É lugar-comum — de tão evidente que é — referir-se a influência de Jijé em Jean Giraud. Joseph Gillain, mais conhecido como Jijé, é sem dúvida um dos autores mais importantes de banda desenhada da chamada escola belga e não foi apenas Jean Giraud que o seu traço influenciou. Mas, dos seus muitos discípulos, digamos assim, Jean Giraud, também conhecido como Gir e Mœbius, foi talvez o mais importante — e partilhou com o mestre um dos géneros em que se tornou mais popular, o western: sem dúvida que Blueberry deve muito a Jerry Spring.
O que vos apresento a seguir é um olhar de relance sobre o início da relação entre os dois criadores e o impacto que ela tem em Giraud. Gilles Ratier diz-nos que «[e]m 1958, pouco antes de cumprir o serviço militar[, Jean Giraud] decide conhecer pessoalmente, na companhia dos seus amigos [Jean-Claude] Mézières e [Patrick] Mallet, o desenhador que sempre os inspirou: Jijé. Este último, que vive nessa altura na região de Paris, encoraja calorosamente estes promissores novatos». Giraud diz que este encontro o marcou muito. Jijé tinha em comum com ele ter vivido no México, mas, reconhece Giraud (obviamente) em bota tivessem ambos «fontes autênticas», Jijé tinha-as integrado muito melhor do que ele: «a sua bagagem gráfica era muito maior».
É curioso ver como Jijé relata este encontro e a sua «colaboração» com Giraud (daqui):
Jean [Giraud] veio a minha casa, acompanhado por Mézières e Mallet; deviam ter uns dezoito anos e estudavam, creio eu, nas Arts-Déco ou na Estienne. Pareceram-me muito atenciosos com Mallet, que sofria de surdez. Não me recordo de nada desta visita, a não ser da jovialidade e da descontração de Mézières. Mais tarde — não sei como, nem quando, nem porquê —, foi sobretudo Giraud que voltei a ver. O seu desenho era o único, na época, que tinha valor do ponto de vista técnico. Não me recordo em que circunstâncias começou a trabalhar para mim. Sem dúvida, como aconteceu várias vezes com outros jovens, passou algumas tardes a desenhar e a conversar no atelier... Ofereci-lhe uma colaboração no Jerry Spring. Já não me recordo do verdadeiro motivo; penso que foi com a intenção de lhe ensinar o ofício na prática. Iniciou «La Route de Coronado» com grande dificuldade e imediatamente, sempre com um objetivo prático, passámos a dividir o trabalho: Jijé desenhado a lápis, Giraud passava a tinta, sob a minha direção, e com retoques de Jijé.
Não se deixem confundir pela referência a si próprio na terceira pessoa: é Jijé quem fala. O «mais tarde» a que ele se refere é o reencontro quando Giraud volta da tropa. Agora a perspetiva de Giraud:
Quando voltei da tropa, fui ter com Gillain outra vez […]. Ele achou que já estava em condições de fazer uma banda desenhada com ele: «La Route de Coronado», no Spirou: Joseph desenhava e eu passava a tinta. […] Não era seu «assistente», era seu «aluno». Tendo eu a admiração que tinha por ele, esta proposta foi uma grande emoção da minha vida. Era quase como se ele me tivesse dito: «Queres que eu seja teu pai?» Eu não tinha pai e, coisa maravilhosa!, arranjei um. E um pai no desenho! Trabalhámos assim durante um ano. […]
A minha relação com Gillain é realmente uma relação de pai e filho. Durante o tempo em que trabalhei com ele, ele quis ser meu pai e eu quis ser seu filho. A transferência parental deu-se na esfera artística, assumi com entusiasmo o papel de filho dele no desenho. Foi uma época maravilhosa. Joseph era um pai perfeito. Só me posso congratular pelas lições que ele me deu...
Para os amadores de BD, e em especial para os admiradores de Jijé e de Jean Giraud, como eu, é interessante saber tudo isto, mas não é menos interessante ver como o traço de Giraud evolui desde os seus primeiros westerns «realistas» com a personagem Art Hawell em 1957 até ao início da série Blueberry no Spirou, em 1963, naquela altura ainda como «Fort Navajo» (que veio a ser o nome do primeiro álbum, quando a série foi publicada em álbuns).
Se olharmos para pranchas de Giraud de 1957 e 1958, é fácil ver por que razão, da visita dos jovens Giraud, Mézières e Mallet, Jijé se lembra sobretudo da vivacidade de Mezières; e pode-se imaginar em que termos encorajou o jovem Giraud... A técnica de Giraud é ainda perfeitamente amadora, com falhas básicas em termos de anatomia, proporções e perspetivas etc., mas não deixa de se notar claramente a influência de Jerry Spring.
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Duas pranchas da série Art Hawell, com desenhos de Jean Giraud. A da esquerda é de 1957 e a da direita de 1958. |
Nas pranchas de Jerry Spring passadas a tinta por Giraud, já não se nota nada deste amadorismo — nem podia notar-se, já que o desenho, onde se notavam, nas pranchas acima, as insuficiências de Giraud, é aqui só de Jijé. Se houve também insuficiências na passagem a tinta, Jijé corrigiu-as. Mas foi sem dúvida uma grande escola. Aprende-se muito ao passar a tinta os desenhos de um grande desenhador, sobretudo se se tem já o talento inato que Giraud tinha.
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As páginas 12 e 14 de «La Route de Coronado», um episódio da série Jerry Spring, de Jijé. Desenho de Jijé, tinta de Jean Giraud e Jijé. |
Nas histórias ilustradas apenas por Giraud nesse mesmo ano, notam-se grandes progressos, embora o desenhador não tivesse ainda atingido a sua maturidade artística. A influência de Jijé e do seu Jerry Spring continua a ser evidente.
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Um western de Jean Giraud em 1961. |
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A primeiríssima prancha da famosa série Blueberry. Foi publicada no nº 210 da revista Pilote, a 31.10.1963. Note-se que Giraud já assina Gir. O pseudónimo Mœbius só surgirá em 1974. |
Em 1972, dez anos depois de o jovem Giraud ter colaborado com o seu mestre Jijé na passagem a tinta de algumas pranchas de Jerry Spring, «pai» e «filho» fazem um cadavre exquis em direto na televisão francesa. Nessa altura, Gir tinha já publicado dez volumes da sua famosa série Blueberry, era já um autor de BD famoso e o seu traço já não era em nada menos seguro e elegante que o do seu mestre.
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Nota: Todas as traduções do francês são minhas.