabedoria que se sabe que melhoram, com base em pesquisas longitudinais e transversais, são a experiência de vida, a capacidade de autorreflexão sobre essas experiências, a regulação emocional, a empatia e a perspetivação. Isso sugere que, à medida que envelhecemos, geralmente vamos aprendendo a guardar espaço para diversas emoções e vamos aprendendo com a experiência, ao mesmo tempo que nos vamos tornando mais amáveis e mais conscientes das experiências dos outros. 

Também há aspetos da sabedoria que podem não ser tão fortes numa idade mais avançada: quando é necessária rapidez no processamento de informações — por exemplo, na resolução de problemas novos e complexos — os idosos têm um desempenho inferior. Muitos idosos, porém, podem aprender a compensar esse declínio usando outros pontos fortes, como basear-se em experiências anteriores com problemas semelhantes.» 


IV

Não que a minha impressão inicial se afastasse muito destas conclusões, mas sinto que o texto ganhou em não ter ficado só pelos sete parágrafos iniciais. E eu mais que o texto. Quando se investiga alguma coisa, encontra-se sempre mais do que se procura e, também por isso, é sempre bom investigar tudo — ora aí está uma migalha de sabedoria que a minha experiência me ensinou. 

Já agora, para terminar, uma constatação interessante descrita num artigo de Ursula Staudinger e Judith Glück*: as pessoas consideradas sábias dão conta de menos emoções, tanto negativas como positivas, que as outras pessoas, mas revelam-se emocionalmente mais empenhadas nos outros que as pessoas não consideradas sábias. Sábio é, concluo eu então, quem vive com moderação, também emocional, e não num romântico carrossel de afetos; e quem centra a sua vida nos outros e não em si próprio — virtudes em que muito já se tem insistido, não é verdade?, e desde há muito tempo... e que se aplicam a qualquer idade. 


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* A maioria das informações que me permitiram compor o texto que se segue e a citação assinalada com * vêm de um artigo que Ursula Staudinger e Judith Glück publicaram no nº 62 da Annual Review of Psychology, em 2011: Psychological wisdom research: Commonalities and differences in a growing field. Foi o que de mais panorâmico consegui encontrar quando me propus tentar ter uma ideia do que diziam os psicólogos sobre a questão. 

** Ver este artigo no número de 31.8.2016 da revista The Psychologist, da Sociedade Britânica de Psicologia, sobre um trabalho de Igor Grossman e outros. Também se pode aceder à versão pré-publicação de um artigo de Grossman, Kung, & Santos de 2019 sobre o mesmo tema

*** Julie Erickson, «Do We Get Wiser as We Age? Aspects of wisdom both increase and decrease as we age», publicado em Psychology Today a 16 de junho de 2024.


12/04/25

O cavalinho branco e outras cantigas: da influência de Brassens

 

Há uns anos, encontrei, já não me lembro onde, umas páginas de um jornal sueco dos anos setenta, que tinham uma entrevista com Cornelis Vreeswijk — um importante cantautor sueco-neerlandês, muito conhecido em toda a Escandinávia —, em que ele contava como ficara fascinado com o primeiro álbum de Georges Brassens: dizia que, quando ouviu «Le petit cheval blanc», foi um mundo novo que se abriu para ele. E considerava Brassens um dos cantautores que mais o influenciara[1].

No outro dia, vi uma entrevista com Isabelle Mayereau — uma cantautora francesa, menos conhecida do que merecia, acho eu —, em que ela descreve o mesmo fascínio quando, menina ainda, ouviu pela primeira vez esse álbum, que o seu pai acabava de comprar. Foi esse disco, diz ela, que, lhe deu vontade de começar a aprender a guitarra[2].

Não há nada mais diferente de Cornelis Vreeswijk que Isabelle Mayereau. E, no entanto, Brassens foi influente para ambos — para terem feito o que fizeram. Não que os tenha influenciado musicalmente, que influência musical é outra coisa. Mas coincidirem Vreeswijk e Mayereau no fascínio por Brassens é mais que pura coincidência, se me permitem o trocadilho.

O primeiro álbum de Brassens, estou eu em crer, é uma obra altamente influente em toda a canção de autor europeia. Pelo menos, na canção de autor europeia. Evidentemente, não será o único álbum influente de Brassens, já que Brassens foi sempre influente. Mas era uma novidade, pelos textos e pelo espírito em geral, e também pela sonoridade: não se tinham com certeza gravado muitos álbuns europeus de canção de texto em que o autor se acompanhasse a si próprio com guitarra acústica, neste caso apenas secundado pelo contrabaixo de Pierre Nicolas.

Brassens foi, sem dúvida, um dos pioneiros desta sonoridade, mas, como acontece com todos os pioneiros, tinha havido outros pioneiros antes dele. Brassens diz, numa entrevista de 1961, que tinha sido Félix Leclerc — um grande cantautor quebequense — que o tinha ajudado, com «a sua singeleza, o seu despojamento, a sua maneira de cantar sem artifícios, uma maneira de cantar contrária a tudo o que se tinha feito até então». «Foi decerto isso», continua Brassens, «que me permitiu chegar ao palco e ser aceite, porque já se tinha aceitado Félix Leclerc.»

Leclerc também se apresentava, ao vivo e em disco, muitos vezes sozinho com a sua guitarra. Era sete anos mais velho que Brassens, mas a sua carreira discográfica só precedeu em dois anos a do cantautor francês. Entre 1950 e 1952, porém, Félix Leclerc dera muitos espetáculos em França e tivera aí um grande sucesso, sendo o seu estilo considerado muito inovador na canção de língua francesa. É neste contexto que se devem entender as declarações de Brassens.

Ainda bem que há um site como o Second Hand Songs que nos dá uma visão global, se bem que forçosamente incompleta, de uma das formas tangíveis da influência de um cantor ou de um compositor de canções: as versões que são feitas das suas canções. Das seis canções do primeiro álbum de Brassens atrás referido, todas foram objeto de muitas versões: há pelo menos[3] 13 versões gravadas de “La chasse aux papillons”, 25 versões gravadas de “La mauvaise réputation”, cinco versões gravadas de “Le fossoyeur”, 28 versões gravadas de “Le gorille”, 20 versões gravadas de “Le parapluie” e seis versões gravadas de “Le Petit Cheval”, uma das poucas canções de Brassens em que ele musica um poema alheio, neste caso «Complainte du petit cheval blanc», de Paul Fort.

Não surpreende que a maior parte das versões sejam em francês, mas há ainda assim um número razoável de versões noutras línguas: “La chasse aux papillons” tem versões em hebraico, espanhol e neerlandês; “La mauvaise réputation” tem versões em inglês, hebraico, italiano, duas em português[4], e três em espanhol, uma das quais (a de Paco Ibañez) cantada pelo próprio Brassens; “Le fossoyeur” tem uma versão em hebraico e outra em espanhol; “Le gorille” tem uma versão em inglês, duas em alemão, uma em hebraico, uma em italiano, uma em polaco, duas em espanhol, uma em neerlandês, uma em grego, e uma em sueco, gravada por vários artistas, entre os quais Cornelis Vreeswijk; e “Le parapluie” tem versões em catalão, finlandês, hebraico, italiano, espanhol e sueco.

“Le petit cheval” é a única que nunca foi adaptada para outro idioma.

A maioria das versões estrangeiras das canções deste primeiro disco de Brassens são do fim dos anos 60 e da década de 70. Talvez tenha sido só mais de uma década e uma dezena de álbuns mais tarde que Brassens começa a ser amplamente conhecido pelo mundo fora, ou na Europa, pelo menos. É bem possível que o contexto social dos anos sessenta e a difusão das sonoridades «despojadas» na canção popular tenham ajudado à divulgação da sua obra em geral, incluindo as canções mais antigas, junto de um público mais alargado. A exceção a este compasso de espera é a adaptação sueca de “Le gorille” por Lars Forssell, que data de 1959. É precisamente esta adaptação que Cornelis Vreeswijk viria a gravar em 1972

Das outras versões desta canção, destaco a de Fabrizio de Andrè, um dos maiores cantautores italianos e a de Jake Thackray. Thackray é às vezes referido como o «Noël Coward do Norte de Inglaterra», mas, muito provavelmente, ele teria preferido que lhe chamassem o «Brassens inglês». A versão ao vivo que aqui vos deixo é de finais de novembro ou início de dezembro de 1972, porque Thckray refere a execução na guillhotina de Claude Buffet e Roger Bontems, a 28 de novembro de 1972, na prisão La Santé, em Paris.


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[1] Vreeswijk tinha 16 ou 17 anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e estava a residir na Suécia há quatro anos. Não faço ideia de onde meti a revista onde li isto, mas esta influência é conhecida: Vreeswijk deu conta dela em várias entrevistas (ver aqui, por exemplo, infelizmente em sueco).

[2] Isabelle Mayereau tinha só seis ou sete anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e é natural que o tenha ouvido alguns anos mais tarde. Ouvir aqui a partir de 2:50.

[3] A informação disponível em Second Hand Songs é altamente fiável, devido ao rigor do processo de escrutínio das contribuições (e eu sei, porque contribuo para o site), mas, naturalmente, nada garante que cubra a totalidade das versões de uma canção. Aliás, é praticamente certo que não cobre...

[4] Na altura em que estou a escrever isto, das canções do  primeiro álbum de Brassens, só está listada uma versão confirmada em português,  «A má reputação», de Bïa; mas eu conheço uma segunda, de Luís Cília, que já enviei ao Second Hand Songs e que aguarda aprovação.


29/03/25

Da memória: o almoço de G. e outras histórias [Crónicas de Svendborg #50]

 

Visita da manhã a G. G. sofre de demência, mas ainda tem consciência da sua doença. Já está vestida e arranjada quando chego. Dou-lhe os medicamentos da manhã, sirvo-lhe o pequeno-almoço e digo-lhe que vou fazer também uma sandes para o almoço*. Ela diz que não vale a pena, que faz ela o almoço quando for hora de almoçar.
− Mas sabe que se esquece das coisas – digo eu. − E depois esquece-se de fazer almoço.
− Eu sei, eu sei... – responde G. – Mas também o almoço estar já feito não faz diferença nenhuma: mesmo que fique aqui à minha frente, eu depois esqueço-me de o comer… 

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Ruínas de adobe, Camargo, Bolívia.
Agora, mesmo não sofrendo de nenhuma doença que afete as capacidades cognitivas, porém – e num grau completamente diferente! –, é certo e sabido que basta avançar na idade para que a memória deixe de funcionar como estávamos habituados a que funcionasse… Onde pus as chaves?, o que é que queria fazer?, como se chama o vocalista dos Calexico? E então a gente começa a lidar com a nova condição de uma forma racional: tomar nota das coisas. Para depois, repetidas vezes, se esquecer em casa da lista de compras, por exemplo… 

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* A história passa-se na Dinamarca e fazer uma sandes é a tradução possível de smørre en mad, literalmente «barrar uma comida», que significa pôr alguma coisa em cima de uma fatia de pão de centeio. Sandes abertas de pão de centeio continuam a ser o almoço dinamarquês mais comum , embora as novas gerações muitas vezes já prefiram saladas ou um prato quente.

26/03/25

Música maquinal e mecânica superior da música

 

Música maquinal...

No conto «Os Autómatos», de E. T. A. Hoffmann [1], uma das personagens, Lewis, lança-se numa diatribe contra a «música mecânica» que me parece muito interessante:

Pegou nas chaves com grande ruído e abriu a porta de um salão mobilado com bom gosto e elegância, onde estavam os autómatos. Havia um piano no meio da sala, numa plataforma elevada; ao lado, à direita, uma figura de um homem em tamanho real, com uma flauta na mão; à esquerda, uma figura feminina, sentada a um instrumento parecido com um piano; atrás dela estavam dois rapazes, um com um tambor e outro com um triângulo. Os nossos dois amigos repararam que, ao fundo, se encontrava um orquestrião (um instrumento que já conheciam) e que, espalhados por todas as paredes, havia vários relógios musicais. O Professor passou despreocupadamente perto da orquestra e dos relógios, e tocou ao de leve nos autómatos, quase impercetivelmente; depois sentou-se ao piano e começou a tocar, pianíssimo, um andante em estilo de marcha. Tocou sozinho uma vez; e quando começou a segunda volta, o flautista levou o instrumento aos lábios e começou a tocar a melodia; um dos rapazes começou a tamborilar suavemente no tambor num tempo muito preciso, e o outro tocou muito ao de leve o triângulo, de modo a que se pudesse ouvir e nada mais. Nesse momento, entrou a senhora com acordes completos que soavam como os de um harmónio [2], que produzia pressionando as teclas do seu instrumento; e toda a sala foi ficando cada vez mais animada; os relógios musicais entraram um a um, com a máxima precisão rítmica; o menino tocou mais alto o tambor; o triângulo ecoou pela sala e, por fim, o orquestrião começou a trabalhar, tocando tambores e trombetas fortissimo, fazendo estremecer todo o local. Isto continuou até que o Professor concluiu com um acorde final, tendo as máquinas todas terminado também, com a máxima precisão. Os nossos amigos não se negaram aos aplausos que o sorriso complacente do Professor (com o seu fundo de sarcasmo) parecia exigir deles. O Professor dirigiu-se então às figuras para começar a exibir alguns outros feitos musicais semelhantes; mas Lewis e Ferdinand, como se tivessem combinado previamente entre eles, desculparam-se dizendo que tinham assuntos urgentes a tratar que os impediam de ali ficar mais tempo, e despediram-se do inventor e das suas máquinas. […]

− Vimos algumas invenções mecânicas muito engenhosas [− disse Ferdinand −], curiosas e interessantes do ponto de vista musical. Claramente, o flautista é o mesmo da conhecida máquina de Vaucanson [3]; e é, suponho, um mecanismo semelhante aplicado aos dedos da figura feminina que lhe permite extrair aqueles belos tons do seu instrumento. A forma como todas as máquinas trabalham em conjunto é realmente surpreendente.

No séc. XVIII, foram criados muitos autómatos que são verdadeiros prodígios mecânicos.
− É exatamente isso que me deixa furioso − disse Lewis. − Toda aquela música maquinal (na qual incluo a própria execução do Professor) faz-me doer os ossos todos do corpo. Tenho a certeza de que não sei quando ultrapassarei isto! Que um ser humano faça seja lá o que for em conjunto com estas figuras sem vida que falsificam a aparência e os movimentos da humanidade sempre foi, para mim, algo assustador, antinatural, posso dizer terrível. Suponho que seria possível, através de certos mecanismos interiores, construir autómatos que dançassem e, depois, fazê-los dançar com os seres humanos, girando e rodopiando em todo o tipo de passos de dança; de modo que teríamos um homem vivo abraçado a uma parceira sem vida e girando e girando com uma mulher de madeira, ou melhor, com uma coisa de madeira. Era capaz de observar sem horror uma cena assim, nem que só por um instante? Seja como for, toda a música mecânica me parece monstruosa e abominável; e um bom tear de meias vale mais, na minha opinião, que todos os relógios musicais mais perfeitos e engenhosos do universo juntos. Será apenas a respiração do executante de um instrumento de sopro ou os dedos hábeis e flexíveis do executante de um instrumento de cordas que evocam aqueles tons que tanto nos enfeitiçam e despertam aquele sentimento inexprimível, que não se assemelha a nada mais na Terra —a sensação de um mundo espiritual distante e da nossa própria vida superior nesse mundo? Não serão antes a mente, a alma e o coração que simplesmente utilizam estes órgãos corporais para transferir para a vida exterior o que sentimos no mais profundo de nós, para que possa ser comunicado aos outros e desperte neles acordes semelhantes, revelando, em ecos harmoniosos, aquele reino maravilhoso de onde irradiam esses tons, como raios de luz? Pôr-se a fazer música através de válvulas, molas, alavancas, cilindros ou quaisquer outros aparelhos que se decida utilizar é uma tentativa absurda de fazer com que os meios para atingir um fim realizem aquilo que só pode resultar se esses meios forem animados e, nos seus mais ínfimos movimentos, controlados pela mente, pela alma e pelo coração. A crítica mais grave que se pode fazer a um músico é dizer que toca sem expressão; porque, se o fizer, está a arruinar toda a essência da música. Ainda assim, o mais frio e insensível executante estará sempre muito à frente das máquinas mais perfeitas, pois que é impossível um impulso interior do homem não anime, nem que por um momento apenas, a sua interpretação; ao passo que, no caso de uma máquina, não há impulso que o possa fazer. Considero que as tentativas dos mecânicos de imitar, com maior ou menor precisão, os órgãos humanos na produção de sons musicais, ou de substituir esses órgãos por aparelhos mecânicos, equivalem a uma declaração de guerra contra o elemento espiritual da música. Mas quanto maiores forem as forças que que eles usem contra esse elemento espiritual, mais vitorioso ele é. Por essa razão, quanto mais perfeita for esta tipo de maquinaria, mais a desaprovo; e prefiro infinitamente o realejo mais comum, em que o mecanismo não tenta ser senão mecânico, ao flautista de Vaucanson, ou à rapariga do harmónio.
E. T. A. Hoffmann, que, além de escritor, foi também músico — e talvez quisesse ter sido sobretudo compositor — escreveu muito sobre música e era um importante crítico musical do seu tempo. Nunca li a sua crítica musical, mas, a julgar pela sua verve romântica na passagem atrás, imagino que ela devesse ser muito sedutora. Evidentemente, não posso ter a certeza de que é E. T. A. Hoffmann que fala pela boca de Lewis, mas isso também não importa. Independentemente de as ideias da personagem Lewis corresponderem ou não às de E. T. A. Hoffmann, achei muito interessante a atualidade desta crítica à «música mecânica»: não é exatamente o que se ouve hoje, e muitas vezes também de pessoas com conhecimentos musicais, da música feita com meios eletrónicos?

No fundo, as românticas conceções da música como forma privilegiada de expressão de estados de alma doutra forma inexprimíveis e do artista como empenhado veículo desse processo, através da sua «sensibilidade», parecem não se ter alterado muito. Que a música possa ou deva ter antes como cerne o que está fora do indivíduo e furtar-se, na criação e na execução, ao domínio do emotivo é ideia que não parece ter ainda grande fortuna.

... e mecânica superior da música

Quando tive a ideia de escrever este texto — que, de facto, é mais uma divulgação do texto de Hoffmann que propriamente um texto meu — era para terminar aqui. Mas quem manda nos textos é a própria redação do texto; e então, chegado aqui, decido dar a conhecer um pouco mais do conto. Ao contrário do que talvez se pudesse pensar à leitura da passagem acima, Lewis não é contra toda a inovação «mecânica» no domínio musical. Eis como continua a conversa entre Ferdinand e ele:

− Concordo inteiramente consigo − disse Ferdinand – e, de facto, apenas pôs em palavras o que eu sempre pensei; e fiquei hoje muito impressionado em casa do Professor. Embora eu não viva e me movimente e esteja tão imerso na música tão completamente como você, e não tenha, por isso, a mesma atenta sensibilidade para as suas imperfeições, também senti sempre repugnância pela rigidez e falta de alma da música mecânica; e, lembro-me que, em criança, em minha casa, detestava um grande relógio musical comum, que tocava todas as horas a mesma breve melodia. É uma pena que estes talentosos mecânicos não tentem aplicar os seus conhecimentos ao aperfeiçoamento de instrumentos musicais, em vez de puerilidades desta natureza.

− Exato − disse Lewis. − Ora, no caso dos instrumentos de teclas, há muito que pode ser feito. Há, para os mecânicos inteligentes, um amplo campo a explorar nesse sentido, em que, aliás, já se fez muito, particularmente nos instrumentos do tipo do piano. Mas caberia a um sistema de facto avançado da «mecânica da música» observar de perto, estudar minuciosamente e descobrir cuidadosamente aquele tipo de sons que pertencem, pura e estritamente, à própria Natureza, para saber que tons inerentes a todas as substâncias e, em seguida, colocar essa misteriosa música em algum tipo de instrumento, onde ela se sujeitasse à vontade do homem e fosse produzida quando ele o tocasse. Todas as tentativas de obter música a partir de cilindros de metal ou de vidro, de filamentos ou lamelas de vidro ou de pedaços de mármore, ou de fazer cordas vibrarem ou soarem de maneira diferente do habitual são para mim do maior interesse. O obstáculo ao progresso efetivo na descoberta dos maravilhosos segredos acústicos que se escondem à nossa volta na natureza é que cada experiência incompleta é imediatamente elogiada como sendo uma nova e perfeita invenção. É por isso que surgiram tantos instrumentos novos, a maioria deles com nomes grandiosos ou ridículos, que logo desapareceram e foram esquecidos.

− A sua «mecânica superior da música» parece ser um assunto muito interessante − disse Ferdinand −, embora, pela minha parte, ainda não perceba bem qual o seu objetivo.

− O objetivo − disse Lewis − é a descoberta do tipo mais absolutamente perfeito de som musical; e, segundo a minha teoria, um som musical está tanto mais próximo da perfeição quanto mais se aproxima dos tons misteriosos da natureza que não estão completamente dissociados desta terra.

− Presumo − disse Ferdinand − que seja por não ter aprofundado tanto esse assunto como você, mas deixe-me dizer-lhe que não o compreendo bem.

− Então − disse Lewis −, deixe-me dar-lhe uma ideia de como vejo esta questão. «Na condição primitiva da raça humana» (para citar quase literalmente um escritor talentoso — Schubert — no seu Perspetivas sobre o lado noturno das ciências naturais)[4], a humanidade vivia ainda em numa pura e sagrada harmonia com a natureza e possuía ainda um rico instinto celestial de profecia e poesia. A Mãe Natureza continuava a alimentar com a fonte da sua própria vida o maravilhoso ser que tinha dado à luz, e rodeava-o de uma música sagrada, como o aflato de uma inspiração contínua. Esta música era feita de tons maravilhosos que contavam os mistérios da incessante atividade da Natureza. Chegou até nós um eco da misteriosa profundidade desses dias primevos — a bela noção da música das esferas, que me encheu da mais profunda e devota reverência, quando pela primeira vez ouvi falar dela em O Sonho de Cipião. Muitas vezes me punha à escuta, em noites calmas de luar, para ver se esse sons maravilhosos chegavam até mim, nas asas de brisas sussurrantes. No entanto, como já lhe disse, estes sons da Natureza ainda não abandonaram todos este mundo, pois temos um exemplo da sua sobrevivência e ocorrência naquela «música aérea ou voz do demónio» referida por um escritor no Ceilão — um som que afeta tão poderosamente o organismo humano que, mesmo as pessoas menos impressionáveis, quando ouvem estes tons da natureza imitando, de forma tão aterradora, a expressão do pesar e do sofrimento humanos, são tomadas de dolorosa compaixão e profundo terror! Na realidade, eu próprio já presenciei um fenómeno semelhante algures na Prússia Oriental. Estava lá a viver há algum tempo. O Outono estava a chegar ao fim, e eu, em noites calmas em que soprava apenas uma brisa suave, ouvia claramente alguns sons, às vezes parecidos com o som grave e sustido de um harmónio e às vezes semelhantes às vibrações de um sino grave e suave. Distinguia frequentemente, com bastante clareza, o Fá grave e a quinta acima dele (o Dó), e muitas vezes era também percetível a terceira menor acima, Mi bemol; e então aquele tremendo acorde de sétima, tão triste e tão solene, produzia em mim um efeito da intensíssima tristeza, e até de terror!

Há, no impercetível ataque, no crescimento e no gradual desvanecimento destes sons naturais algo que tem sobre nós um efeito muito poderoso e indescritível; e qualquer instrumento que seja capaz de produzir o mesmo som, afetar-nos-ia sem dúvida, de forma semelhante. Assim sendo, penso que a harmónica de vidro se aproxima mais, no que diz respeito à sonoridade, dessa perfeição que se deve medir pela influência nas nossas mentes. E ainda bem que este instrumento (que por acaso imita estes tons naturais com tanta exatidão) seja precisamente aquele que não se presta à frivolidade nem à ostentação, exibindo antes as suas características qualidades com a mais pura simplicidade. O recém-inventado harmonicórdio trará, sem dúvida, muito progresso neste sentido. Neste instrumento, como decerto sabe, faz-se vibrar as cordas (e não sinos, como o harmónio) por meio de um mecanismo que é acionado pela pressão sobre as teclas e pela rotação de um cilindro. O músico pode controlar o ataque, a sustentação e a diminuição do som muito mais do que no caso da harmónica, embora o harmonicórdio não tenha a sonoridade da harmónica de vidro, que soa como vinda de outro mundo.

Lewis (Hoffmann?) partilha, pois, uma ideia muito divulgada de decadência da humanidade moderna ou civilizada: os humanos primitivos tinham capacidades percetivas que lhes permitiam uma compreensão muito maior da essência do mundo natural, algo de que os humanos atuais não podem senão ter vislumbres fortuitos — a perda do Paraíso, da Idade de Ouro, da inocência original, enfim. Mas parece-me curioso que se veja a música, uma misteriosa «música natural», que surge de vez em quando a algumas almas com a capacidade de a ouvirem, como a forma de comunicação espiritual entre a natureza e os seres humanos. E parece-me ainda mais curioso que, no que diz respeito à música, se veja como função essencial do progresso técnico o desenvolvimento de instrumentos que possam reproduzir — e controlar — esses sons mágicos de natureza, que não são, note-se, os sons reais da natureza a que todos os humanos têm acesso (vento, chuva, mar, tempestades, etc. …) e que podem também causar pesar ou pavor. No início do séc. XIX, porém, sugere Lewis, não é de conseguir voltar a ouvir a voz da mãe Natureza que se trata  — é de ser capaz de a recriar.

Carl Maria von Weber compôs em 1811 o Adagio e Rondo para Harmonicórdio, de que podemos ver aqui um excerto, tocado por Thomas Bloch,... numa harmónica de vidro. Não existe atualmente nenhum exemplar do harmonicórdio.

Quando a harmónica de vidro e o harmonicórdio são apresentados como exemplos de avanços positivos na «mecânica superior da música», podemos imaginar que outros instrumentos teriam agradado a Lewis — e provavelmente a Hoffmann. Gostariam seguramente de ter ouvido os instrumentos musicais elétricos e eletrónicos que começaram a surgir cerca de meio século depois da redação deste conto: o telégrafo musical, de Elisha Gray, em 1876; o gigantesco telarmónio, de Thaddeus Cahill, em 1897 (o primeiro órgão elétrico e considerado o primeiro instrumento eletromecânico); o teremim de Leon Termen em 1920, o esferofone, de Jörg Mager, em 1924; as ondas Martenot, de Maurice Martenot, em 1928 e uma série de outros instrumentos experimentais até à criação dos primeiros sintetizadores «modernos» nos anos cinquenta do séc. XX. Estes instrumentos eletrónicos da primeira metade do século passado são todos tão fascinantes como os autómatos da época de Hoffmann; e, como eles, peças de museu — quando resta deles mais que apenas a descrição… Dos muitos instrumentos não acústicos inventados antes de 1940, só o teremim e as ondas Martenot entraram no reportório da música erudita e música popular e continuam hoje a ser utilizados.

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Notas:

[1] Die Automate no original alemão. Publicado pela primeira vez em 1814 no magazine literário Zeitung für die elegante Welt. Traduzo eu da tradução inglesa de Alexander Ewing, em The Best Tales of Hoffmann, Dover: Nova Iorque, 1967, com base numa tradução automática — como agora quase sempre se faz... O texto completo em inglês está disponível aqui, para quem queira ler o conto todo, e outros contos do autor.

[2] No original alemão, é usado o adjetivo harmonikaähnlichen, mas não se pode referir nem a uma harmónica de boca nem ao acordeão, que o alemão e outras línguas designam comummente por «Harmonika», já que ambos os instrumentos surgem cerca de dez anos depois da redação do conto. Deve, portanto referir-se a outro tipo de instrumentos de palhetas que existiam antes e que hoje são genericamente designados por harmónios.

[3] O flautista de Vaucanson desapareceu, tal como despareceram outros flautistas feitos depois dele que o imitavam. Existem, porém, outros autómatos flautistas que podem dar uma ideia do que faria o desparecido autómato de Vaucanson. Ver aqui, por exemplo.

[4] Gotthilf Heinrich von Schubert, Ansichten von der Nachtseite der Naturwissenschaft. Arnold: Dresden, 1808


07/02/25

Uma canção do pós-guerra: «A última turista na Europa»


Já divulguei no blogue alguns clássicos da canção popular dinamarquesa, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Em Portugal (e no mundo lusófono em geral) conhece-se muito pouco da música dinamarquesa e eu acho que há obras dinamarquesas que merecem ser conhecidas por toda a gente.

Apresento-vos então mais uma bonita canção dinamarquesa, escrita em 1948 por Henrik Blichmann (música) e Mogens Dam (letra) e gravada nesse mesmo ano por Lulu Ziegler. Ziegler interpreta a canção num estilo meio cantado meia declamado, comum na época e não só na Dinamarca. A grande maioria dos leitores deste blogue não sabem dinamarquês, mas, para quem o fale, é também de notar a sofisticada dicção, com uma pronúncia que não existe a não ser no teatro clássico e em canções. A melodia é simples e bonita, e fica no ouvido. A canção foi um grande êxito na época. É considerada um clássico da canção popular dinamarquesa e é ainda bastante conhecida, até porque têm sido feitas dela várias versões, algumas até bem recentes.

Quanto ao conteúdo lírico, eu chamar-lhe-ia europeísmo romântico: o sujeito lírico da canção é uma improvável turista que faz uma contemplação desolada da Europa destruída pela guerra e uma viagem mental por umas quantas personagens e lugares míticos europeus — pela sua Europa.

É interessante: três anos apenas depois do fim da ocupação da Dinamarca pelas tropas de Hitler, esta turista quer passar uma parte da sua nostálgica viagem na Alemanha, em vez de a varrer da sua Europa. A canção refere cinco cidades alemãs, três das quais muito destruídas pela guerra, Dresden, Lübeck e Berlin. Não me parece que a inclusão da Alemanha na sua Europa ideal e o reconhecimento da sua desgraça possa ser visto como um perdão. É apenas a constatação simples de que a Alemanha era e continuaria a ser, uma parte fundamental da Europa, e que, como os outros países, tinha sido também vítima de uma guerra e não apenas o seu agente. Mas não seria isto a contracorrente na altura, com as feridas da invasão alemã ainda por sarar? Não sei*

Por fim, é curioso notar que esta Europa mítica não inclui o resto da Escandinávia, nem a Ibéria nem a maior parte do Leste Europeu. Isto pode ter  a ver apenas com a experiência do autor, claro está, mas também pode dar conta da perspetiva dinamarquesa da altura: aos olhos de um dinamarquês, talvez faltassem à Europa periférica figuras e lugares míticos com lugar nos livros de história das artes …

A tradução do texto por baixo do vídeo é minha e devo avisar, sem falsas modéstias, que não está grande coisa. Aliás, nem sei se é possível fazer uma tradução razoável duma canção destas. Dou-a em prosa, para tornar evidente a despoetização por que passou. Enfim, dá uma ideia do que a cantiga diz, mas não de como o diz… Quero só notar que hesitei um bocado entre «A última turista na Europa» e «A última turista da Europa». Às vezes, o «em» locativo germânico soa pouco natural nas línguas latinas, em que, nas mesmas situações, se usa antes um «de» determinativo: não se diz «a aldeia mais alta no país», mas sim «a aldeia mais alta do país». Neste caso, porém, achei mais relevante acentuar que o «turismo» da voz lírica é «na Europa» que «da Europa», embora a turista seja obviamente «da Europa»...

A última turista na Europa

Vim ter com a minha Europa e o velho mundo que um dia foi meu. Vim ver se é verdade que não passa agora de uma ruína fumegante. Estive fora muito tempo — demasiado tempo. Lá de longe, só se ouviam explosões e gritos. Não quero acreditar que não restem senão destroços — um cenário árido para a próxima guerra.

Sou a última turista na Europa. Não me pesam nem o ouro nem a tristeza, mas preciso de ver, preciso de saber se a Europa conseguirá sobreviver à guerra.

Despareceram os que viajavam por prazer ou desenfado, foram à procura de outros lugares. Sou a última turista na Europa, vim ter com ela outra vez.

E procuro na Europa ensanguentada aquilo com que sonhei no meu exílio: as eternas e brilhantes flores da arte e o velho sorriso sábio de mestres silenciosos. Numa igreja de cúpula dourada em Varsóvia, quero acender uma luz sob um ícone e, uma noite, quero passear por Veneza para me encontrar com Ticiano na ponte de Rialto.

Sou a última turista na Europa e vagueio, em desassossego, por aqui e ali. Quero ir a Viena para me encontrar com Mozart, quero ajoelhar-me diante de Rafael em Roma. Quero ir a Londres e a Stratford-upon-Avon, quero ver Antuérpia, Bruges e Bruxelas e, última turista da Europa, quero ver Paris ao pôr-do-sol da Torre Eiffel.

Revi a casa de Goethe em Weimar, bebi os aromas de mil rosas em Eutin e encontrei um exemplar meio carbonizado de ‘Buch der Lieder’ soterrado num teatro em Berlim. Sonhei com as pequenas ruas rococó de Dresden e com o colorido gótico da velha Lübeck, e algures perto de Leipzig quero ouvir a música de Beethoven numa escola de aldeia.

Vou percorrer toda a Europa, onde o amor foi derrotado, até ao túmulo do Père Lachaise onde jazem Abelardo e Heloísa. E entre as colunas dóricas do Pártenon, Palas Atena, de lança na mão, dá-me a coragem de enfrentar a minha sorte com um espírito reto e socrático. Quero saudar todas as catedrais de França, sorrir com doçura a uma pastora de Chardin, encontrar-me com Rembrandt entre os canais de Amesterdão e enterrar-me em livros em Lovaina.

Quero ouvir a cotovia a cantar no Norte a melodia alegre de todas as almas livres, para sentir que, apesar de tudo o que perdemos, há vida a despertar sob as cinzas!

Porque és como a Fénix, Europa! Por mais que te queimem e te violentem a alma, há de sempre haver novas flores, e viçosas, a crescer em volta das tuas colunas destroçadas.

Fui a última turista na Europa, que se encolheu horrorizada ao som das rajadas de balas. E sou a primeira turista na Europa quando ela se erguer das cinzas outra vez…

________________

* Os pensamentos são como as cerejas e, quando li a letra desta canção, veio-me à cabeça «Göttingen», da grande Barbara. Em menina, Barbara, que era de família judia, fora obrigada a fugir da França ocupada. E em 1964, com a canção «Göttingen», lembrava a quem ainda guardava rancores contra «os Alemães», todos os alemães, que as crianças eram iguais em Paris e em Göttingen.


20/12/24

De podas e raízes

Não se deve confundir poda radical com poda radicular, por muito que radical e radicular tenham praticamente a mesma raiz...

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[Nem radicular nem radical, a poda das macieiras do quintal...]


17/12/24

Costura: coisas da memória e coisas da história


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Distinguia a minha avó

dois casacos, os quais são:

sem trespasse, paletó;

de trespasse, jaquetão.

(E não julguem qu’isto é só

devaneio ou disparate;

saibam que era a minha avó

costureira d’alfaiate!)

Mas mais que o corte, enfim,

se é ou não assertoado,

o que conta, para mim,

é o mat’rial usado;

e aquele que mais combina

comigo é, não sei porquê,

a velhinha bombazina,

– ou veludo cotelê...


Além das palavras que aparecem nas quadras acima, aprendi com a minha avó muitas outras expressões mágicas e os gestos que lhes correspondem: alinhavar, chulear, gizar, passajar, pespontar, bolsos metidos e bolsos estampados, costura inglesa, singela ou dupla, e muitas outras. Estes termos da costura são uns mais conhecidos que outros entre os não iniciados, como é natural quando se trata de termos técnicos; mas figuram todos nos dicionários, como devem, por muito que haja já pouco em Portugal quem ganhe a vida a costurar artesanalmente, ou seja, a fazer roupa à mão e à máquina... de costura. 

Como acontece também noutras áreas,  alguns termos da costura foram importados de línguas mais internacionais, como o inglês das mangas raglan ou o francês de plissar – depois de devidamente nacionalizado a palavra plisser – e de poche, a bolsinha de pano onde a minha avó guardava agulhas, dedais e alfinetes. Achei que, no meio de tantos empréstimos dicionarizados que há (e bem, não tenho nada contra), poche também o devia ser e propus essa entrada a um dicionário, mas a minha proposta foi indeferida – a única poche que aceitam é uma interjeição «usada para chamar e afagar um cão»...

A máquina de coser lá de casa era uma Singer a pedal, com uma correia de transmissão de couro (igualzinha a esta aqui), que a minha avó, como creio que todos os portugueses dessa época (e não só...), pronunciava com g de gelo e não com g de gato. Aprendi nela a enfiar linha e a coser – mas quem cosia sempre era o meu irmão, que cosia muito melhor que eu... Normalmente, eu alinhava e ele cosia. Cosia a minha roupa e a dele. Apertávamos sobretudo jeans, que se usavam muito justas na pernas, ou fazíamos bainhas, coisas simples.  

O princípio revolucionário do olho da agulha no extremo oposto ao das agulhas manuais, a ideia que permitiria a criação da máquina de coser, foi registado por um alemão que vivia em Inglaterra, Charles Fredrick Wiesenthal, em 1755 (!). Mas Wiesenthal não inventou propriamente uma máquina de costura. Nos 100 anos seguintes, foram-se sucedendo várias desenhos e protótipos de máquinas de costura, até que surgiram em meados do séc. XIX as máquinas de costura modernas, ou seja, já não muito diferentes da primitiva máquina da minha avó (ver aqui).

Penso que as pessoas não se dão conta da revolução que a máquina de costura constitui e sugiro um vídeo de Derek Muller no seu canal Veritasium em que, além de contar a história do engenho, explica em detalhe o seu funcionamento (em inglês). 



Divertimento com nomes de pessoas e nomes de letras de dois alfabetos


Rom,_Domitilla-Katakomben,_Steintafel_mit_Inschrift,_Alpha_und_Omega_und_Christussymbol_Chi_Rho
«Eu sou alfa e ómega, o primeiro e o último, o princípio e o fim».
As letras alfa e ómega, com o qui e o  de Xristos sobrepostos entre elas,
na Catacumba de Domitila, Roma.
Conheci uma vez uma rapariga chamada Alfa. A sério. Não tive coragem de lhe perguntar, por achar claramente importuno, o que qualquer pessoa quer saber quando conhece uma rapariga chamada Alfa: se tinha uma irmã chamada Beta*. 

Mudando apenas a terceira letra de Alfa, consigo encontrar dois nomes de pessoas que conheço: Alda e Alma. Sei que existem também Alba e Alea, mas não conheço ninguém com esses nomes. Não consegui fazer mais nenhum nome de mulher mudando a primeira, segunda ou quarta letra de Alfa.

Zeta também é um nome, tanto nome próprio como apelido, e Capa e Gama são só apelidos, ao que sei.

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Duas capas de revista com fotos de Robert Capa (1913–1954),
repórter fotográfico conhecido sobretudo como fotógrafo de guerra,
que morreu no exercício da sua profissão.
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O Grande Gama (à direita) em combate com Raheem Bakhsh Sultaniwala,
um anterior campeão, que era, como se vê, muito maior que ele.
O gama pequeno, γ, é muito diferente do gama grande, Γ. Grande Gama é também o nome desportivo de Ghulam Mohammad Baksh Butt (1878–1960), um dos mais famosos profissionais de luta livre de todos os tempos: em 52 anos de carreira, nunca perdeu um combate.

Agora, se, em vez do alfabeto grego, pensarmos antes no alfabeto fonético da OTAN, a Alfa que eu conheci também podia ter um namorado chamado Romeo, como quem poderia dar passeios de automóvel; ou ter amigos chamados Charlie ou Mike ou Oscar ou Victor, e amigas chamadas Juliett ou India ou Sierra – com a possibilidade de tanto India como Sierra serem cantoras de música country. Sierra é também apelido e Lima é só apelido. 

India Ramey já foi advogada e agora é cantautora. Faz música de intervenção em forma de outlaw country

A cantora Sierra Ferrell toca às vezes serra musical – quem sabe se por ter o nome próprio que tem... 

 

 

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Lima de Freitas: duas ilustrações de uma edição norte-americana de Nostromo, de Joseph Conrad, 1961
O pintor Lima de Freitas (1927-1998) era também um famoso ilustrador. Fez, entre muitas outras coisas, muitas capas e outras ilustrações para livros.  




Conclusão:

Segui acasos fúteis, sem temer

Perder-vos no que a sorte vos trouxer.

Não vem daí ao mundo nenhum bem,

mas também nenhum mal decerto vem...


Ou, dito de outra maneira, não se distingue bem o culto do a propósito (amiúde louvado) do culto do despropósito (sempre criticado)... Não faz mal. Contanto que a gente se divirta!

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* Vivo na Dinamarca e Alfa é dinamarquesa. O nome Alfa é raro na Dinamarca, mas menos raro do que eu pensava: segundo Hvor mange hedder...? («Quantos se chamam...?»), o site oficial de Estatísticas da Dinamarca para os nomes próprios e apelidos, há 83 pessoas do sexo feminino e 4 do sexo masculino que têm o nome próprio Alfa e ninguém o tem como apelido. Já Beta não ocorre como nome próprio, mas há 13 pessoas com esse apelido.

A verdade crua e outras obras nuas


Já aqui o disse aqui uma vez: Tenho a ideia de que, nas artes plásticas, a tão comum personificação feminina de ideais e conceitos abstratos tem sido um pretexto apenas para mostrar corpos femininos nus — e seios, principalmente seios. Creio que era mais fácil despir abstrações que duquesas, burguesas ou camponesas.  É claro, o género gramatical de certas palavras nas línguas românicas justificar uma personificação feminina da República, da Justiça, da Liberdade, da Fortuna, etc. Mas por que razão é que a República, a Liberdade, a Justiça, a Fortuna e outras abstrações hão de aparecer de seios nus? Até nos cemitérios há estátuas de mulheres — anjos fêmeas e figuras alegóricas indeterminadas  — de seios descobertos*

Mas não só em figuras alegóricas, também noutros tipos de imagens. Por exemplo, no quadro abaixo, que razão haverá para estarem nuas as duas futuras mártires cristãs que serão lançadas às feras, a não ser, precisamente, isso mesmo — a vontade de as mostrar nuas?…

Tirando isso, gosto da obra. Gosto, sobretudo das indefinidas feras que, lá do fundo, cristianizam os nus, se se pode dizer assim...

Saint George Hare: A vitória da fé («The victory of faith»), 1891. Óleo sobre tela, Galeria Nacional de  Victoria, Melbourne, daqui
Há quem consiga ver na obra o que o autor provavelmente dizia que nela se devia ver, duas mártires cristãs numa abraço fraternal, esperando serem atiradas às feras que as observam do fundo esbatido da cena. Outros, porém, veem na tela duas amantes adormecidas depois de um ato de amor. A artista Laura Olenska tem um texto sobre o quadro no seu site Éffluves, em que, além de outras informações interessantes, nos diz que fez sobre ele um breve inquérito justo dos seus contactos do Instagram, em que lhes pedia para darem a sua opinião sobre o quadro, sem pensarem muito e sem fazerem pesquisas na Internet: «O número de pessoas que participaram foi suficiente para se obter uma estatística realista». O resultado foi que 95% [escolheram] «descanso depois do prazer» e só 5% viram no quadro «um abraço fraternal»... E que dizem as/os leitoras/es deste blogue?



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* [Longa nota de rodapé, maior, afinal, que o próprio texto...]

O caso das personalizações nuas da Verdade é um pouco mais complicado: a expressão «verdade nua [e crua]» existe em várias línguas, mas não consigo encontrar uma explicação inequívoca da sua origem. 

Há uma história conhecida que diz que, de uma vez que a Verdade se banhava num rio, passou por lá a Mentira, que lhe roubou a roupa que ela deixara na margem. A história ocorre com pelo menos duas conclusões. Nalguns textos, diz-se que a Mentira lá deixou as suas roupas, mas a Verdade preferiu ir nua que vestir a roupa de Mentira. Noutros, diz-se que a Mentira não deixou lá roupa nenhuma e que, daí em diante, aparece às pessoas vestida como se fosse a Verdade, ao passo que esta última não pode senão aparecer nua e que, por isso, muitas pessoas recusam olhar olhar para ela. 

Esta história é muita vezes dada como sendo uma fábula da antiguidade, mas não consigo encontrar dela versões antigas. O que consigo encontrar, isso sim, é uma famosa citação de Demócrito, que diz que «na realidade, não sabemos nada, porque a verdade está no fundo de um poço». Segundo algumas traduções, seria antes «Da realidade, não sabemos nada...», ) e, em vez de poço, tratar-se-ia de um abismo».... Como não sei grego antigo, não posso tomar partido por nenhuma das traduções, mas o certo é que há toda uma tradição pictórica de representar a Verdade saindo nua de um poço — muitas vezes com uma espelho na mão, que é também uma forma clássica da sua representação. A mais conhecida destas obras é a pintura de Jean-Léon Gérôme «A Verdade saindo do poço armada do seu chicote para castigar a humanidade». Este quadro é de 1896, mas há vários anteriores, a partir de 1879, pelo menos

Pode pensar-se que, mais uma vez, é a vontade de mostrar mulheres nuas que justifica este motivo pictórico. O facto de  Demócrito ter posto a Verdade nas profundezas da terra não pode justificar, por si, a sua nudez: porque não haveria ela de estar num poço e vestida? 

Já em 1838, porém, podia ler-se, num conto em verso de Jean-Pierre Claris de Florian:

«A Verdade, toda nua, / Saiu do seu poço um dia. / Já despojada, p'lo tempo, / dos encantos que tivera.»

Pode então a origem da nudez ser literária e não pictórica... 


27/11/24

Conceitos e obras de arte, ready-mades, apropriação e arte pop(ular) 3ª Parte


[Continuação daqui]


Álvaro Barrios e a arte pop a brincar com a arte

O ponto de partida deste longo devaneio foi o ready-made. E foi a obra de Álvaro Barrios, um artista colombiano, que me chamou a atenção para a relação entre o ready-made e a arte pop — que agora já vi referida, mas em que antes nunca tinha atentado.

Álvaro de Barrios pode ser visto como um discípulo de Lichtenstein, pelo menos nas obras em que se apropria de quadros de banda desenhada[4] é sobretudo disso que aqui se trata. Mas o uso que Barrios faz da BD é muito diferente daquele que Lichtenstein normalmente faz.

A primeira diferença entre as obras dos dois artistas é a escolha de referências. Se Lichtenstein prefere as séries de romance e de guerra dos anos 50 e 60 (ilustradas por desenhadores famosos como Joe Kubert e John Romita Sr., ou por outros menos conhecidos[5]), Barrios prefere os grandes heróis dos anos 30 e 40, como Dick Tracy, de Chester Gould, Fantasma e Mandrake, de Lee Falk, Red Ryder, de Fred Harman, Super-Homem, de Joe Shuster, Terry and the Pirates, de Milton Caniff, Tintin, de Hergé, etc. 

Barrios pode não ter a técnica de um grande desenhador ou pintor, mas consegue fazer funcionar as suas ideias — e aqui temos mais um caso em que a ideia é tão importante como a sua execução, se não mais. E, ao contrário de Lichtenstein que unifica com um traço incaracterístico os traços dos ilustradores que «cita» (não se pode ver num quadro de Lichtenstein se se baseia em Kubert ou Romita…), Barrios insiste, na maioria das suas obras em que há apropriação de outros artistas, em preservar o traço de cada um dos ilustradores apropriados e, nos seus quadros, vê-se bem que a imagem foi tirada de (ou se baseia em) Shuster, Falk, Harman ou Caniff, por exemplo.

Outra diferença é, precisamente, o uso do texto. Nas obras de Barrios, o texto é uma parte tão importante da obra como a imagem. Mas os textos das pinturas baseadas em BD não são textos de quadros de BD. E isto é diferente do que Lichtenstein fazia. Na grande maioria dos casos, Lichtenstein conserva exatamente o texto do quadro de BD «apropriado», ou introduz modificações mínimas, como, por exemplo, acrescentar apenas o nome Brad[6]. Essa «fidelidade» à obra «apropriada» pode ser entendido como um modo de criar ironia — uma crítica implícita ao universo do romance popular ou da aventura de massas... Mas revela também, como referi na primeira parte deste texto, um processo de criação muito próximo do ready-made de Duchamp: agarrar num objeto preexistente e elevá-lo a obra de arte (quase) só pela sua vontade — e por uma ampliação feita com uma técnica artística muito limitada.

Uma das raras exceções, na obra de Lichtenstein, à preservação do texto da BD original é uma pintura de 1964, Masterpiece, que aponta para o que Barrios viria a desenvolver de outra forma: a referência à pintura. A imagem é tirada de uma BD de Ted Galindo e um pouco mais modificada do que o habitual, também ao nível gráfico: a janela do automóvel é transformada numa tela de pintura vista de trás. É aliás, um dos quadros de Lichtenstein mais aceitáveis do ponto de vista gráfico, embora a omnipresente falta de dinamismo do traço ressalte em vários pormenores — especialmente quando comparado com o traço — banal, talvez, mas escorreito e profissional — de Ted Galindo. Quanto ao texto, é completamente modificado: no original, a rapariga diz: «But someday the bitterness will pass and maybe I'll be the girl to change your heart! But for now at least I can be near you!» («Mas algum dia a amargura há de passar e talvez eu venha a ser a rapariga que te faça sentir de outra maneira. Mas, por agora, pelo menos posso estar perto de ti»); no quadro de Lichtenstein, a rapariga diz antes «Why, Brad darling, this painting is a masterpiece! My, soon you’ll have all of New York clamoring for your work!» («Bem, querido Brad, esta pintura é uma obra-prima. Ena, em breve terás Nova Iorque inteira a aclamar o teu trabalho!»)  O demonstrativo this é ambíguo: refere a obra vista de costas no quadro ou o próprio quadro de Liechtenstein? Seja como for, haja ou não autorreferência da obra (um motivo tão em voga nas artes na segunda metade do séc. XX) é difícil não ver no quadro uma alusão (irónica?) à consagração que Lichtenstein começava a ter no mundo das artes plásticas. A haver alguma filiação em Lichtenstein (Barrios recusa-a), é no raro Lichtenstein do Masterpiece.

Barros cria sempre os textos das suas obras. E estes textos são uma componente tão essencial dessas obras que se pode dizer que, por muito que a sua estética seja inequivocamente pop, Barrios é, de facto, um artista conceptual mais que um artista pop. Mas é um conceptualismo desopilante, de paródia. Barrios brinca com tudo: com a sua relação com os seus mestres, com as teorias da arte, com a própria arte moderna. E faz muitas vezes alusões mordazes e divertidas ao mundo das artes. Como diz Elías Doria, «As vítimas da sua sofisticada ironia parecem ter sido trazidas de volta da década de 1940 numa implacável máquina do tempo, mas os problemas que aborda estão ancorados no decadente presente legitimado pelas bienais, pelas casas de leilões, pelas poderosas galerias internacionais, pelas socialites de todos os tempos e um interminável etecetera». 

Por fim, a diferença mais significativa entre Lichtenstein e Barrios é que este muitas vezes não se limita a recriar pedaços de BD, transformando-os noutro «tipo de arte»[7]. Introduz elementos de estranhamento — referências intelectuais, todos eles — que são outro aspeto fundamental da produção do efeito de pastiche humorístico que referi acima. 

É uma recriação-recreação, se se pode dizer assim, em que Duchamp e os seus ready-mades têm muitas vezes um papel de destaque. Não há dúvida de constituem fontes fundamentais da obra de Barrios. Sobretudo a sua «Fonte»: essa é mais importante das fontes…


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[4] Lichtenstein foi o pintor pop que mais se «apropriou» de bandas desenhadas, mas não foi o único.

Andy Wharol fez pelo menos dois quadros que são também apropriações de quadros de BD: Superman Puff, de 1961, e Dick Tracy, de 1963 — este último com alguma desconstrução da imagem original, que desconheço. Pode ver-se aqui a imagem original do Super-Homem de 1961, mas não há, infelizmente, referência ao artista (Curt Swan?). David Barsalou refere (ver link anterior) que este Super-Homem de Warhol é mais de seis meses anterior ao primeiro trabalho de Lichtenstein usando a mesma «técnica», se se pode dizer assim, pelo que «Andy Warhol sempre pensou que Roy Lichtenstein viu as suas pinturas no Bonwit Teller..., roubando as suas ideias e conceitos originais». Uma pessoa pode, pois, apropriar-se da ideia de apropriação… 

Outros artistas mais ou menos pop têm obras baseadas em BD. Sharon Moody é um bom exemplo, embora o trabalho dela se possa considerar talvez mais hiper-realismo neobarroco… 

[5] Como Tony AbruzzoRoss AndruHy EismanMyron FassTed GalindoJerry GrandenettiIrv NovickArthur PeddyJay Scott (Jim) Pike e Mike Sekowsky, entre outros.

[6] Curiosamente, o nome Brad parece também ser uma apropriação do nome de uma personagem de um dos autores de que Lichtenstein mais se apropria, Tony Galindo.  

[7] É agora fácil saber de que BDs específicas Lichtenstein se apropriou para os seus quadros, devido ao trabalho de pesquisa de David Barsalou, entre outros; mas não consigo saber de que histórias concretas é que Barrios tirou os desenhos em que as suas obras se baseiam, nem sequer se são tirados de histórias concretas ou são antes colagens de várias fontes. Parece-me improvável que sejam criações suas usando apenas personagens conhecidas, porque o traço dos autores de que se apropria está demasiado presente nas obras. Parece-me evidente,  por exemplo, que a série de quadros baseados em Terry e os Piratas, nos anos 2010, é construída com cópias exatas de quadros das BDs, apenas com uma cor de fundo e um texto diferentes (podem ver aqui alguns deles).