Em francês, para se dizer de algo que é um disparate ou uma coisa sem sentido, pode dizer-se que «
não rima com nada», ou então que é «
sem rima nem razão». Agora, apesar de o francês ser
uma língua em que é muito fácil rimar, tem, ainda assim,
palavras que não rimam.
Como não é tão fácil rimar em português como em francês, devia haver na nossa língua muitas mais palavras que não rimam com nenhumas outras palavras, ou seja, palavras que têm uma sequência de sons a partir da vogal da sílaba tónica que mais nenhuma palavra tem[1]. E é de facto o que acontece. Há muitas!!!; e são, na sua esmagadora maioria, esdrúxulas, uma coisa que não existe em francês[2]. É natural: se têm mais sons desde a tónica até ao fim da palavra, mais possibilidades há de não haver duas sequências de sons iguais.
E antão, que palavras não rimam com nenhumas outras? Vasco Castro Lima diz, em O Mundo Maravilhoso do Soneto, que «Mário de Alencar, em seu dicionário de consonâncias, revela que, em nossa língua, não encontrou rima para 146 palavras e locuções, inclusive nomes próprios. Ao que parece, a relação está incompleta, além do que não foi feita com o necessário cuidado». Pois bem, eu nem metade de 146 consigo encontrar. É certo que só há muito pouco tempo comecei a tomar nota delas. Com mais tempo — e a little help from my friends, que é como quem diz, os leitores deste blogue… —, talvez consiga fazer uma lista tão extensa como a de Mário de Alencar e, quem sabe, mais rigorosa.
Agora, não se faz uma lista assim sem uma importante decisão de base: o que conta como rima? Deve ou não aceitar-se como rima de uma palavra outra palavra dela composta por prefixação, aglutinação ou justaposição? Para dar exemplos, devem aceitar-se como rimas de
célebre,
côncavo e
múltiplo as palavras palavra
arquicélebre,
recôncavo e
submúltiplo? E aceita-se que
estátua rima com
homem-estátua ou
púrpura com
vermelho-púrpura? Parece fácil recusar estas últimas, por se considerar que as palavras
estátua e
púrpura mantêm a sua autonomia no composto; e talvez também
arquicélebre, porque o elemento está disponível para juntar a quaisquer adjetivos como maneira de formar uma espécie de superlativo; mas os prefixos de
recôncavo e
submúltiplo são ou não um caso diferente, já que não se juntam com tanta facilidade a qualquer palavra? E casos como
penúltima e
antepenúltima como rima de
última? E
recâmara,
antecâmara e
sobrecâmara como rimas de
câmara? E se as palavras que rimam com uma palavra relativamente comum, como
bólide, forem apenas obscuros termos técnicos que ninguém conhece e que ninguém nunca usará para fazer um verso (que é aquilo para que as rimas normalmente servem…) como as rimas
alcoólide,
vacuólide ou
hemifólide? E como avaliar se uma palavra é exclusiva de um jargão altamente especializado?
Bom, para já (para me facilitar a vida, sobretudo), não considero as rimas entre uma palavra e outras dela formadas com um prefixo, como nos exemplos do parágrafo anterior, nem palavras técnicas especializadíssimas. Para já, digo bem, talvez venha a rever ou afinar as regras. Ah, e assentemos também, já agora, numa regra de listagem: as palavras com flexão em género (masculino, feminino) e número (singular e plural) sem rima para nenhuma dessas formas são listadas no feminino singular, que é primeira forma por ordem alfabética; se for só a forma feminina que não tem rima, assiná-lo-ei.
Comecemos então pelas esdrúxulas, que são a maior parte, porque, como vimos, as rimas esdrúxulas são muito mais raras. N’Os Lusíadas, só para vos dar um exemplo (espero não me ter enganado a contar), nos 8 816 versos do poema, só 171 têm rimas esdrúxulas, ou seja, um pouco menos de 2% dos versos[3].
É claro, pode distinguir-se entre dois tipos de esdrúxulas: as que chamarei «verdadeiras esdrúxulas», com duas sílabas inegáveis depois da tónica, e as que chamarei «falsas esdrúxulas», que o são estruturalmente, mas que, na prática, são pronunciadas como graves, porque as duas últimas vogais são pronunciadas como um ditongo: prudência, história, mistério, perícia, etc. São muito mais abundantes as rimas com este segundo tipo de palavras. Voltando a’Os Lusíadas, só há nove versos que rimam com «verdadeiras» esdrúxulas. Tendo em conta que três deles são com rimas em -íssima e outros três com rimas em -íssimo, rimas em se faz rimar o sufixo flexional e que, por isso, são tão pobres que se podem quase considerar batota, só há três versos com rima esdrúxula «verdadeira», em que rimam válida, esquálida e pálida[4].
Até agora, encontrei 63 palavras esdrúxulas sem rima, algumas delas tão comuns que ninguém as suspeitaria assim, coitadas, abandonadas...: ápice, apólice, bárbara, bátega, bêbada, bêbeda, bólide, cálice, célebre, célere, cérebro, cócega, côncavo, cúspide, discípula (discípulo tem rima), ébano, efémero, êmbolo, esdrúxula, fátuo, féretro, fígado, fôlego, fórmula, gáspea, hélice, ímpeto, inépcia, lágrima, lâmpada, lêndea, lúbrica, lúgubre, máquina, mármore, máxima, máximo, múltipla, música, músico, náufrago, néscio, óbice, paralelepípedo, pássaro, pétala, pródiga (pródigo tem rima), príncipe, próxima, púlpito, púrpura, pústula, rômbico, rótulo, sábado, século, sólida, têmpera, tímido, tráfego, última, víbora, xícara e zéfiro.
Quanto às outras, só me consigo lembrar de 17: âmbar, cãibra, cesta (cesto tem rima), cinza, glúten, hífen, hímen, mescla, muita, muito, nuvem, órfã, quinze, sempre, sexta, sílex e simples. Mas também deve haver muitas mais. Agradecem-se contribuições, que acrescentarei logo às listas acima.
É de notar que é de sons e não de letras que se trata e que, por isso, pode haver casos em que uma rima pode depender da pronúncia do leitor. Por exemplo, em muitos sotaques de toda a lusofonia, mãe também é uma palavra sem rima — a não ser com o seu próprio diminutivo em português do Brasil, mamãe, uma rima também um pouco batota. Em português europeu standard, porém, mãe rima com todas as palavras terminadas em -em/ém tónico (bem, porém, contém, etc.), tal como -ães rima, naturalmente, com todos os -ens/éns tónicos (por exemplo, capitães ou pães com tens ou parabéns). No meu sotaque lisboeta, que é, neste aspeto desviante relativamente à norma, também rimam riu e rio, tio e partiu, etc., uma coisa que alguns acham muito divertida, outros muito feia…
Na tradição francesa, há por vezes «rima para o olho», quando as palavras que deviam rimar terminam com as mesmas letras, mas em que estas letras se pronunciam de forma diferente, como fusil, cujo L final não se pronuncia, e exil, cujo L final se pronuncia; ou seigneur, cujo R final se pronuncia e monsieur, cujo R final não se pronuncia. Nunca vi este artifício usado em português, mas, a usar-se, poderia resolver o problema de muita (muito, muitas, muitos), que não têm rima, por causa do ditongo nasal [ũj̃], que só ocorre nestas palavras, mas poderiam rimar «para o olho» com circuito e derivados (curto-circuito, etc.), fortuito, gratuito e intuito.
Como as palavras — e as rimas — são como as cerejas, quero aqui notar que algo que poderia corresponder um pouco à «rima para o olho» francesa é a tradição de pôr a rimar palavras com vogais tónicas de timbres diferentes, uma mais aberta que a outra, como em cometa e profeta, testa e cesta, logo e jogo; sedutora e demora, etc., às vezes apesar de diferenciadas pela grafia, como mês e dez, por exemplo. Se, em textos antigos, estas rimas podem dar indicações sobre pronúncias de outras épocas, a verdade é que elas hoje persistem, aceitando-se simplesmente que rimam palavras com vogais tónicas diferentes. Aliás, chega a parecer sofisticado que alguém distinga claramente as vogais de timbre «próximo», como por exemplo nesta quadra de Gabriel de Oliveira para o fado «Senhora do Monte»: Vai lá muita pecadora / Que de arrependida chora / Mas não é Nossa Senhora / Que naquela casa mora»
Outra palavra como muita que têm no meio um ditongo nasal único é cãibra, mas a esta não se lhe consegue arranjar rima «para o olho»...
E depois, há pares de palavras que só rimam entre si e com mais nenhumas. Encontrei 26 desses pares, alguns bastante curiosos, como escrúpulo e lúpulo, estúpida e cúpida, discípulo e manípulo, e lívido e vívido, mas há com certeza muitos mais[5]:
E depois, bem, há palavras com várias rimas sofisticadas e todas do mesmo tipo. Nuvem, por exemplo, só rima com formas de verbos acabados em -uvar, como enviúvem, enluvem e coadjuvem, por exemplo; ítem também só rima com formas verbais, mas rima com muitas (emitem, permitem, etc.). Se se pronunciar [íteme], porém, como às vezes se pronuncia, não rima com mais palavra nenhuma...
Também há palavras que só rimam com nomes próprios, como delével, que, além de rimar com a negação de si próprio, indelével, rima apenas com Pontével ou pícaro, que só rima com Ícaro. Já que falo de nomes, quero referir de passagem que os nomes Cristóvão e Estêvão têm também rimas tão incomuns como órfão ou órgão: só podem ser, respetivamente, formas de verbos em -ovar, como desovam, inovam ou provam e formas de verbos em -ever, como, por exemplo, atrevam, devam ou descrevam — que é o que usa Gabriel de Oliveira (é a segunda vez que aqui parece neste texto!) no fado «Igreja de Santo Estêvão»: «Na igreja de Santo Estêvão / Junto ao cruzeiro do adro / Houve em tempos guitarradas // Não há pincéis que descrevam / Aquele soberbo quadro / Dessas noites bem passadas».
Por fim, quero notar que pode haver rima de sequências de sons maiores que uma palavra: de uma palavra com mais que uma palavra, ou de sequências de palavras com outras sequências de palavras. Pode haver até holorrimas, rimas de versos inteiros, mas o fenómeno é tão raro em português que os dicionários nem registam o termo. Já aqui falei disso uma vez . Uma solução para fazer rimar palavras que não rimam com mais nenhuma palavra pode ser, precisamente, fazê-las rimar com mais que uma palavra. Mas isto também não é fácil. O poema «Berceuse das rimas riquíssimas», de Guilherme de Almeida, é um mostruário deste tipo de rimas .
Durma! A noite suave e grande
anda com passos de lã de
luar, de penugem de nuvem...
Durma! Em seu corpo alvo e nu vem
tocar as asas um ar de
jardins distantes... É tarde.
Durma à sombra dos meus olhos
como de uma árvore e molhe os
seus sonhos nas minhas lágrimas,
não esbrerando um milagre mas
sentindo que o mal e o bem são
uma única e mesma bênção...
Durma! E que a minha voz seja
uma voz que só você já
ouviu em sonhos: a voz que
a Adormecida do Bosque
nunca escutou no seu sono...
Durma! E sonhe que eu não sou no
mundo mais do que um silêncio:
este silêncio que vence o
meu corpo todo e brotou do
seu corpo e que o envolve todo...
Está quase perfeito. O truque de fazer rimar nuvem com «nu vem» quase funciona, mas vem é acentuado, ao contrário da última sílaba de nuvem. Tirando isso, a rima depende aqui muito da pronúncia do leitor. Em português europeu, muito dificilmente lágrimas rima com «milagre mas» e «bem são» com bênção; e seja nunca rima com «você já» (mesmo descontando a mudança de posição do acento tónico) e, nalguns dialetos, «brotou do» não rima com todo, nem «sou no» com sono.
E acho que por agora é tudo. Alguma coisa a gente tem de arranjar para fazer passar o tempo, não é verdade?
P.S.: Não conheço nenhum verdadeiro dicionário de rimas online. Há sites que se autodenominam assim, mas não o são de facto, mas antes ferramentas que organizam por terminação (escrita!) bases de dados com muitas palavras. Não dão conta da acentuação e misturam, por isso, palavras agudas e esdrúxulas (rótula e rotula) e terminações gráficas iguais com sons diferentes (léxico e México), além de que não mostram eventuais rimas com grafias diferentes (opiáceo e prefácio, por exemplo). Conhecendo as suas limitações e sabendo como lidar com eles, podem ser, porém, boas ferramentas. Creio que o melhor que experimentei é este.
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[1] Rima é uma daquelas coisas que muitas pessoas sabem o que é, sem saberem ao certo como se define, mas a definição exata é precisamente «total coincidência de sons de duas palavras a partir da vogal tónica, inclusive». Quer dizer, isto de facto não é bem verdade: chama-se à rima como acabo de a definir rima consoante e há outra rima, chamada soante ou toante, em que coincidem só as vogais tónicas. É uma rima fácil demais, que não tem, a bem dizer, limites nenhuns, pelo que não interessa falar dela aqui….
[2] Esdrúxulas ou proparoxítonas são palavras com o acento na antepenúltima sílaba tónica. Em francês, as palavras têm sempre o acento tónico na última sílaba, a não ser quando terminam em E não acentuado — nesse caso têm o acento na penúltima. Não há, pois, esdrúxulas em francês. Já agora, uma curiosidade: como tenham talvez lido acima, a palavra esdrúxulo, nas suas variações em género e número, é precisamente uma palavra que não rima com mais nenhuma.
[3] Mais concretamente, há dois versos em -águas, -ânia, -égia, e -ópia; três versos em -álida, -éria, -íssima, -íssimo, -ónia, -ónios e -ório; quatro versos em -ábio; seis versos em -ária; oito versos em -ícia(s); nove versos em -ério(s); 11 versos em -ário(s); 20 versos em -ício(s); 38 versos em -ória(s); e 46 versos em -ência.
[4] Canto V, estrofe 39: «Não acabaua, quando ũa figura / Se nos mostra no ar, robusta & valida, / De disforme & grandíssima estatura; / O rosto carregado, a barba esqualida, / Os olhos encouados, & a postura / Medonha & maa, & a cor terrena & palida […]»
[5] Eis aqui a lista de palavras só com uma rima (trabalho em permanente atualização): antitússico e prússico; arfam e garfam; autópsia e biópsia; bólido e sólido; câmara e tâmara; cisne e tisne; cítrico e nítrico; código e pródigo; escrúpulo e lúpulo, estirpe e extirpe; estúpida e cúpida; discípulo e manípulo; frígida e rígida (bom, há Brígida, mas isso…); hórrida e tórrida; húmida e túmida; lívido e vívido (lívida tem uma terceira rima, dívida); lápide e cápide (uma palavra rara. mas registada nos dicionários. que refere uma taça usada em sacrifícios e que fica, por isso, muito bem a rimar com lápide); mandíbula e fíbula; máscula e báscula; másculo e básculo (note-se que báscula e básculo são objetos muito diferentes...), nádega e tádega (uma bonita flor); órfão e morfam; órgão e outorgam; ósculo e flósculo (cada uma das florzinhas de um capítulo, que romântica rima!), pênsil e estêncil (os dicionários registam assim, mas eu digo setêncil); público e repúblico (um estranho adjetivo que nunca vi nem ouvi, mas de significado transparente e que os dicionários acolhem); sólida e apólida (uma forma muito incomum de dizer «apátrida» que os dicionários registam); timbro e zimbro; trémula e gémula (outra palavra bastante desconhecida que os dicionários registam), e úbere e púbere.