«24 de maio: Da varanda da casa onde ficámos, em Zadar, o que se vê podia ser Portugal: as vivendas e os quintais, com nespereiras, figueiras, oliveiras e cerejeiras. Só o que parece muito mais Dinamarca que Portugal é a rapariga de bicicleta, certamente a caminho da escola, de mochila às costas e sem mãos no guiador, comendo o pequeno-almoço enquanto pedala.»
21 de junho de 2022
Dois artigos de jornal
Dois artigos curiosos de jornais dinamarqueses:
O primeiro é do Semanário de Svendborg (UgeAvisen Svendborg), um dos jornais locais que recebemos gratuitamente. É um artigo de setembro do ano passado e conta a história de Ebba Hackmann, uma senhora que, quando o artigo foi publicado, fazia trabalho administrativo na firma Elektro Svendborg – desde 1959! Digo fazia, porque não sei se a senhora continua a trabalhar. Ebba tinha nessa altura 91 anos e continuava a trabalhar a tempo inteiro. A firma é agora da filha, mas já foi dela e do marido. O marido tinha morrido três anos antes, com 91 anos, e também trabalhou sempre na firma até morrer. Quando a filha ficou a ser proprietária da firma, em 2007, Axel Hackmann, então com 80 anos, passou de diretor a paquete e foi como paquete que continuou a trabalhar até ao fim da vida.
O segundo artigo é muito mais antigo. Na página em que o encontrei, não dizia, infelizmente, em que jornal tinha sido publicado. Podia bem ser um conto romântico, ou parte dele, mas é apenas uma notícia de jornal, de 15 de fevereiro de 1915.«Uma senhora idosa, pobre mas bem vestida, entrou no “Prestamista Barato”, em Overgaden Neden Vandet Nº 29, em Copenhague, para empenhar a sua aliança de casamento. Olhando para a senhora, era fácil perceber que não tinha sido fácil para ela dirigir-se ao prestamista com a última recordação de momentos felizes. Estava muito abatida, mal conseguia falar e, no momento em que pôs o anel no balcão, caiu inconsciente no chão. O gerente da casa de penhores ligou imediatamente para a polícia e, pouco depois, chegou ao local uma ambulância, que transportou a senhora ao hospital municipal. Lá chegada, porém, os médicos verificaram imediatamente que havia já falecido. A senhora tinha sofrido um ataque cardíaco. E toda a assistência que se lhe pudesse prestar era já em vão.»
Pronto, era só isto.
16 de junho de 2022
Há línguas em que é mais fácil brincar com as palavras?
Já aqui fiz no blogue alguns comentários à tão popularizada ideia de que a língua determina a nossa perceção do mundo e à alegre falta de rigor com que muitas vezes se faz o escrutínio desta ideia. E hoje venho, vejam lá, sugerir que talvez a língua possa de facto interferir na nossa relação com o mundo. Mais concretamente, venho sugerir que bem pode haver línguas em que é mais fácil que noutras «brincar» com a própria língua: fazer humor e literariedade. E, mais concretamente ainda, sugiro que é provável que em francês seja mais fácil fazer trocadilhos e rimar [pelo menos, no sentido em que entendemos rima hoje em dia na nossa cultura] que nas outras línguas que conheço. E isto porque
- o francês é uma língua de acento fixo, o que torna as coisas muito mais fáceis; e
- a evolução fonética do francês foi, antes de mais, no sentido de um vocalismo muito forte, e portanto uma perda de muitos sons consonânticos, gerando assim
- um número muito grande de palavras e sequências homófonas (fundamental para os trocadilhos) e
- menos sons possíveis em final de palavra (fundamental para a rima).
Para dar dois exemplos muito simples [mas há muitos, muitos!], a forma /vɛ̃/ pode provir de vários étimos diferentes: de vinum [vin], de vi[gi]nti [vingt], de vanus[vain], de vēnī [vins], de vēnistī [vins] e de vēnit [vint]), da mesma forma que /po/ pode derivar de pellis ou de potus e /depo/ tanto pode corresponder a des pots como a des peaux como a dépôt.
É certo que, se que esta convergência de formas se deu, é porque não causa ambiguidades, senão ela não podia existir. Mas, existindo no discurso comum sem causar ambiguidades, está disponível para ativamente se construírem, a partir dela, trocadilhos e jogos de palavras ou com as palavras. Não deve ser por acaso que são em francês os exemplos mais famosos de holorrimas, isto é, rimas em que não rima só o fim do verso, mas sim o verso inteiro. Creio que a holorrima mais famosa é de Marc Monnier, nos célebres versos
Gall, amant de la Reine, alla, tour magnanime ! ,Galamment de l'Arène à la Tour Magne, à Nîmes.
Par les bois du Djinn, où s'entasse de l'effroi,Parle et bois du gin !… ou cent tasses de lait froid.
Dans ces bois automnaux, graves et romantiques,Danse et bois aux tonneaux, graves et rhums antiques
Transcrevo abaixo a letra da canção « Saucisson de Cheval », de Boby Lapointe, um exemplo radical do que é brincar com as palavras em francês — como aliás todas as canções de Boby Lapointe, o maior mestre dos jogos de palavras, que aconselho a explorar, se não conhecerem.
Um jogo de palavras assenta sempre numa relação entre um segmento sonoro pronunciado e um outro evocado na mente do ouvinte. Pode haver semelhança fonética ou total homofonia dos dois segmentos que constituem o trocadilho, com ou sem coincidência sintática. Por vezes o segmento não dito pode ser uma expressão fixa, o que facilita a sua evocação na mente do ouvinte; e por vezes a evocação do segmento pode também ser facilitada pela introdução prévia de um elemento no texto – ou pode mesmo haver, como no caso da canção transcrita abaixo, uma delimitação à partida de um determinado campo semântico [neste caso, o cavalo]. Como alguns jogos de palavras da canção podem não ser óbvios, mesmo para quem domine relativamente bem o francês, sublinho em cada verso a parte que deveria evocar outra coisa no ouvinte e deixo entre parênteses retos o segmento evocado. Não transcrevo os onomatopaicos refrães nem as breves passagens faladas, que, contribuindo sem dúvida para o humor e para o ambiente geral da canção, não são relevantes para o tema aqui discutido.
Se existem, em países de língua latinas ou germânicas, alguém que faça jogos de palavras como Boby Lapointe, não conheço. Mas será mesmo possível fazer canções como « Saucisson de cheval » noutras línguas? A pergunta não é de modo algum retórica: línguas há muitas e eu conheço muito poucas. Digam-me, pois: que sabem e opinam sobre o assunto?
15 de junho de 2022
A letra C e outras histórias de letras: uma viagem por vários alfabetos
[Tentei evitar, neste texto, o uso do alfabeto fonético internacional, que muita gente não conhece, mas nem sempre foi possível. Assim, transcrevo a maior parte das vezes para a pronúncia mais aproximada do português europeu, entre parêntesis retos [ ] em itálico, e, quando tenho mesmo de usar um símbolo fonético uso barras (/ /) e o símbolo sem itálico, acrescentando ainda uma nota que explica de que som se trata. Para referir letras, uso sempre maiúsculas em negrito: C.]
Em abril e maio fiz, com a minha mulher e um casal amigo, uma viagem de carro da Dinamarca à Geórgia (Geórgia) e volta. Fizemos 12.300 km por 14 países[1]: à ida, passámos pela Alemanha, Chéquia[2], Eslováquia, Hungria e Turquia; à volta, atravessámos de novo a Turquia e depois a Grécia, Albânia, Montenegro, Croácia, Eslovénia, Áustria e, claro, de novo a Alemanha. Foi uma viagem fascinante por várias gentes, paisagens, arquiteturas, histórias, culturas, gastronomias e línguas. Mas foi também uma viagem por vários alfabetos e várias variações de cada um deles. Talvez aqui venha a falar da viagem propriamente dita, ou de partes dela, pelo menos — dos lugares e situações por aonde passámos. Mas agora é mais de escrita que vos quero falar. Foi uma parte curiosa da minha experiência em viagem — reaprender a ler. Quando ao fim de duas semanas na Geórgia, comecei a juntar letras antes desconhecidas, timidamente, devagarinho, quase revivi a aprendizagem da leitura. Quase, digo bem, porque aprender um alfabeto novo não é exatamente a mesma coisa que aprender a descodificar a escrita pela primeira vez…
Antes de mais, uma panorâmica dos sistemas de escrita por onde passei. Não conto a Dinamarca, país de partida e de chegada, e país onde moro. Dos outros países por onde passámos, em onze deles usam-se versões locais do alfabeto latino (Alemanha, Chéquia, Eslováquia, Hungria, Turquia, Albânia, Montenegro, Croácia, Sérvia, Eslovénia e Áustria); em três deles, versões locais do alfabeto cirílico (Montenegro, Sérvia e Bulgária); na Geórgia, o alfabeto georgiano; e na Grécia, o alfabeto grego. Agora, onze mais três mais um e mais um dá dezasseis e não catorze. É que a Sérvia e Montenegro têm dois alfabetos oficiais, o cirílico e o latino[3].
Nos países onde não se usa o alfabeto latino (Bulgária, Geórgia e Grécia), os nomes das localidades aparecem quase sempre na escrita local e numa forma latinizada: normalmente, adota-se uma transcrição/transliteração «internacional», que eu creio, de facto, se baseia na tradição inglesa (CH para [tch], SH para [ch], KH para /x[4]/, etc.). Foi em grande parte a partir destas placas toponímicas em dois alfabetos que fui deduzindo os sons correspondentes às letras dos alfabetos novos, consultando depois Google em caso de dúvida, quando chegava a um sítio com ligação à internet.
Isto de se apresentarem os nomes das localidades também num alfabeto estrangeiro, não deixa de ser curioso, já que, nos países em que se escreve com alfabeto latino, não passa pela cabeça de ninguém transcrever em cirílico, em grego ou em georgiano os nomes das terras. E é pena, porque Braga havia de ficar bem como Брага, e ficam muito bonitos Córdoba como Κόρδοβα e Liverpool como ლივერპული, por exemplo. Também as matrículas dos automóveis, os códigos de identificação internacional de automóveis e os códigos ISO dos países são, em todo o lado, em alfabeto latino. E isto diz alguma coisa sobre como o alfabeto latino é de alguma forma considerado mais «neutro» ou «universal» — sobre como ele é, de facto, mais poderoso, por ser usado pela maior parte das nações mais poderosas nos últimos séculos, que colonizaram uma grande parte do mundo, o que faz com que seja atualmente usado por 70% da população mundial…). Por isto mesmo, num país que use um alfabeto não latino, ninguém espera — e acertadamente — que um estrangeiro saiba ler o alfabeto local. Lembro-me que, num hotel em Plovdiv, para me treinar na leitura do cirílico, li em voz alta закуска numa nota na parede ([zakusska], «pequeno-almoço») e que o rececionista se surpreendeu («Ah, sabe ler búlgaro?») e me informou — em inglês, note-se — que era das 7:00 às 10:00.
Já agora, de passagem, a questão das transcrições de um para outro alfabeto é interessante. Note-se, antes de mais, que não há uma forma única de transcrever de um sistema para outro, mas a transcrição depende antes da língua de chegada, porque normalmente se transcreve som e não se transliteram caracteres um a um. Assim, a transcrição de Чайкóвский para o alfabeto latino é normalmente Tchaikovsky em inglês (o T inicial é, em última análise, desnecessário…), Chaikovski em castelhano, Tchaïkovski em francês, e Ciaikovski em italiano, por exemplo, para a leitura, nessas línguas, se aproximar o mais possível do som russo original. E são questões de transcrição que justificam, às vezes, certas «anomalias» como a grafia turca de otomobile, otogar ou otel. A explicação é, quase de certeza, que as palavras automobile, autogare e hotel, importadas do francês, foram primeiro transcritas — foneticamente, sublinho — para a variante otomana do alfabeto árabe. Depois, quando a escrita do turco passou, em 1928, a fazer-se com o alfabeto latino, não se retomou a grafia original do francês, que seria confusa para um falante do turco que não estava habituado a ela, mas as palavras foram antes retranscritas, mais uma vez foneticamente, e é por isso que têm atualmente a forma que têm. Vi também, no programa em inglês de um balé que fomos ver em Tbilisi, na Geórgia, o nome próprio de Ravel escrito Moris. Mais uma vez, uma questão de retranscrição: o nome Maurice é, naturalmente, transcrito em georgiano como se pronuncia, მორის [moriss]. Ao retranscrever, a pessoa que escreveu o texto em inglês, transformou apenas as letras e sons georgiano nos correspondentes «normais» em inglês.[5] Vi também fakhitas num menu georgiano em inglês. Mais uma vez, o resultado de uma retranscrição: o som /x/ do jota castelhano em fajitas é transcrito em georgiano pela letra que o representa nesta língua: ხ; e foi depois retranscrito por KH, que é, na Geórgia, a sua mais habitual transcrição para o alfabeto latino.
Agora, um exemplo concreto de viagem alfabética: uma letra que é igual em todos os alfabetos e suas variantes por que passámos na nossa viagem, menos no georgiano, é a letra C. Notem que o C do alfabeto latino, derivado do gama grego, não tem a mesma origem que os CC dos alfabetos cirílico e grego, derivados ambos do chamado sigma crescente, uma variante cursiva do sigma grego. Mas têm hoje exatamente a mesma forma, de maneira que muita gente os verá como a mesma letra, apenas representando valores diferentes. Nos alfabetos cirílico e grego (atualmente, é muito pouco usado em grego), o C representa sempre o som /s[6]/: Sófia é Со́фия e Subotica é Суботица, e pronto. Não é muito fácil, para quem está habituado a outros valores de uma letra visualmente igual, habituar-se a isto: Сара lê-se [sara] e não [capa] e салат lê-se [salat]. Mas, com o tempo…
No alfabeto latino, o C representava originalmente o som /k[7]/; mas, nas diversas variações modernas desse mesmo alfabeto, o C pode representar vários sons. Pode ser, por exemplo, como em português, francês, castelhano americano[8] e inglês, /s/ antes de E e I, e, se não cedilhado, /k/ antes de A, O e U; e pode representar muitos outros sons. Mas não quero passar aqui em revista todos os possíveis sons que o C pode representar (vejam aqui) — interessam-me antes os novos sons de C que fomos encontrando na nossa viagem.
O primeiro contacto com um novo valor de C foi na nossa primeira paragem, em Pardubice, na Chéquia. A nossa amiga Alice, que nos acolheu, explicou-nos que o nome da terra se pronuncia [pardubitse[9]]. E nós ficámos a saber que era assim em checo, mas só mais tarde descobrimos que o C se lê assim em todas as outras línguas eslavas escritas com o alfabeto latino[10].
– Mas então –, perguntei eu à Alice, – mas isso significa que o teu nome se pronuncia [alitse] em vez de [alisse]…
– Em checo, sim –, disse ela, – mas, a pessoas que falam outras línguas, digo sempre como elas esperam ouvir.
E a minha mulher, que é amiga dela há quase quarenta anos, não sabia que a Alice de Pardubice é, afinal, a Alitse de Pardubitse.
Em Pardubice aprenderam também os meus companheiros de viagem (eu já sabia) que o C com um circunflexo invertido, Č, se pronuncia [tch]. Mais tarde, descobrimos que há também um C com acento, Ć, que representa um som ligeiramente diferente no alfabeto latino servo-croata, mas que a maior parte de nós ouvirá e pronunciará também como [tch].
Zona, em servo-croata, escreve-se como em português e pronuncia-se também quase da mesma maneira. Mas o esloveno é diferente do servo-croata e a palavra pronuncia-se [tsona] e escreve-se com C. |
Também foi mais fácil para toda a gente aprender o valor do Ç do alfabeto turco, que é igual ao do Č dos alfabetos latinos de línguas eslavas, que o valor do C turco, que é [dj], como em inglês jeans ou gin. Aprendi isto na primeira noite na Turquia. A rececionista do hotel soletrou-me o código do wifi e quando ela disse [dj] eu escrevi um J, provavelmente porque o inglês é a língua que falo que tem esse som e J é uma das maneiras de o escrever.
– Não, não [j], [dj], [dj]!
E fez-me o sinal com a mão no ar. Um C? Escrevi um C.
– Sim, [dj].
Evidentemente, se uma portuguesa dissesse a um turco que não conhecesse a escrita portuguesa para escrever [cê], ele escreveria S e não lhe passaria pela cabeça que a letra a que ele chama [djê] se pudesse usar para representar tal som…
Para terminar este longo devaneio, deixem-me só acrescentar que, para os meus companheiros de viagem, esta coisa de alfabetos e pronúncias não tinha interesse por aí além e eu aprendi rapidamente que era coisa que devia guardar para mim próprio, para não os chatear.
Vejam se adivinham que companhia sueca de roupa tem este símbolo na Geórgia. |
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[1] Quinze, de facto, mas só estivemos cerca de um quarto de hora na Bósnia e Herzegovina, de maneira que não conta. Também atravessámos apenas, quase sem parar, a Eslováquia, a Sérvia e a Áustria, mas deu para me ir entretendo com letreiros vários. Em termos de alfabetos, porém, a Eslováquia e a Áustria não têm nada de muito novo: o alfabeto eslovaco é quase igual ao alfabeto checo (e ao alfabeto servo-croata) e na Áustria usa-se a mesma variante do alfabeto latino que nos outros países de língua oficial alemã.
[2] A propósito da recente polémica sobre o nome do país, quero lembrar que Chéquia é a designação oficial em Portugal (a par, claro, de República Checa, da mesma forma que França também pode ser República Francesa ou Dinamarca pode ser Reino da Dinamarca). Também é de ler, sobre o assunto, um texto de Margarita Correia no DN.[3] A mesma situação existe na Bósnia e Herzegovina. Na Sérvia, os dois alfabetos convivem em todas as esferas, exceto na esfera jurídica, em que o cirílico é obrigatório; em Montenegro e na Bósnia e Herzegovina, há uma prevalência do alfabeto latino.
[4] O som [x] é um som muito comum, que existe em muitas línguas, muito próximo do som do R gutural português em carro, por exemplo, e igual ao G neerlandês, a alguns CH alemães (como em Bach, por exemplo) e ao jota de vários falares castelhanos.
[5] Note-se, de passagem e um pouco a despropósito, que o criador de Lucky Luke, Maurice de Bevere, usava o nome artístico Morris.
[6] Como o nosso S em início de sílaba, quando não precedido de vogal (só, penso) ou os nossos SS (isso)
[7] O som /k/ é o som do nosso C em carro ou do nosso QU em quente. No chamado «latim eclesiástico», pronuncia-se o C do latim como em italiano moderno ([tch] antes de I e E, /k/ nos outros casos), mas na verdade, em latim pronunciava-se /k/. Bom, como quase todas as línguas, o latim nunca nasceu nem nunca morreu, apenas evoluiu, e a sua pronúncia foi obviamente mudando sempre, pelo que é pouco rigoroso dizer que isto ou aquilo se pronunciava assim em latim, mas isto é só para simplificar a conversa... Caesar, por exemplo, pronunciava-se [kaissar] e coelus, «céu», pronunciava-se [koiluss]
[8] Também na pronúncia andaluza e canária do castelhano europeu. Em castelhano europeu standard, porém, antes de E e I, o C tem o som /θ/, pronunciado com a língua entre os dentes (o chamado «S de sopinha de massa»), como o Θ grego, o Þ islandês e muitos TH em inglês.
[9] O último som é não é exatamente como o do nosso E átono, mas algo entre o nosso E átono e o nosso A átono. Talvez mais [pardubitsa] que [pardubitse]…
[10] Como se pronunciava também em português arcaico (pelo menos, na sua primeira fase) antes de E e I, ou quando cedilhado: cidade era [tsidade], faço era [fatso], etc.
9 de abril de 2022
Politicamente correto, mais uma vez
Os pobres sabem pouco dos motivos que levam as classes mais altas à ação: orgulho, honra e ambição. Em geral, só a fome pode estimulá-los e incitá-los a trabalhar; as nossas leis, porém, dizem que eles nunca deverão passar fome. As leis, há que o admitir, também dizem que eles estão obrigados a trabalhar. Mas a obrigatoriedade legal traz sempre muitos problemas, violência e barulho; cria má vontade e não pode nunca produzir um serviço bom e aceitável; ao passo que a fome não só é uma pressão pacífica, silenciosa e incessante, como também, sendo o motivo mais natural para a indústria e o trabalho, suscita os maiores esforços; e, quando satisfeita com a generosidade de outrem, cria uma base duradoura e segura para a boa vontade e a gratidão.
7 de abril de 2022
Dupla negativa
Eu vi nada
Eu não vi nada
4 de abril de 2022
Cristal Limiñana (uma história com um bocadinho de publicidade)
19 de março de 2022
História de M.
M. trabalha num lar de idosos em Marselha e trabalha demais. Raramente recusa os turnos extra que lhe propõem quando falta pessoal. Também o trabalho é ali mesmo, mesmo ao lado de casa. Fora do trabalho, M. ajuda outras pessoas. «As pessoas não fazem ideia de como a vida é difícil noutros lugares», repete ela muitas vezes. «Ou aqui, para quem não tem nada. As pessoas têm tantas coisas e nem sonham o que é viver sem ter as coisas que elas têm. Dizem mal dos outros, mas não os percebem. Não fazem ideia do que é a vida deles. As pessoas que vêm ali vender coisas a Noailles, por exemplo. Alguns andam a apanhar tudo o que presta nos caixotes do lixo. Outros dão-lhes coisas. Se calhar, outros roubam também, mas quem é que os pode criticar? Muitos nem podem trabalhar, não lhes dão papéis. Vivem daquilo que vendem. Se não vendem, não comem. É fácil criticar, que não pagam impostos, isto e aquilo, que são marginais. Eu também já os cheguei a criticar. Mas agora sei o que é a vida deles e não os critico. Antes os ajudo no que posso. Neste momento, dou abrigo a um homem do Kosovo. Ligou-me há bocadinho. A polícia fez uma rusga em Noailles. A malta que lá estava a vender e que não tem papéis teve de fugir a correr. Muitos deles deixaram as coisas no chão. É sempre a mesma coisa. Depois vem um camião do lixo e leva aquilo tudo. Era daquilo que aquelas pessoas iam viver um dia ou dois ou mais, mas a polícia deita tudo fora. Aquelas pessoas vivem de quê? A maior parte das pessoas nem sonha o que é a vida daquela gente, o que é a vida de tanta gente... O homem que eu ajudo não pode voltar ao Kosovo. Não lhe dão licença de residência aqui, mas ele também não pode voltar a casa. Se voltar ao Kosovo, matam-no. Colaborou com os sérvios durante a guerra. Ele era um rapaz novo e não percebia bem as coisas. Mas ninguém se esquece e ninguém lhe perdoa. E eu ajudo-o no que posso, dou-lhe alojamento, mais não posso fazer. As minhas filhas não sabem. Elas ficam zangadas quando sabem que eu ajudo alguém, com dinheiro ou seja lá com o que for. Se quero ajudar alguém, dizem elas, que participe numa organização, numa coisa organizada, que assim com caridade não resolvo nada e um dia ainda me arrependo. Mas elas não percebem bem o que é a vida destas pessoas.»
11 de fevereiro de 2022
Duas histórias de carne
[Segundo o site statista, a produção mundial de carne de Gallus gallus domesticus em 2021 foi de cerca de 100 mil milhões de quilos, o que dá uma média de cerca de um quilo de carne por mês por ser humano. Uma média assim quer dizer que, por muito que toda a gente goste de frango em qualquer lado do mundo, como diz o meu amigo, há muito quem só muito raramente o coma.]
[Entrecôte é um bife da vazia (ou do acém, como aqui se discute). O gosto do meu amigo suíço coincide com o de uma grande maioria dos franceses: há muitas sondagens sobre os pratos favoritos dos franceses e com resultados variados, mas o bife com batatas fritas, seja ele entrecôte ou não, vem sempre entre os dez primeiros.]
9 de fevereiro de 2022
Faláfel
Diz-se que a prática faz o mestre e é bem verdade, na maior parte dos casos. Normalmente, faz-se mal aquilo que não se praticou o suficiente. Polmes, por exemplo — não sei fazer bons polmes, mas acho que é só porque não pratiquei o suficiente… Às vezes, porém, também é questão de encontrar uma maneira de fazer as coisas que funcione para nós.
Queria falar-vos de faláfeles, aqueles pastelinhos médio-orientais que há. Experimentei muitas receitas e improvisei muito à volta delas, com grão cozido, meio cozido e cru, e nunca me saíram bem. De sabor sim, mas sem a consistência devida. Até que encontrei, no Comidista, a receita que funciona mesmo — para mim! — e que sabe melhor que as outras todas. A questão, afinal, era usar três quartos de favas secas para um quarto de grão e não demolhar nem triturar demasiado as leguminosas. Vejam aqui a receita:
Já agora, há um artigo do History Today que confirma o que se ouve no vídeo do Comidista: o faláfel original é egípcio e é de fava, cuja designação em árabe egípcio está, aliás, na origem do seu nome. Mas vários dicionários, alguns deles fiáveis, como o dicionário etimológico Etymology Online, propõem um étimo árabe, falafil, que segundo alguns significa «pimenta(s)» e segundo outros «crocante, estaladiço».
Parece que as primeiras referências ao faláfel datam do séc. XIX. Como tudo o que é tradicional — já era de esperar – o faláfel não é, pois, uma coisa assim tão antiga... Cabe agora a quem se interesse muito pelo assunto investigá-lo mais a fundo e descobrir se há outras versões da história do faláfel que sejam mais dignas de crédito que este artigo do History Today. A mim, interessam-se mais os faláfeles que a sua história... Bom proveito!
Moral e mercado
Estou em crer que nem o mais ferrenho defensor do liberalismo económico defenderia, pelo menos às claras, que todo o comércio é sempre aceitável. Mas, para não se defender essa ideia tão pouco popular, há que ter como critério algo mais que o bom funcionamento da economia. E isto porque, como já uma vez aqui referi, de acordo com a teoria pura dos mercados, qualquer intervenção estatal, nem que para definir, com base nalgum critério moral (ou político, que neste caso é o mesmo), que comércio se pode ou não fazer reduz forçosamente a eficácia da economia. Por exemplo, se houver mercado para escravos não há razão nenhuma, numa perspetiva exclusivamente económica, para não se fazer comércio de escravos. Etc.[Este é daqueles textos que está há seis anos (!) para eu lhe dar forma definitiva. Mas eu não sei dar forma definitiva a nada, e isto também é só um blogue, não é verdade? De maneira que aqui vai como está sem mais, meio em esboço. Fala-se de mercado e liberalismo económico numa perspetiva moral.]
A verdade simples, de que nos esquecemos com demasiada frequência, é que o liberalismo económico é uma teoria económica, não uma teoria política, embora, como qualquer teoria económica, possa fazer parte de uma teoria política. É por isso que há uma tão grande divergência no plano propriamente político entre partidos que defendem o liberalismo económico (o grupo liberal do Parlamento Europeu é exemplo disso).
É claro que é perfeitamente possível a defesa de uma versão do liberalismo económico que não passe pela defesa de uma teoria pura dos mercados, avessa a toda e qualquer intervenção exterior e, por isso, completamente imoral. Saindo do louvor apenas do «bom funcionamento» dos mercados, pode definir-se alguma base moral do que é moralmente aceitável comerciar e defender, em seguida, que todas as transações moralmente aceitáveis se processem livremente, sem regulação do estado nem de entidade nenhuma que não sejam os agentes económicos nelas intervenientes*.É extremamente difícil, porém definir as fronteiras do que é, em termos morais, suficientemente aceitável para poder ser comprado e vendido ou que tipo de transações comerciais devem estar sujeitas apenas à regulação do mercado. Por exemplo, se se aceita pagar muito dinheiro a uma pessoa pelos contactos e pela influência que tem (o valor dos salários de muitos gestores é nisso que assenta), então porque não aceitar o suborno e a corrupção, que são também a compra, num mercado autorregulado, do poder de uma pessoa? A questão dos monopólios é também interessante: uma lei antimonopólio é sempre contra o mercado, até porque, por muito que se afirme que os monopólios implicam o fim da concorrência (e a concorrência seria um motor de aumento da qualidade), o fim último de uma empresa a funcionar num mercado livre com o lucro apenas como telos é conseguir um monopólio.
Este são problemas da definição de mercado livre. Tem sido muitas vezes argumentado que a defesa de um mercado livre é, em última análise, contraditória, porque implica sempre a defesa de uma instância reguladora fora do mercado e não influenciável por ele que assegure o respeito da liberdade de transação e o respeito das regras comerciais. Porque um mercado realmente livre é um mercado em que manda mesmo e só a economia, mas isso é uma abstração do mesmo tipo que «o ser humano anterior à socialização»: é um conceito utilizável em exercícios de reflexão, mas que não corresponde a nada que tenha existido ou possa vir a existir.
Uma solução simples para estes dilemas é assentar que o comércio livre não deve ultrapassar os limites da lei, que a lei em vigor no lugar onde se comercia é a única instância reguladora aceite pelo mercado. Isto é, pelo menos em teoria, aceite pelos liberais, mas essa aceitação das leis vigentes é contraditória com o princípio do mercado livre, porque então devem também aceitar-se, sem protestar, as leis que regulam o mercado, até porque nunca ninguém defendeu a regulação do mercado per se, mas sempre esta regulação se deu para atingir fins políticos, que é outra maneira de dizer que a regulação do mercado se enquadra em programas éticos – pelo menos, quando não é determinada por uma parte poderosa dos participantes no mercado para se protegerem a si próprios**... Ora as forças do mercado não aceitam, precisamente, que as leis sejam como são quando as leis não são como elas as querem e tentam constantemente alterá-las, em função apenas da ideia de que «o mercado não deve ser regulado». O que nos traz de volta ao círculo da definição de limites morais essenciais a que os liberais não querem responder e que podiam resolver-se com a aceitação das leis vigentes, fossem elas quais fossem, porque são todas igualmente inimigas dos mercados – o que os liberais, afinal, não aceitam. E neste círculo giramos.
No fundo, o que não se diz, porque não convém, mas que determina em última análise a pressão do mercado sobre todos os regimes, é que se pretende que não haja mesmo nenhuma lei, nenhuma moral, que limite o funcionamento do mercado. O liberalismo económico acaba sempre por defender, opondo-se a toda a política, que o comércio é o único objetivo aceitável – o que, pelos vistos, é politicamente tão indefensável que nem o mais ferrenho defensor do liberalismo económico ousa admiti-lo às claras…
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* Complica um pouco as coisas o poder julgar-se especificamente a moralidade de uma transação comercial enquanto tipo específico de ação – a compra e a venda de sexo, por exemplo, são passíveis de uma análise moral independente da análise moral da prática de sexo não transacionado. Mas deixemos isto para outra conversa.
** Isto também dava uma conversa à parte: muitos liberais não se coíbem de defender a regulação do mercado, se esta regulação defender os seus interesses – alguém defende comércio livre com o mundo inteiro, que é o mesmo que dizer a desregulação efetiva do comércio?30 de janeiro de 2022
Silêncio
No meu conto «Silêncio» (que apresentei aqui), um músico do sul da Índia chamado Venmani Tirunal Patire conclui que a música de Deus, que ele tinha procurado em vão em várias formas de música religiosa, só pode, afinal, ser o silêncio, porque «[a] única matriz absoluta é uma matriz vazia, a que tudo pode conter». Decidido a «ouvir» o silêncio, Venmani Tirunal Patire suicida-se por inanição numa redoma de pedra o mais insonorizada possível, construída com ele lá dentro.
E então aqui fica um spoiler (mas não faz mal, porque vocês nunca hão de ler os meus contos…) – a história termina assim:
Mais versado nas ciências humanas do que nas ciências da natureza, Venmani Tirunal Patire não sabia que os processos mentais morrem antes das outras funções vitais. Não se consegue, por isso, deixar de ouvir o corpo no minuto ínfimo e extático que antecede a morte. E Venmani Tirunal Patire, tenho a certeza, morreu sem nunca ter ouvido a matriz sonora de Tudo – o mais perfeito de todos os sons, a sinfonia de todas as sinfonias, a música de Deus.
No outro dia, encontrei uma entrevista que o compositor e teórico da música John Cage deu em 1963 a Jack Hirschman na estação de rádio KPFK (podem descarregá-la aqui). Nessa entrevista, Cage conta como descobriu que o silêncio não existe, numa câmara anecoica da Universidade de Harvard, um espaço que é, em princípio, completamente insonorizado — como a redoma de Venmani Tirunal Patire (traduzo eu):
Nessa câmara, embora esperasse não ouvir nada, ouvi dois sons. Por isso, quando saí, perguntei ao engenheiro responsável que sons eram aqueles. Pensei que a câmara não devia estar a funcionar bem. E ele disse: «Descreva-os». E eu descrevi: um era agudo e o outro era grave. E ele disse: «Bem, o agudo era o seu sistema nervoso em funcionamento; e o grave era a circulação do seu sangue». Percebi então que, sem querer, eu produzia constantemente dois sons. Portanto, mesmo permanecendo em silêncio, eu era, em certas circunstâncias, musical.
29 de janeiro de 2022
Vista de uma janela
1.
Na sua recensão do álbum Music for Nine Postcards (1982), de Hiroshi Yoshimura (revista Pitchfork, 15.11.2017), diz Thea Ballard:
Associa-se muitas vezes a música ambiente a uma espécie de interioridade psíquica, mas Yoshimura (…) fez música inspirada em lugares físicos e concebida para existir nesses espaços: para estações de comboio, desfiles de moda, etc.
Em 1982, Music for Nine Postcards foi o primeiro lançamento da série Wave Notation, de Satoshi Ashikawa; Ashikawa e Yoshimura definiram e defenderam aquilo a que chamaram «música ambiental», música que, segundo Ashikawa, «muda o caráter e o significado do espaço, das coisas e das pessoas». «A música», defende ele, «não se destina apenas a ser algo que existe sozinho.»
Por invulgar que possa parecer, a ideia aceita-se com naturalidade: em vez de exprimir uma maneira de sentir o mundo (um mundo interior, digamos assim) ou de constituir ela própria um mundo à parte, sem relação direta com nenhuma realidade, porque não há de a música fazer parte de um pedaço de mundo — imiscuir‑se no meio, ser ambiente?
2.
Segundo Thea Ballard, o álbum «inspirou-se numa série de vistas de janelas». Não consigo, noutras recensões do álbum, confirmar a fenestral inspiração, mas há no álbum um tema chamado «View from my window»:Publiquei uma vez no Facebook uma foto da janela do meu escritório e pedi aos meus amigos que publicassem nos comentários uma foto de uma das suas janelas.
Não houve muita gente disposta a colaborar, mas ofereceram-me, ainda assim, três bonitas janelas.
Tamara Barile mandou‑me uma janela de S. Paulo.
Teresa Silva mandou-me uma janela do Dafundo/Cruz Quebrada.
Fernando Ramalho (Berlau) mandou-me uma janela sonora de Verderena, Barreiro, incluída numa compilação de janelas sonoras.
Maria Serrano mandou-me uma janela de Montreuil.
E J. J. Amarante Mandou-me uma janela dos Olivais, e eplica que a «casa amarela com uma pequena torre
encimada por um telhado de 4 águas é a Bedeteca Municipal, adjacente à
Quinta Pedagógica, da qual se vê o arvoredo e onde as crianças podem fazer pão,
ver vários vegetais a sair da terra em vez de nas prateleiras dos supermercados
e animais de quinta, ovelhas, vacas, cavalos, porcos, aves de capoeira, etc. A
Bedeteca e a Quinta Pedagógica estão na antiga Quinta do
Contador-Mor onde alegadamente o Eça de Queiroz escreveu Os Maias,
no que seria um local de vilegiatura e agora é o Bairro dos Olivais.»
Recolher vistas de janelas não é uma coisa muito original. Há um grupo no Facebook, um site que deu dois livros e um site de repousantes filmes de 10 minutos. Mas não faz mal. Não têm uma vista de uma janela que queiram aqui pôr, por baixo das quatro iniciais? Se sim, mandem-ma por e-mail.
19 de novembro de 2021
É o inverno a chegar [Crónicas de Svendborg #42]
[As fotos têm precisamente um ano. As quadras também. Eu, embora sendo do sul da Europa, não me queixo da escuridão; mas há muita gente daqui que se queixa...]
Está a doca já vazia,tem um outro azul o mar.Chega às quatro o fim do dia:é o inverno a chegar…Caem as folhas e o céutem outro azul, como o mar.Às cinco, já escureceu:é o inverno a chegar…
30 de outubro de 2021
Um pecado não muito original
"Estavam ambos nus, o homem e sua mulher, sem terem vergonha um do outro.
Ora a serpente era o animal mais astuto dos campos que Deus Senhor fizera. Disse à mulher:– Deveras? Deus disse «Não comereis de todas as árvores do jardim»?Respondeu a mulher à serpente:– Do fruto das árvores do jardim podemos comer; mas, do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: «Não comereis dele, nem nele tocareis, para não morrerdes».A serpente disse à mulher:– Não, não morrereis; mas Deus sabe que no dia em que comerdes do fruto, abrir-se-vos-ão os olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.Viu, pois, a mulher que a árvore era boa para comer, que era uma delícia para os olhos, e que era árvore desejável para adquirir sabedoria; tirou dela um fruto e comeu dele; deu também o fruto a comer a seu marido, e ele comeu. E abriram-se os olhos de ambos e deram-se conta de que estavam nus; coseram folhas de figueira, e delas fizeram tangas. Ouviram os passos de Deus Senhor que passeava pelo jardim na brisa do dia; e o homem e a mulher esconderam-se de Deus Senhor entre as árvores do jardim.E Deus Senhor chamou o homem e perguntou-lhe:– Onde estás?E o homem respondeu:– Ouvi a tua voz no jardim, e tive medo, porque estava nu; e escondi-me.Perguntou-lhe Deus:– Quem te revelou que estavas nu? Comeste da árvore de que te mandei não comer?"
22 de outubro de 2021
Televisão: programação de 3 a 9 de outubro de 1965 [Crónicas de Svendborg #41]
Eis a programação da televisão dinamarquesa para a semana de domingo 3 de outubro até sábado 9 de outubro de 1965, tal como aparece na revista Billedbladet de 1 de outubro desse ano.
Eu tinha nessa altura seis anos. Tínhamos televisão lá em casa e tenho a impressão que a programação da televisão portuguesa era muito diferente da dinamarquesa, mas, é claro, não passa disso mesmo – uma impressão. Seria curioso encontrar uma revista com a programação da televisão portuguesa dessa altura (ou de outro país, porque não?), para verificar se era de facto assim tão diferente.
Seja como for, surpreende-me a quantidade de programas informativos e educativos, a qualidade dos programas culturais, e o facto de, numa semana, haver apenas duas séries americanas, os Flintstones e The Defenders, uma série sobre advogados e tribunais que eu creio que nunca passou em Portugal.
DOMINGO21 de outubro de 2021
Da boa educação
Há agora no Facebook uma moda de páginas que fazem perguntas às pessoas: «Destas capitais, quais é que já visitou?», «Qual foi a sua primeira viagem de avião?», etc. Quando uma pessoa nossa amiga responde a uma destas perguntas, vemos a resposta dessa pessoa e sentimo-nos tentados a responder também, muitas vezes até mais para dialogar com a amiga ou o amigo que respondeu, creio eu.
Por um lado, gosto de tudo (a sério!); por outro lado, aprendi com a minha avó, uma mulher muito sábia, que, quando nos convidam para comer, a gente deve mesmo encher a barriga! Mais concretamente, a expressão dela era esta:
«Ó filho, também a gente ficar em favores e ainda por cima passar fome…»
11 de outubro de 2021
Reabilitação com guitarra
[Não é uma história de um lar, desta vez, mas sim uma história do hospital. Também ela acontecida, como quase todas as histórias que aqui conto.]
Reunião para combinar os passos e objetivos seguintes do processo de reabilitação neurológica de Jorge: estão presentes o Jorge, a mulher dele e o pessoal do serviço de reabilitação neurológica que mais diretamente trabalha com ela: uma fisioterapeuta, um ergoterapeuta, uma enfermeira e uma médica. Jorge teve um acidente vascular cerebral, de que resultou paralisia parcial do lado direito do corpo. Depois de um mês de reabilitação intensiva, os progressos são muitos: a afasia expressiva praticamente desapareceu e Jorge já consegue fazer sozinho muitas das suas atividades diárias, embora ainda mexa pouco o braço e a perna direita. Está muito satisfeito com os progressos que tem feito, em grande parte devido ao seu grande empenho na reabilitação, e isso vê-se-lhe bem na expressão do rosto.
«E que tal começar a tentar tocar guitarra outra vez? Não fazer dedilhados, claro está, que isso ainda não é possível, mas só palhetar, para treinar a mão direita», propõe a certa altura o ergoterapeuta. Antes do AVC, Jorge era um exímio guitarrista, além de que compunha e escrevia letras para canções.
A expressão de Jorge altera-se completamente. Fica de repente muito triste.
«Nem pensar nisso», diz ele. «A guitarra nunca pode fazer parte do treino. Nunca. Só lhe volto a tocar quando tiver o controlo perfeito da mão direita… Se alguma vez o recuperar, seja… Senão, nunca mais toco numa guitarra.»
4 de outubro de 2021
Elogio da boa vida em forma de fado
Ele era um bom rapaz, trabalhador,Um operário leal cumprindo o bem.Vint'anos de ilusões brotando em florE uma terna afeição por sua mãe.Mas um dia fatal, os companheirosLevaram-no à taberna onde paravaA malta dos vadios e desordeiros,Dos quais um à guitarra assim cantava:Um fadinho a soluçarFaz de nós afugentarA ideia da própria morte;Mata a dor, mata a tristeza,O fado é bendita reza
Jacques Alfred Van Muyden (1918–1998): Três músicos romanos numa taberna, s. d. Dos desgraçados sem sorte,Tem tal dor e mágoa tanta,Quando canta uma gargantaDe quem vive amargurado,Que o refúgio preferidoP’ra quem viver doloridoEstá na doçura do fadoEsta triste canção foi mau agoiroQue a vida lhe viesse transtornarTomou gosto à taberna, o matadoiro,E em breve deixou de trabalhar (…)
Vejo pás e picaretasNos buracos da Avenida;E vejo a Rua das PretasCada vez mais encardida;Vejo a malta a protestar,Porque o Benfica perdeu;Vejo tudo a trabalhar,Quem não trabalha sou euTrabalho, vai-te embora,Ai de mim, estou tão cansado.Isto de ser calão já é meu fadoFicou escrito no vento este dilema:Nem que me levem para o cinemaP’ra ser galã dos mais catitas,Ser um bijou bonito e fazer fitas...Ai de mim que não consigo fazer coisas tão esquisitas!Oiço gritos, correrias,Quando aparece um emprego.Acordo todos os diasE ainda não fui ao prego.Já dizia a minha mãe:«Filho, não te dê cuidado,Que o teu paizinho tambémTinha nascido cansado».
De corpinho estiraçado,À sombra de uma figueira,Estava o Chico MalhadoMais o Baltazar PintadoDois campeões da lazeira,O Malhado a bocejar,Passando as mãos pelo rosto.Perguntou. «Ó Baltazar,Quem gosta de trabalhar,Não achas que tem mau gosto?»«Camarada mandrião»,Diz-lhe o outro com ripanço,«Tens muita e muita razão,Sou da tua opinião,Bendito seja o descanso!!...Trago um projecto na menteCarrega-se unicamenteNum botão e, de repente,Aparece tudo feito.»Diz o Malhado: «Isso, amigo,É uma grande invenção,Mas escuta o que te digo:Não deves contar comigoP'ra carregar no botão!»
Com dotes colossais p’ra descansar,Se um não gostava nada do trabalho,O outro tinha raiva em trabalhar.E assim andavam neste rodopio,Dois amigos leais da boa vidaE, p’ra não aturarem senhorio,Pernoitavam nos bancos na Avenida.Mas certa noite em que pernoitavam,Um polícia de giro ali passou.Por fim, enquanto os dois se espreguiçavam,O guarda ao Barnabé assim falou:«Diga-me qual a sua profissãoE responda-me já, sem fantasia!»«Pois saiba que trabalho, pois então,Na firma Boavida & Companhia.»«E você?», diz o guarda ao Zé Ramalho,«Diga-me sem mentir, responda já!»«Pois bem, fique sabendo que trabalhoE estou na mesma casa onde este está!»
2 de outubro de 2021
Mais duas histórias de um lar
[São histórias verdadeiras, como as anteriores. A segunda é uma das histórias alegres que, como vos disse, também há nos lares.]
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– Era enfermeira, D. Maria Luísa? Vejo que lava muito bem as mãos, como uma profissional.
– Só aprendi a lavar bem as mãos agora com o COVID. Por acaso, quando era rapariga nova, queria ser enfermeira, mas nunca cheguei a ser. Com 17 anos, comecei a trabalhar num hospital, assim só como ajudante. Tinha um horário das 7 às 12 e das 13 às 17, todos os dias. Limpava, lavava, ia buscar coisas, fazia o que me pediam. Era para ganhar prática, para depois começar a estudar para enfermeira.
E depois, um dia, internaram um rapaz da minha idade. Estava muito doente. Não sei o que é que ele tinha. Nunca tive de tratar dele, nem de lhe dar nada, eram só as enfermeiras que tratavam dela. Mas passava às vezes pela cama dele e parava e ficava a olhar para ele. Acho que ele nem sequer me via, nem via ninguém, de tão mal que estava, coitado. Vi-o morrer. E a morte dele perturbou-me tanto que deixei o trabalho no hospital. E decidi que já não queria ser enfermeira.
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– Tem um minutinho para mim, D. Teresa?
– Claro, D. Amélia! Diga lá.
A D. Teresa é a diretora do lar e a D. Amélia é uma das pessoas que lá vive. Está lá a viver há dois anos, mas tem uma longa relação com o lar, que começou muito antes de a D. Amélia ser a diretora. Primeiro, trabalhou lá como enfermeira os últimos doze anos da sua carreira. Quando se reformou, ajudava no centro de dia dois dias por semana, como voluntária. Depois, passou ela própria a ser utente do centro de dia. Finalmente, quando a saúde se deteriorou ainda mais, foi viver para o lar.
– Estive a falar com a minha filha e com o meu filho, que são os meus herdeiros naturais. Já os pus a par da minha decisão e eles acham muito bem: decidi dar ao lar a minha herança. Não é muito, não pense, mas ajuda. Para atividades extras que não estejam cobertas pelo orçamento normal. Sei lá, festas e espetáculos no lar, passeios, coisas assim. Mas, antes disso, queria já dar um dinheiro que eu tenho no banco e que não me faz falta para fazer uma festa este verão. Um almoço e depois um conjunto a tocar. Gostava que se servisse leitão. O que é que acha?
Cabeça de porco
Uma vez, no Alto Molócuè, em Moçambique, fiz uma cabeça de xara que ninguém conseguiu comer. A receita era boa. Tinha-ma mandado por carta um amigo meu, porque nessa altura ainda não havia telefone no Alto Molócuè, de maneira que nem pensar em e-mail — que ainda era, aliás, uma coisa rara nessa altura… A receita era boa, dizia eu, mas a carne de porco era tão má, tão má, com um sabor tão forte a bicho, que tivemos de deitar fora a cabeça de xara. Uma pena, enfim, depois do trabalho que me deu...
No ano passado, comprámos meio porco e eu, claro, tinha aproveitar a meia cabeça que ali tinha, mas pensei em fazer desta vez um fromage de tête ou pâté de tête, que é uma cabeça de xara francesa. Não há grande diferença no processo nem no aspeto – até porque o aspeto pode variar muito de uma cabeça de xara para a outra e de um pâté de tête para o outro. Os temperos, porém, são diferentes. Aliás, este prato existe em toda a Europa e um pouco por todo o mundo, mas, claro, os ingredientes podem variar de sítio para sítio.
Mais uma excursão, peço desculpa. Voltemos à vaca fria. Ou ao porco frio, seja... Decidi então fazer um fromage de tête, mas apeteceu-me cortar na gordura e à gelatina, e fiz uma coisa praticamente só com carninha. Ficou bem bom, por tal sinal, mas, de aspeto, em vez de pâté de tête, parecia mais rillettes — que não se fazem da cabeça... Com base numa receita do blogue La Bonne Bouffe à Sam, fiz assim:
Agarrei em meia cabeça de porco limpa e escaldada, salguei-a bem salgada e deixei-a um dia com sal no frigorífico. Depois, passei-a por água para lhe tirar o sal que não tinha sido absorvido, e fervi-a com pouca água, só o suficiente para cobrir a cabeça e os temperos que lhe juntei: uma cenoura, uma cebola, um bocado de rama de alho francês, um talo de aipo, um bolbo de funcho, tudo cortado aos bocados grosseiramente, cerca de um decilitro de vinagre (normalmente, põe-se mais, mas o resto da a malta cá de casa não gosta de coisas avinagradas…) e pimenta, uns cravinhos, salsa e três estrelas de anis – ou três anises-estrelados, que deve ser mais correto. Gostei mesmo muito do conspícuo sabor anisado do pâté, se é que conspícuo de pode usar para sabores, mas também percebe que pode desagradar a muita gente. Vocês verão que temperos querem pôr no caldo…Depois é deixar cozer muito tempo, juntando água se se tiver evaporado demasiado líquido. Está pronto quando a carne se separar dos ossos. E pronto, passa-se tudo pelo passador, escolhe-se que carne, gorduras e cartilagens se quer aproveitar, cortam-se aos bocados (o tamanho é ao gosto de cada um) e depois põe-se num recipiente e cobre-se com o caldo de cozer, que, entretanto, se reduziu, fervendo-o, pelo menos para metade do que tinha ficado. Este caldo há-se tornar-se geleia depois de arrefecer umas horas num lugar frio (o frigorífico, creio, para a maior parte das pessoas que me leem). Há muitas receitas em que, em vez de se envolver apenas a carne com geleia, se a comprime com um pano. Também fica ao critério de cada um.
Na Dinamarca, o que corresponde à cabeça de xara e ao fromage de tête é uma coisa que se chama sylte. É também parecido no aspeto com as variantes latinas, mas é normalmente mais avinagrado. Aqui perto, há um talho que faz uma sylte deliciosa, que em 2015 ganhou o prémio de melhor sylte da Dinamarca. A sylte deles, curiosamente, também é só carninha, como o meu pâté.