22/02/24

Mangas e tangas: mais uma conversa sobre a origem de termos de calão

 

Mangas…

No português que eu falo (no meu dialeto e no meu socioleto, se assim o preferirem), mangas, nome masculino de dois números, significa «malandro», «atrevido», «pinta(s)», «moinante». É natural que, a partir deste significado inicial, tenha evoluído para significar apenas «indivíduo, fulano, sujeito», sem mais, como o propõe o dicionário Porto Editora em linha. É pena que falte à entrada o outro significado que eu referi; e surpreende-me que se considere a palavra de dois géneros, a não ser que seja coisa recente: nunca na minha vida ouvi nada como «A Fernanda é uma ganda mangas!» ou «A Paula? Ui, essa mangas…». Mas é louvável que a entrada mangas exista, já que os outros dicionários a que tenho acesso simplesmente não registam o termo. 

O Porto Editora propõe como etimologia a palavra portuguesa manga, simplesmente, acrescentada de um S. Não é que seja etimologia mal pensada, já que o aparente plural de nomes é construção prolífica, no registo a que mangas pertence, para designar pessoas específicas ou tipos de pessoas. E as partes do vestuário ou do corpo são, precisamente. material comum para essas construções. Além do sinistro ditador que todos conhecem como «o Botas», muitos de vocês deverão ter topado, ao longo da vida, com alcunhas como «o Pantufas» ou «o Calcinhas», ou «o Vidrinhos», (para alguém que usasse óculos), «o Mãozinhas», «o Pezinhos», «o Orelhas» ou «o Monas» (se se achasse que sobressaíam na pessoa algumas partes do corpo) ou «o Barbas», «o Bigodes» ou «o Patilhas» (para referir quem não rapasse o pelo em toda a face ou parte dela). Quanto a nomes genéricos, diz-se, por exemplo, «um conas» ou «um coninhas» de alguém com pouco expediente — atado, como também se diz —, que facilmente se deixe embaraçar, enganar ou amedrontar, ou «um tretas» de alguém que cultive a mentira ou o exagero. Talvez uma alcunha «o Mangas», devida a qualquer particularidade do vestuário de um determinado moinante, tenha tido tanta fortuna que, de designar um indivíduo, tenha passado a designar o seu tipo. 

Mas há outra hipótese etimológica que me parece possível, e talvez até mais lógica, embora não me atreva a dá-la como quase certa — que é o mais que se pode fazer quando se fala destas coisas —, por falta de informação sobre as datas de primeiras atestações de mangas com este significado em português e por desconhecer por que vias possa ter chegado a Portugal o termo que proponho: o grego μάγκας, pronunciado [máŋgas].

A definição de um dicionário grego coincide em grande parte com a definição que eu gostaria de ver nos dicionário portugueses. (Notem que a palavra mangas, na definição que se segue, é a palavra mangas em grego, não em português. A tradução é do senhor Google, eu apenas a tentei tornar mais elegante.) 

Mangas: pessoa do povo caracterizada por excesso de autoconfiança ou arrogância, e com uma aparência ou um comportamento (vestuário, movimentos, vocabulário, tom de voz, etc.) diferente do habitual: Stavrakas, o tipo que representa o malandro nas histórias de Karagiozis [teatro de sombras], é um mangas e um vadio. || (por extensão) tipo de homem comum que se porta como um rapazola e se arma em forte: Aqueles estão armados em mangas e viajam sem cinto de segurança.[1] 

Mas o mais interessante é que, na origem, mangas é um tipo histórico específico, o tal que Stavrakas representa no teatro de sombras. E é essa designação dos membros de um grupo social de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX que está na origem das aceções posteriores; e é essa aceção primeira que eu penso que pode ter chegado a Portugal no princípio do século XX, como chegou a outros países. Os mangas estão intimamente ligados à cultura do rebético, a canção urbana grega surgida na segunda metade do século XIX e eram facilmente reconhecíveis pela sua indumentária: chapéu de feltro, casaco vestido só numa manga, longa faixa à cintura, calça riscada e sapato de bico[2]. Se aceitarmos que o rebético está para Atenas ou Salónica como o fado para Lisboa, o tango para Buenos Aires, ou a valse musette para Paris, então o mangas é o faia, o tanguero e o marlou.

No fundo, o que eu proponho é que se tenha passado com o grego mangas o mesmo que, por exemplo, se passou na mesma altura com o francês apache, que, começando por designar um grupo social específico da ralé parisiense, ganhou depois um sentido genérico e extravasou do francês para outras línguas, entre as quais o português (conheci o termo pela minha avó, nascida em 1919, e há até uma valsa portuguesa de 1915 com esse nome [3]). Como já disse, não sei como é que a designação pode ter chegado a Portugal (através de marinheiros?), mas parece-me certo que a fama dos mangas não se ficou pela Grécia.

Deixo-vos, para terminar as páginas sobre mangas na Wikipédia em inglês e em espanhol e um bonito rebético sobre os mangas de Votanikós, um bairro de Atenas.

Ζαχαριασ Κασιματησ: Ο Μαγκασ του Βοτανικου, 1934, (Zaharias Kasimatis, “Mangas de Votanikós”)


… e tangas

O dicionário Porto Editora em linha regista a expressão «coloquial» dar tanga a (alguém) com o significado de «divertir-se à custa de (alguém)» e o verbo «popular» tanguear com o significado de «troçar de (alguém) com aparente seriedade; dar tanga a». É uma definição que não me satisfaz, porque a tanga (de conversa) não existe só na expressão dar tanga, mas é antes um nome relativamente livre que se pode usar em frases como «Ele está na tanga, não vás nisso.», «Ena, aquele gajo é só tangas», «Grande tanga que ela te pregou!», etc. E, em vez de «troça», significa também (ou sobretudo) «patranha, ardil, intrujice» ou «conversa de chacha». Tanguear é «enganar, aldrabar, baratinar» — dar tanga, sim, senhor, mas com este significado. Já o dicionário da Academia de Ciência de Lisboa acrescenta este significado de «mentira» na expressão dar uma tanga, mas, como o Porto Editora, não tem para esta tanga uma entrada separada, nem lhe encontra uma etimologia diferente da palavra que eu creio apenas convergente e que refere uma diminuta peça de roupa[4].

Melhor está o Priberam, que separa a tanga-mentira da tanga-calção e a define como termo «informal» que significa «história fictícia e enganosa (ex.: isso é tudo uma grande tanga). = aldrabice, mentira, peta, treta.» Tenho muitas dúvidas, porém, que se deva juntar, como o Priberam o faz, esta tanga com a tanga que refere uma «moeda asiática de pequeno valor, usada na antiga Índia Portuguesa» e que vem de uma língua indiana (o sânscrito tangka, segundo o Priberam e o Porto Editora, ou o concani tang, segundo o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa). 

Parece-me muito difícil explicar como se passa da peça de vestuário a mentira (mas percebe-se bem estar/ficar/deixar alguém de tanga no sentido de «miserável, sem vintém»). Já a deriva semântica da moeda para a converseta parece fazer mais sentido (dar tanga como «dar algo [conversa, neste caso] sem valor»), mas há pelo menos uma coisa fundamental que fica por explicar com esta etimologia: a coincidência com o calão de Buenos Aires, o lunfardo. Acho provável (mais uma vez, sem ter certeza nenhuma) que esta tanga tenha uma origem diferente da tanga-peça de vestuário e da tanga-moeda indiana. Como já aqui referi uma vez, «o calão português partilha com o calão espanhol vários termos, nomeadamente os oriundos do caló (que dá a palavra calão, aliás) e tem também vários termos em comum com o lunfardo rioplatense». Não encontro referência a tanga no sentido de «mentira» nem de «troça» no dicionário da Real Academia Espanhola, mas encontro-a em dicionários online de lunfardo, entre os quais o do site Todo Tango. Eis as várias aceções de tanga em lunfardo (escuso-me aqui de traduzir):

Tanga (lunf.) Arreglo de un asunto; artilugio para obtener ventajas; componenda; negociado; estratagema // empleado de parque de diversiones que simula ser público y participa de los juegos acertando, para animar a otros a también hacerlo// (pop.) bíkini muy reducida en la pieza inferior// (delinc.) ayudante de un estafador o de un ladrón carterista// estafa, fraude; ventaja que se obtiene mediante ardid o engaño. ir de tanga (delinc.) Acompañar a un punguista en el momento que comete sustraccíones.  

Como se vê, a definição de tanga coincide com a que proponho em português e acrescenta-lhe ainda outros significados que tanto podem derivar da aceção de «engano, ardil» como, pelo contrário, estar na sua origem: os de «falso membro do público dos parques de diversões» e de «ajudante de vigarista ou carteirista». 

Agora, tendo em conta a maior riqueza semântica de tanga no calão de Buenos Aires que no calão português[5], não será de supor que o termo é originário do lunfardo e que está antes diretamente relacionado com tango, que é, na origem, música dos bairros populares, e com os tangueros, que são — ou foram — a malevaje (malandragem) de Buenos Aires? Não é por acaso que lunfardo, o nome do calão local, significa «ladrão». Note-se que, em português, tanguista tanto significa «mentiroso» como «bailarino de tango» e tanguear tanto quer dizer «dançar o tango» como «endrominar».

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Notas

[1] O dicionário grego acrescenta uma segunda aceção, que corresponde ao português barra, e que mangas não tem em português: «uma pessoa experiente com competências reconhecidas e aplaudidas»: Ele é mangas no seu trabalho.

[2] É importante referir aqui um outro grupo de rufias gregos, os koutsavakia (singular koutsavaki). Embora muitas vezes se apresente mangas como sinónimo de koutsavaki, há quem distinga os dois grupos e afirme que, com rigor, a descrição da estranha indumentária da malandragem urbana acima descrita é dos koutsavakia, que são imediatamente anteriores aos mangas e estão na sua origem. Ver por exemplo este artigo, ilustrado com «talvez a única foto de um autêntico koutsavaki [em 1880]» (em grego, terão de usar um tradutor automático)  ou este (em inglês). A verdade é que, nas fotos de ambientes de rebético dos anos 1930, os mangas parecem antes… faias!

[3] Esta valsa foi suficientemente conhecida para ter sido regravada e reeditada nos anos 70 ou 80, num disco da série Melodias de Sempre, pelo qual a conheci. Não deixa de ser curioso que a pessoa que carregou a música para o YouTube confunda os apaches, rufiões da época, com os índios apaches (embora o nome da tribo esteja, ao que parece, na origem do nome do gangue). Obviamente, o termo depressa foi esquecido em português.

[4] Curiosamente, os dicionários não se entendem sobre a origem da tanga-vestuário: o Porto Editora, o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, o Priberam, o Michaelis e o Aulete (ou seja, os dicionários portugueses) dão como étimo o quimbundo (n)ganga, «pano», mas outros dicionários propõem antes o tupi tanga, «tanga» — é o caso do Dicionário da Real Academia Espanhola e do alemão Duden.

[5] Alguns acusar-me-ão de estar a aplicar às línguas um princípio da genética evolutiva, segundo o qual a diversidade genética é maior na zona de origem de uma espécie, mas juro que não era essa a minha ideia. Se bem que, agora que falam nisso, não deixa de ser uma ideia a explorar… (Mais uma tanga, dizem vocês e provavelmente com toda a razão…)

[Ambas as imagens da Wikipedia, autores desconhecidos e domínio público.]






09/02/24

Phrasal verbs, uma coisa inglesa (?)

 

[Este texto não faz sentido para quem não tenha conhecimentos mínimos de inglês, posto que é, precisamente, sobre algum vocabulário dessa língua. Ponho, no entanto, os significados em português das várias expressões e frases, para o caso de o leitor não as conhecer todas.]

Dizia-me há pouco tempo um amigo que uma das coisas que achava mais difíceis em inglês — e que acreditava ser uma das riquezas da língua — eram os chamados phrasal verbs, as combinações de verbos com preposições ou advérbios cujo significado não se pode deduzir do significado dos elementos que as compõem, como put out («apagar», «incomodar», «disponibilizar», «editar», «emitir», «produzir» e mais), put up with («suportar», «aguentar», «aturar») ou put off («adiar», «desencorajar», «desagradar» e mais) — que não se podem deduzir do significado de put, que basicamente significa «pôr». Mas serão os phrasal verbs algo assim tão especial e algo tão idiossincraticamente inglês?  

Quero notar, antes de mais, que phrasal verbs é uma designação muito típica da tradição de ensino de inglês como língua segunda e não tanto da literatura científica, embora haja trabalhos de linguística que abordem o conceito. O dicionário Cambridge define phrasal verb como «um sintagma composto por um verbo com uma preposição ou advérbio ou ambos, cujo significado é diferente do significado das partes separadamente» e dá como exemplos pay for[1] («pagar (por)»), work out («calcular», «resolver», «elaborar», «esgotar», «fazer exercício» e mais) e make up («inventar», «formar», «constituir», «maquilhar», «recuperar», «fazer as pazes» e mais). 

Na secção de gramática que se segue à definição, no entanto, o Cambridge desdiz-se e explica mais em pormenor que (como na sua própria definição acima) a designação se usa muitas vezes para três tipos diferentes de «verbos polilexicais», mas que, com rigor, apenas devia referir um desses tipos, os verbos polilexicais compostos de um verbo principal e uma partícula adverbial, as mais comuns das quais são around, away, down, in, off, on, out, over, round e up[2]. Os verbos preposicionais que selecionam obrigatoriamente uma preposição que os ligue a um objeto não seriam, pois, phrasal verbs em sentido estrito[3]. Exemplos destes «falsos» phrasal verbs são (verbos a itálico e negrito; preposições a itálico e negrito e sublinhadas; e objetos só em itálico) break into (a house), «assaltar (uma casa)»; cope with (a difficult situation), «enfrentar/lidar com (uma situação difícil)»; deal with (a problem), «lidar com (um problema)»; depend on, «depender de», do without, «passar sem», look after (a child), «tomar conta de (uma criança»); look at, «olhar para», look for, «procurar»; look forward to, «ansiar por, aguardar com expetativa», etc. Nestes casos, a preposição vem forçosamente antes do objeto e nunca depois. Tem de se dizer 

Could you look after my bag while I go and buy the tickets? («Pode tomar-me conta da mala enquanto eu vou ali comprar os bilhetes?»)

e nunca

*Could you look my bag after …,

ao passo que os «verdadeiros» phrasal verbs podem ter ou não um objeto e a partícula não verbal do verbo polilexical pode vir antes ou depois do objeto[3]. Eis alguns exemplos, também do Dicionário Cambridge:

She brought up three kids all alone («Criou três filhos sozinha») 

ou 

I brought my children up to be polite («Ensinei os meus filhos a serem bem-educados»).

Normalmente, quando o objeto é longo, vem depois da partícula não verbal:

Many couples do not want to take on the responsibility of bringing up a large family of three or four children. («Muitos casais não querem assumir a responsabilidade de criar uma grande família de três ou quatro filhos»)

Há outras propostas que, seguindo esta ideia, dão definições mais completas e mais restritas de phrasal verb, algumas delas tão completas e tão restritas que excluem da definição uma grande parte das expressões verbais que costumam figurar nas listas comuns destas expressões[4]. A questão não é, pois, nada simples e não tenho vontade nem competência para a desenvolver aqui. Muitas listas de phrasal verbs que por aí circulam, porém, misturam os legítimos e os bastardos sem grande problema — e aceitemos que está muito bem assim…

Agora, o que me parece interessante nas definições mais rigorosas aqui referidas é que são essencialmente morfossintáticas e não semânticas — exceto a definição inicial de que o significado de um phrasal verb «é diferente do significado das partes separadamente». Esta questão interessa-me e quero analisá-la aqui um pouco mais em pormenor, até porque muitos dos exemplos que o Cambridge dá de phrasal verbs não encaixam bem nesta definição. 

Antes de mais quero constatar que o significado de muitos phrasal verbs em sentido estrito decorre muito diretamente do significado do verbo ou do verbo e da preposição ou advérbio que o constitui — mesmo quando isso não possibilita que se os compreenda sem os ter aprendido antes. Mas mesmo esta compreensão é muitas vezes possível. É certo que give up não decorre do sentido de give nem de up, que make out não decorre de make nem de out, mas come out, em qualquer um dos seus sentidos, decorre dos significados de come e de out. O mesmo em relação a go ahead, go after (something), go against (somebody), por exemplo. Take off, no sentido de «despir» decorre também muito naturalmente dos significados dos dois constituintes da expressão – e até no sentido de «descolar» se pode ver uma relação clara do significado da expressão com o significado dos seus elementos constitutivos. Também é duvidoso que o significado de break down, tanto na aceção de «avariar-se» como na aceção de «decompor(-se)», não se possa deduzir do significado dos seus elementos. Na expressão look forward to, embora não se possa deduzir o seu significado dos constituintes, como a definição acima apresentada prescreve, pode claramente ver-se como o seu significado se forma a partir dos seus constituintes. E há muitos mais exemplos. 

A questão é também, obviamente, definir o significado de maneira suficientemente abstrata. Os phrasal verbs nasceram muito provavelmente de um significado inicial abstrato dos elementos que os compõem. Isto, aplica-se, aliás, a todos os sentidos «desviantes» de qualquer verbo: uma definição de comer como «ingerir alimentos sólidos» não explica os muitos usos da palavra, mas uma definição mais abstrata como «ser recipiente de» já pode explicar alguns deles. Se se usar antes uma ideia ainda mais abstrata de incorporação, que implique a posse daquilo de que se é recipiente, mais significados podem ainda ser explicados. Mas isto também não é questão que queira tratar de passagem aqui no meio de um texto sobre phrasal verbs… Voltemos a estes.

Muitas vezes, as partículas não verbais dos phrasal verbs parecem funcionar como marcadores de aspeto e modo de processo: não é o significado que muda, é a «temporalidade» (em sentido lato) que se altera[5]. Alguns deles, sobretudo muitos com up, marcam uma conclusão da ação (perfetividade) e outros, com on, marcam a sua continuação (imperfetividade). Poder-se-ia até argumentar que, em certas situações, certas posposições/advérbios parecem funcionar antes como partícula aspetuais/temporais independentes, livres de se aplicar a certos verbos: como se diz go on ou move on, «continuar, prosseguir»,  também se pode construir livremente jam on, «continuar a improvisar [música]» ou dream on, «continuar a sonhar» e muito mais seguindo este modelo.  Também a partícula around pode ser uma marca iterativa que parece ser independente, usando-se para significar que a ação se repete muitas vezes, normalmente com muitas pessoas, como em call around, «telefonar a um grupo de amigos, clientes, etc., (conforme a situação)», ou sleep around, «ir para a cama com muita gente». É certo que estas palavras não se podem usar livremente com todos os verbos e haveria que definir com rigor quando podem ser usadas desta forma, mas isso é trabalho para especialistas da língua inglesa — uma coisa que eu não sou. 

Até agora, falei só do inglês. Mas é importante notar que, com algumas diferenças estruturais e sem um nome específico, existem também phrasal verbs nas outras línguas germânicas. O dinamarquês, que é a única destas línguas que conheço bem, tem muitos, provavelmente mais que o inglês. Não me vou aqui, porém, adiantar na comparação dos phrasal verbs do inglês com os do dinamarquês ou de outras línguas germânicas que a grande maioria dos leitores do blogue não conhece, por interessante que essa comparação possa ser. Mas podemos assentar nisto: por muito que normalmente só se fale de phrasal verbs quando se fala do inglês, eles estão longe de existir só nesta língua.

Nas línguas latinas, tudo é um bocado diferente. As preposições colaram-se aos verbos ainda em latim e nem nos damos conta de que apreender (e aprender), compreender, depreender e empreender[6] são, originalmente, um mesmo verbo com várias preposições, como admitir, cometer, demitirpermitir, ou consistir, desistir, existir, insistir ou persistir — e dezenas de outros casos. Note-se que o mesmo processo de formação existe nas línguas germânicas, em que a preposição se colou ao verbo que a segue. Nalguns casos, como no inglês outbargain («ficar a ganhar numa negociação ou num contrato») parecerá óbvio aos falantes da língua que se trata de bargain («negociar») antecedido de out, mas ninguém pensa em understand («compreender») como o verbo stand (preposicionado — até porque stand under tem outro significado («erguer-se, estar situado debaixo de»)  — e, evidentemente, estes verbos não são considerados phrasal verbs[7]

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«Comer fora»
James Tissot: La multiplication des pains («A multiplicação dos pães»), 1886-1896. Brooklyn Museum, daqui.
Há, porém, casos de verbos nas línguas latinas que parecem ter as mesmas características que alguns dos ditos phrasal verbs ingleses, na sua definição mais alargada e essencialmente semântica: verbo + partícula => significado não inferível dos dois elementos. Alguns têm até uma construção exatamente igual. Eat out, «comer fora», por exemplo, é igual em inglês, português, castelhano e italiano[8] e count on (something or someone), «contar com (alguma coisa ou alguém)», tem exatamente a mesma forma em francês, compter sur (quelque chose ou quelqu'un), e italiano, contare su (qualcosa ou qualcuno), e formas muito semelhantes em português e castelhano. É claro, pode considerar-se exagerado incluir verbos como eat out nas listas dos phrasal verbs, por muito que ele lá se encontre. A definição de phrasal verb é, como se viu, algo vaga, mas trata-se aqui de mais um exemplo de um verbo com um advérbio cujo sentido decorre bastante diretamente do sentido individual dos elementos que o compõem. É certo que eat out não se refere normalmente a jantar no quintal ou na rua (embora em certas situações até possa referir isso, situações em que, presumo, os dois elementos não são já considerados um phrasal verb…), mas é de comer fora do espaço definido como seu ou como habitual. Se considerarmos eat out um phrasal verb, então comer fora também o é. 

Mas há outros casos mais curiosos, a que parece poder aplicar-se uma definição mais restrita de phrasal verb — desde que não se a limite à presença de um advérbio: estar para («ter vontade de», passar por («ser tomado por»), levar com («ser atingido por; ser alvo/vítima de; ter de aturar, aguentar»), olhar por («vigiar, tomar conta de») ou sair a («herdar características dos progenitores»), para dar alguns exemplos óbvios, mas há mais.   Vejamos o caso de dar, que é, creio, o mais prolífico em português. Assim, (ir/vir) dar a é «conduzir a», dar com é «encontrar, descobrir», dar em é «tornar-se» (restrito a predicações de caráter negativo), dar para pode significar «servir para», «ser suficiente para» ou «ser possível», dar + dativo + para indica o surgimento de uma vontade, estado de espírito ou hábito e dar por significa «notar, aperceber-se de» ou «considerar». 

Mas, mesmo que nos atenhamos à definição restrita de phrasal verb com uma partícula adverbial, ainda somos capazes de encontrar casos em português, além do já referido comer fora: por exemplo (mas há mais), deitar/mandar abaixo, «derrubar» ou «dizer mal de»; ir atrás de, «acreditar em alguém; obedecer a alguém», andar atrás de, «tentar seduzir»; ficar atrás de, «ser de qualidade inferior»; andar em cima de, «vigiar de perto» ou «perseguir, controlar insistente e abusivamente», estar/ficar por dentro, «ficar a saber/saber de algo»; ir dentro, «ser preso», botar/deitar/mandar fora, «desfazer-se de», ir/chegar longe, «ter sucesso»; e ir-se abaixo, «perder forças, físicas ou psíquicas», «deixar de trabalhar (um motor)».

Conclusões? Não há. Isto era mais a gente a conversar como quem conversa à mesa do café, sem preocupações de chegar a algo de muito definitivo… A não ser que os tais phrasal verbs ingleses não parecem ser, afinal, nada de tão idiossincrático como os querem, às vezes, fazer parecer…

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Eis um link para uma lista abrangente de phrasal verbs, uma das muitas que se encontram na Internet.: 

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[1] Se vos parece estranho que pay for seja exemplo de phrasal verb, agradar-vos-á saber que pay for não faz parte da lista de phrasal verbs da entrada pay do dicionário Cambridge. Note-se que a minha intenção não é de modo algum apontar as incoerências deste dicionário, que escolhi ao acaso, mas antes apontar as naturais incoerências de um conceito vago como phrasal verb

[2] A categoria advérbio é difícil de definir. De facto, não conheço nenhuma definição abrangente, a não ser talvez «palavra invariável que não introduza um sintagma» e, mesmo essa, é pouco clara. Alguns dos advérbios que formam phrasal verbs têm as mesma forma que preposições: around, away, down, in, off, on, out, over, round e up (embora a designação de down, off e up como preposições seja muito discutível). 

Outra questão é como definir verbos polilexicais. Se se considerar polilexical um verbo quando seleciona como complemento um sintagma preposicional, o mundo está cheio de verbos polilexicais… Por exemplo: olhar, ao contrário de ver, seleciona sempre um complemento introduzido por uma preposição — embora às vezes ele não seja expresso. Há alguma diferença fundamental das sequências look after a bag e look at a bag, por exemplo, relativamente às sequências correspondentes em português, olhar por uma mala e olhar para uma mala? Devem considerar-se look at/olhar para e look after/olhar por verbos polilexicais? 

[3] Quando o objeto é pronominalizado, porém, vem sempre depois do verbo e antes da preposição/advérbio.

I’ve made some copies. Would you like me to hand them out? («Tirei cópias. Quer que as distribua?»)

e não 

*Would you like me to hand out them?

[4] Numa tese de mestrado de 2004, em que analisa os phrasal verbs em inglês, dinamarquês e alemão, Elisabeth Ingeborg Kaalund lista «as características definidoras de um phrasal verb que se aplicam aos três idiomas», que incluem, entre outras, a possibilidade de nominalização, de passivização e de mobilidade da partícula adverbial, podendo esta ser colocada à direita do verbo (uma questão também referida, como indiquei, na definição mais estrita do dicionário Cambridge). É uma definição de muito maior rigor e que reduz muito o número de phrasal verbs. Redu-lo tanto que, segundo esta definição, algumas combinações normalmente consideradas phrasal verbs não o seriam de facto. 

Vejamos a questão da nominalização. Se analisarmos alguns exemplos de phrasal verbs referidos neste texto, é certo que de bring up se pode fazer upbringing e de put out se pode fazer output apenas num dos muitos sentidos da expressão, tal como make-up só se refere a maquilhagem e nunca a invenção. De make up não se faz *upmaking, nem de take on se faz *ontaking (embora existam intake e outtake). 

Além disso, a possibilidade de passivização não parece ser um bom teste do facto de o phrasal verb ter as mesmas propriedades que um verbo simples, pelo menos em inglês: há verbos, como look after, que embora não sendo, como vimos, «verdadeiros» phrasal verbs, admitem passivização (frase daqui): 

There are a number of reasons why a child may be looked after by the local authority. 

A tese de Kaalund pode ser consultada em linha: Kaalund, E. I. (2004). Phrasal Verbs in English: a comparison with German and Danish. [Candidatus, Copenhagen Business School].   

[5] Uma vez, li num fórum da internet um comentário de alguém que considerava que os chamados prefixos aspetuais das línguas eslavas eram como alguns phrasal verbs. Para explicar de uma forma muito simplificada o que são estes prefixos, dou-vos um exemplo do russo: há dois verbos  читать e прочитать, pronunciados [tchitat] e [pratchitat], para dizer «ler» (muitas vezes, trata-se da mesma forma sem prefixo e com prefixo, como neste exemplo, mas nem sempre), conforme se fale de ocorrência de leitura sem referir o seu completamento («ontem, li/estive a ler depois do jantar») ou completamente de leitura («ontem, li um texto sobre Amelia Earhart»). Ora, de facto, muitas vezes a partícula up do inglês funciona como uma marca de perfectividade, ou seja, completamento: he didn’t eat entende-se como «ele não comeu», ao passo que he didn’t eat up não significa que não tenha comido, mas que não acabou de comer.

[6] Em surpreender, o sur- é o sobre francês, língua de que nos vem a palavra. 

[7] Em dinamarquês, embora um verbo com uma preposição fixa muitas vezes signifique uma coisa completamente diferente do mesmo verbo com uma posposição solta (påtage, «assumir, comprometer-se» vs  tage på, «engordar», ou opstå, «surgir» vs stå op, «levantar-se»), há também muitos verbos que podem ter uma preposição anteposta ao verbo e colada a ele ou a mesma preposição solta depois do verbo sem mudar de significado: underskrive ou skrive under significam ambos «assinar», medtage ou tage med signficam ambos «levar», etc. — podia aqui dar muitos mais exemplos. O único caso de que agora me consigo lembrar nas línguas latinas é o de sobrevoar em português (ou de survoler em francês, igual), que também pode ocorrer como voar sobre

Estamos a sobrevoar Paris 

ou

Estamos a voar sobre Paris

significam a mesma coisa. 

[8] Já em francês não se pode dizer *manger dehors com o mesmo significado.


05/02/24

Canções que referem outras canções #5: “Baykoca Destanı” e “Cirrus Minor”

 

Esta referência de uma canção a outra canção é um bocado diferente das anteriores, porque não é feita em palavras de pessoas, mas sim em canto de pássaro. O tema de um dos álbuns mais famosos do chamado rock anatoliano, 2023, de Barış Manço (1975), remete, a 1'02'', para um tema de tema de Roger Waters, “Cirrus Minor”, do álbum Soundtrack From The Film "More", dos Pink Floyd (1968): são os mesmos passarinhos. Parece que as gravações usadas foram tiradas de um disco de efeitos sonoros.

Tirando os passarinhos, que servem para afirmar a linhagem psicadélica de Manço, as duas canções não têm nada em comum, nem musical nem liricamente. “Cirrus Minor” é claramente uma canção bucólica. Nem o psicadelismo sideral do último terceto lhe consegue arranhar o bucolismo. 

In a churchyard by a river

Lazing in the haze of midday 

Laughing in the grasses and the graze 


Yellow bird you are not long in 

Singing and in flying on 

Laughing and in leaving 


Willow weeping in the water 

Waving to the river daughters 

Swaying in the ripples and the reeds

 

On a trip to Cirrus Minor 

Saw a crater in the sun 

A thousand miles of moonlight later

 

“Baykoca Destanı” é claramente uma canção épica. Aliás, destanı significa «epopeia», precisamente. É “A Saga de Baykoca”, algo assim. É claro, eu não falo turco e os programas de tradução automática veem-se aflitos para traduzir coisas destas. Não se fiem na minha tradução de um excerto da letra, que aparece no fim deste texto. 

Vejo que a canção fala de Bayoca e de Banu Çiçek, talvez princesa, que espera por ele, mas ele não volta. Baykoca poderia ser Bayhoca Bey, sobrinho do fundador do império otomano, Osmã I. Bayoca Bey morreu aos 16 anos na batalha de Hamzabey, a primeira grande batalha otomana, ainda antes da fundação do império. Banu Çiçek poderia ser uma personagem lendária do épico Livro de Dede Korkut. Se assim for, são personagens de mundos diferentes. pelo que não faço ideia de como se juntam — se se juntam — nesta canção. Mas talvez não, talvez seja eu a delirar. O que são, com certeza, é personagens de mundos que desconheço completamente. O que não importa muito ou mesmo nada para desfrutar da canção. 

Pensavas que o rufar dos também era a música de uma boda? 

A bandeira a esvoaçar, pensaste que era a noiva? 

Pensavas que o combate com rifles e canhões era só festa, diversão? (…) 


Navios no Mar Negro. 

A artilharia ribomba nas montanhas, gemem a terra e o céu (…) 


Tanto tempo esperou Banu Çiçek pelo regresso de Baykoca. 

A chuva é um choro fino. 

E cada gota que cai destroça-me o coração.

 

02/02/24

Falsas etimologias, tascas e pancadarias


A expressão etimologia popular cobre dois fenómenos diferentes: um é uma reinterpretação de uma palavra, com base no que se intui ser a sua origem, devido à semelhança sonora com outras palavras; outro é a proposta de uma etimologia com base apenas na semelhança da forma atual de duas palavras. Um exemplo do primeiro fenómeno é praiamar: pre(i)a, que significava «cheia»*, caiu em desuso e essa parte da palavra foi reinterpretada como praia, que, ainda por cima tem uma relação semântica com mar. Um exemplo do segundo é propor que alçapão vem de alçar o pão (explicando, por exemplo, que o pão se guardava nas caves ou algo do estilo…), quando de facto vem de alça-põe, «sobe-desce», com o verbo pôr no sentido de «descer», como em «O sol põe-se hoje às 16:53». 

Há gente que, sem conhecimentos nenhuns de língua nem da sua história, se entretém a atribuir origens comuns a palavras sem nenhuma relação etimológica entre elas e dar grandes significados a essas relações. Há quem diga, por exemplo, que, com rigor, só se pode falar de indígenas quando se fala das pessoas ou coisas originárias da Índia, quando a origem de indígena não tem nada a ver com Índia. OU que diz que lei marcial vem do nome de um general, Marshall, que foi quem primeiro a instituiu. E eu pergunto sempre a esses pessoas porque é que, em vez de se porem a inventar, não vão antes ver o que dizem as pessoas que, ao contrário delas, passaram a vida a estudar estas coisas. 

Até porque, mesmo não tendo tendência para o delírio e sabendo alguma coisa de língua, é preciso ter sempre muito cuidado com as intuições sobre etimologia. Qualquer pessoa de bom senso pode supor, por exemplo, que os verbos derivados do verbo latino habere, como o haver português, o haber espanhol, o avoir francês e o avere italiano, entre muitos outros, teriam o mesmo étimo indo-europeu que os verbos germânicos como have em inglês e dinamarquês, hebben em neerlandês e haben em alemão, que significam basicamente o mesmo. Mas não: o verbo latino com a mesma origem destes verbos germânicos é capere, que deu o nosso caber; o habere latino tem outra origem.

Tudo isto para introduzir mais um caso curioso de etimologia, que acabo de descobrir, e, a reboque desse caso, a origem da palavra tasca.

Foto: Neil Palmer, Debulha, perto de Sangrur, no Punjab, Índia. Novembro de 2011
Wikimedia Commons, daqui.
Em dinamarquês, «tareia» diz-se tæsk ou tærsk e «dar uma tareia» é tæske ou tærske — com R ou sem R, mas a forma mais antiga parece ser a forma com R. A palavra também quer dizer «malhar, debulhar (os cereais)» e é obviamente esse o significado primeiro do qual decorre o de «dar uma tareia», porque os cereais debulham-se à pancada. No fundo, tærske é como malhar em português, que também tem os dois significados. O termo é cognato das palavras inglesas thresh e thrash. Em inglês moderno, thresh significa «debulhar» e thrash, embora também possa significar o mesmo, usa-se mais para «dar uma tareia». Houve ali uma vogal que se dividiu em duas para distinguir dois significados.  

Ora em português e castelhano existem também tascar para bater o linho ou o cânhamo e tasca/tasco, para referir a espadela que se usa para esse fim. Convenhamos que tanto as formas das palavras como o significado são muito próximos dos termos germânicos referidos no parágrafo anterior. Mas não será só uma coincidência? É bem capaz. A etimologia é discutida: Coromines propõe uma origem celta, taskós, «estaca, pau»**; a Real Academia propõe uma possível origem gótica, um hipotético taskōn. Evidentemente, uma eventual origem gótica poderia levar-nos a supor uma origem comum com os verbos germânicos para «malhar, debulhar». Mas, nunca destes, e por muitos que gastássemos que fosse verdadeira esta relação, o mais prudente é dar a origem por incerta  — ou obscura, como o fazem o Porto Editora e o ACL.

Não surpreende que o significado das palavras da família do tascar ibérico também tenha evoluído para «pancadaria»: Corominas refere tasquera, atestado em 1626,«alteração, disputa, rixa» e tasca, atestado ainda antes, em 1609, também com esse significado e que evoluiu para «taberna» de uma forma perfeitamente compreensível: primeiro significava o banzé, depois passou a significar o sítio onde se armava o banzé**



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* Prea/preia vem de plena-, tal como cheia. O antigo género feminino de mar pode surpreender, mas ainda assim pode ser em castelhano e é assim em francês. Esta divergência de uma palavra com pl- inicial é a mesma que encontramos em prato e chato, ambos de plattu-. 

**Para as referências a Coromines, ver a entrada tascar no Breve Diccionário Etimológico de la Lingua Castelhana, que se pode encontra aqui. (De nada!)


26/01/24

Pequena divagação sobre pseudónimos e mercado


No artigo «O deus mercado rejeitou o homem branco» (um artigo por sinal bem interessante), João Zamith explica as considerações de ordem económica que determinam as escolhas e as imposições — algumas delas surpreendentes — das editoras de livros. Uma das histórias curiosas que conta é a do nome literário (não sei se se lhe pode chamar pseudónimo…) de Joanne Rowling:

Quando Rowling tentou publicar Potter originalmente no Reino Unido, o primeiro livro da série, que viria a vender 120 milhões de exemplares, foi rejeitada não por uma mas por 12 editoras antes de ser aceite provisoriamente pela Bloomsbury Publishing. Digo provisoriamente porque a editora tinha uma imposição para Rowling: não podia usar o seu nome, Joanne.

Ninguém compra livros de fantasia escritos por mulheres. Doze editoras antes da Bloomsbury sabiam isso muito bem, e a Bloomsbury também não tinha qualquer dúvida. Se Harry Potter alguma vez chegasse às livrarias, a sua autora nunca poderia ser Joanne. O público leitor tinha de ser enganado, ou ao menos distraído. E assim surgiu JK. Um nome ambíguo, neutro, sem o estigma da feminilidade.

*** 

Veio-me no outro dia à memória um nome da minha infância e juventude: Roussado Pinto, que conheci como comentador e argumentista de banda desenhada, e diretor de revistas de BD. Eu lembro-me dele como diretor do Jornal do Cuto, que colecionei, mas sei que dirigiu mais uma meia dúzia de revistas antes dessa. Além das suas atividades na BD, Roussado Pinto foi também jornalista, novelista e diretor do célebre Jornal do Incrível...  Lembrei-me de Roussado Pinto e lembrei-me de que descobri um dia que, como autor de novelas policiais, usava os pseudónimos Ross Pynn e Edgar Caygill.  

Num artigo publicado no blogue O voo do Mosquito, escreve Jorge Magalhães:

Evocar o [nome de Roussado Pinto] significa, inevitavelmente, recordar também os pseudónimos que o celebrizaram, como os de Edgar Caygill e Ross Pynn. Usou-os em muitas obras, de maior ou menor importância e simbolismo na sua carreira, não porque quisesse passar, à força, por um escritor estrangeiro — imitando outros autores de novelas de aventuras —, mas porque sabia, com a sua profunda intuição literária, que esses nomes possuíam uma carga onírica que não se desvaneceria com o tempo, dando-lhe assim uma espécie de passaporte para a imortalidade.

Curiosamente, nesse mesmo artigo há uma referência a Luís Campos («outro notável escritor policial português»), que usava o pseudónimo Frank Gold… Roussado Pinto não era o único a usar pseudónimos ingleses e a romântica explicação de Jorge Magalhães não me convence muito... Parece-me que, nestes casos, a chã explicação economicista de João Zamith funciona muito melhor. Talvez não tivesse sido imposição das editoras, mas antes uma decisão dos próprios Roussado Pinto e Luís Campos, perfeitamente conscientes de que as novelas policiais de autores portugueses estavam condenadas a ter pouca ou nenhuma saída. Isso não se sabe. Mas um nome inglês era, é claro, muito mais comercial. E é também o que se depreende do que conta Dinis Machado

Um dia, a minha filha estava para nascer, e eu precisava de vinte contos, fui falar com o Roussado Pinto. E ele disse: «Está bem, ganhas vinte contos, mas fazes três romances policiais com um nome americano, como eu faço». E fiz três romances policiais num ano [com o pseudónimo de Dennis McShade]. 

***

Isto os pseudónimos são como as cerejas, vêm todos agarrados uns aos outros. Lembrei-me de uma obra de Boris Vian, Irei cuspir-vos nos túmulos, cujo enredo pseudonímico, se se pode dizer assim, é mais complicado: Vian apresenta-se como tradutor da obra de Vernon Sullivan, um escritor afro-americano. Fui tentar averiguar a razão desta opção. Diz-me o artigo da Wikipédia sobre a obra que «os críticos divergem na sua apreciação da escolha de um pseudónimo». Um deles, porém, Michel Rybalka, acha que o fez por precisar de dinheiro. Quando me informo de como a obra surgiu, sou tentado a dar-lhe razão.  A descrição que se segue, traduzida do artigo da Wikipédia, baseia-se num trabalho sobre a obra publicado por Mounia Benalil em 2001.

No início do verão de 1946, Vian conheceu um jovem editor, Jean d'Halluin, que queria publicar obras de grande difusão para lançar as edições Le Scorpion, que acabara de criar – em particular imitações dos romances americanos que estavam na moda naquela altura. D'Halluin pediu a Vian [...] que lhe escrevesse um livro no estilo de Trópico de Câncer de Henry Miller, que era um grande êxito. O projeto foi então concebido pelo autor e pela editora como a «aposta de fabricar» um best-seller em duas semanas, ou seja, um romance que fosse ao mesmo tempo um sucesso comercial e um «exercício» na tradição do romance negro americano.

Philippe Boggio, na sua biografia de Vian, corrobora a ideia da perspetiva comercial: 

A ideia de Irei cuspir-vos nos túmulos nasceu em dez minutos no meio da rua. Michelle [Léglise, esposa de Vian] e Boris conversaram sobre o projeto. Boris não tinha ganho o prémio literário da Pléiade e estavam desesperadamente necessitados de dinheiro. Boris já não aguentava o trabalho de engenheiro. A publicação dos seus romances estava demorada e, de qualquer forma, poucas possibilidades tinham de virem a pagar as despesas quotidianas e o carro que Boris sonhava comprar.

A moral da história é que os autores de policiais e afins, já sabem, têm de ter um nome inglês. Senão, não se vende. Vocês compravam um policial de um Vítor Santos? Claro que não. Mas se fosse um Victor Lindegaard? Ah, aí já eram capazes de comprar. Ou as coisas mudaram muito desde essa altura e agora são só os autores de fantasia que não podem ser mulheres?


12/01/24

Uma aldeia no Cáucaso


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Quando publiquei no Facebook umas quantas fotos da região do Samegrelo-Alto Svaneti, na Geórgia, alguém comentou numa foto de Adishi: «Deram um saltinho a San Gimignano?» Bom, nunca estive em San Gimignano, mas não creio que seja muito parecido com Adishi. O que têm de semelhante é só serem ambas localidades muito antigas (San Gimignano um pouco mais antiga que Adishi) e terem ambas muitas torres. 

Adishi é, infelizmente, uma aldeia que se está a desmoronar. Não tenho fotografias que cheguem para documentar satisfatoriamente a minha afirmação, pelo que terão de me acreditar sem evidências, se não é pedir-vos demais: mais de metade das casas da aldeia de Adishi, estão em ruínas; a outra metade são guesthouses para turistas a caminho de Ushguli. 

É sempre triste ver uma aldeia assim, não é? Lembro-me de aldeias cheias de ruínas em Portugal e em França — nas Beiras, na Ardèche, na Lozère, na Drôme, em tanto lado —, desertas ou quase desertas, habitadas só por alguns anciãos sem maneira de lá sair ou sem energia já para o fazer. Terras sem perspetivas de futuro, onde ninguém quer ficar. 

Em França, ouvi dizer várias vezes que as mulheres partem primeiro. François Béranger tem até uma canção sobre esse fenómeno do êxodo rural feminino no departamento da Drôme e sobre a tentativa falhada de importação de mulheres. Ouvi muitas vezes o mesmo sobre zonas rurais do norte da Suécia. Contavam-me que também lá os homens tentavam importar mulheres do estrangeiro. 

São coisas que se dizem, mas será mesmo assim? Uma breve pesquisa na internet mostra-me que, um pouco por toda a Europa, se tem observado um maior êxodo rural de mulheres jovens, que se pode explicar sobretudo por terem, nas zonas rurais, menos opções de emprego que os homens e por cada vez mais procurarem um nível de educação a que nem sempre aí têm acesso. É claro, as coisas nem sempre se passam exatamente assim em todas as regiões, mas parece haver alguma justificação para o que se ouve dizer.

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Em Adishi, há o turismo, valha-lhe isso. Quando se chega à aldeia vindo de Zhabeshi*, uma placa anuncia que há ali «Market, Taxi, Wi-Fi, Fast Food». 

A povoação deve ter uma quinzena de guesthouses, talvez mais. Ao que vimos e ao que se pode ver nas avaliações nos sites agregadores de ofertas de alojamento, a quase totalidade de guesthouses e pensões familiares, em Adishi e nas zonas rurais da Geórgia em geral, são geridas por mulheres. Não sei nada sobre as suas expetativas em termos de educação, mas o turismo dá-lhes seguramente algum rendimento. 

Quando é que, de meia em ruínas, a milenária Adishi passará a aldeia fantasma?


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* Normalmente, é o segundo dia de uma magnífica caminhada de quatro dias no Cáucaso: cerca de 57 km de Mestia a Ushguli, pernoitando em Zhabeshi, Adishi e Iprali. O ponto mais baixo da caminhada é a cerca de 1400 m de altitude e o mais elevado a cerca de 2730 m. No total, sobem-se 3100 m e descem-se 2100. Aconselha-se.






07/01/24

Canções que referem outras canções #4: “Keep it on a Burner” e “Lodi”

 Em "Keep it on a Burner" (2023), Margo Cilker refere “Lodi”, dos Creedence Clearwater Revival: também ela ficou «outra vez encalhada em Lodi», como John Fogerty na sua famosa canção, de que há pelo menos 80 versões, algumas delas de nomes importantes da música popular. 

A canção de Fogerty fala de um músico que vai parar a Lodi, na Califórnia, e por lá fica, sem dinheiro sequer para voltar a casa. Não se trata de nada efetivamente vivido por Fogerty, até porque ele diz que não conhecia a cidade quando escreveu a canção. 

 If I only had a dollar 

For ev'ry song I've sung 

Ev'ry time I've had to play 

While people sat there drunk 

You know, I'd catch the next train 

Back to where I live 

Oh Lord, I'm stuck in Lodi again

   

A canção de Margo Cilker é muito diferente. A letra da canção assenta nas anáforas «I’ve got» e «I got», duas formas verbais que muitas vezes não se distinguem na oralidade, porque se elide na fala o «’ve» de «I’ve got». «I’ve got» tem um sentido de «posse» (dito assim para simplificar), que corresponde normalmente a um «tenho» português:  

I've got people, I've got places, 

I've got things, I've got friends 

I've got something when there's nothing 

Coming up from within 

I've got postcards, I've got music, 

I've got someone's hand to hold 

I got whiskey, I've got brandy, 

I've got use for this old soul 

E «I got» indica uma «mudança de estado» (dito assim para simplificar, mais uma vez), que corresponde normalmente a um «fui» ou «fiquei» em português:  

I got wasted, I got waylaid, 

I got stuck in Lodi again

   

Se, ao contrário de Fogerty, Cilker encalhou mesmo em Lodi, é coisa que não sabemos, nem tem interesse nenhum... Seja como for, Lodi é capaz de não ser mau sítio onde encalhar. Não sei quase nada da terra, mas sei que é terra de vinho tinto, uma grande parte dele de uma cepa parece que originalmente croata que se chama Zinfandel nos EUA e Primitivo em Itália. À vossa!

06/01/24

Memes, escalas de temperatura e pormenores de tradução

 Circula agora na internet a seguinte piada — ou meme, como agora se diz (traduzo eu do inglês): 

O astrónomo sueco Anders Celsius morreu em 1744 aos 42, mas o seu rival Fahrenheit insistia que ele tinha 107.

Independentemente da graça que possa ou não ter, este meme desinforma um bocado, porque Daniel Gabriel Fahrenheit morreu a 16 de setembro de 1736, quando Anders Celsius tinha 34 anos, cerca de seis anos antes de inventar a escala centígrada de temperatura. 

Aqui fica então uma versão corrigida do meme:

Em 1742, quando soube que Fahrenheit falecera seis anos antes, aos 50, Celsius pensou que ele tinha morrido com apenas 10. «Pobre criança!»

O problema é que, se o meme original ainda tinha alguma possibilidade de fazer sorrir o leitor, a versão corrigida não tem mesmo graça nenhuma…

[Uma dúvida que tenho em relação à tradução é se soa natural, em português, dizer a idade sem usar a palavra «anos». Mas escrever «anos» desfaz um bocado a brincadeira, não faz?] 


29/12/23

Breve divagação à entrada em nova (?) fase da vida

Quando Alfred Sauvy cunhou a expressão Terceiro Mundo, usou Tiers Monde e não Troisième Monde, que seria a maneira normal de referir os países nessa altura ditos «subdesenvolvidos», se a ideia fosse apenas afirmar uma qualquer hierarquia dos mundos. Na mente de um falante do francês, o ordinal antigo tiers remete muito provavelmente para Tiers État, o Terceiro Estado do Antigo Regime (originalmente a burguesia, e, posteriormente, o povo em sentido lato), e essa referência é explícita na frase de Sauvy em que a expressão Tiers Monde aparece pela primeira vez – em L'Observateur, a 14.8.1952: «Porque, enfim, esse Terceiro Mundo ignorado, explorado, desprezado, como o Terceiro Estado, também quer ser algo»*. 

Já a expressão terceira idade, essa, não tem nenhuma conotação de classe oprimida que há de fazer a revolução. Terceiro é, aqui, um ordinal simples: é a última das tradicionais três idades da vida (se bem que agora já se fale às vezes de quarta idade...). Para muito efeitos práticos, como, por exemplo, organização de dados estatísticos, ofertas de vacinas e rastreio de certas doenças, ou descontos em transportes, museus, etc., em muitos países a terceira idade começa oficialmente aos 65 anos. 

A entrada na terceira idade pode também ser benéfica para a saúde. Isto depende um bocado de como se organizam os valores normais em cada país, é claro, mas, nalguns países, uma pressão arterial de 145/92, por exemplo, que, aos 64 anos estaria «um bocadinho alta», aos 65 passa a «normal para a sua idade, não se preocupe»; ou um IMC de 27, que aos 64 anos era «um pouco elevado», aos 65 já é perfeitamente normal.

De maneira que é assim.

________________

* Há aqui também uma referência à célebre afirmação de Emmanuel-Joseph Sieyès em 1789: 

O que é o Terceiro Estado? Tudo.
O que tem sido até agora na ordem política? Nada.
O que exige? Ser algo.

 

27/12/23

Canções que referem outras canções #3: “Stereoscope” e “Lady with a braid”


Em "Stereoscope" (2023), Lucy Kruger (& The Lost Boys) refere a canção "Lady with the braid" (1971) de Dory Previn de uma maneira muito original: encaixa um verso da canção de Previn na sua canção, melodia e tudo (quando o resto da melodia é muito diferente da canção de Previn), mas muda os versos "Would you mind if I leave on the light? / Would you mind if it isn't too bright?" para "Do you mind if I leave on the light / Do you mind THE THEFT OF A LINE?", ou seja, atribui abusivamente à sua própria referência o caráter de plágio. Um piscar de olho com um sorriso brincalhão.

Evidentemente, isto funciona apenas para quem, como eu, conheça a canção de Previn, mas é o mesmo com todas as referências: quem não conhecer as obras referidas não dá por elas. Disse noutro texto desta série que uma referência a outra obra é sempre uma espécie de manifesto, o dar conta de uma linhagem artística, mas é também uma forma de criar alguma intimidade ou cumplicidade com um subgrupo dos ouvintes ou espetadores, aqueles que conhecem a obra referida. 

A canção de Dory Previn que Lucy Kruger refere é mais do que apenas uma bonita canção, é uma grande, grande canção. Vale mesmo a pena ouvi-la com a atenção, seguindo a letra. Como diz Amy Fleming, é uma canção tão triste, mas tão boa. Dory Previn, de quem já aqui falei, não é talvez uma cantautora muito conhecida, mas é uma cantautora de culto e Lucy Kruger é provavelmente uma das suas cultoras. 

Em muitas canções de Dory Previn é o seu caráter confessional, às vezes extremo, que lhes dá uma intensidade fora de vulgar. Nesta canção, não sabemos — e não importa — o que há de confessional, se há alguma coisa confessional. Mas podia haver. A emoção é palpável e tem um caráter quase patético. A conversa banal vem-se meter pelo meio da súplica amorosa, e tudo é nervosismo, hesitação, desespero. 

Lucy Kruger vem da cena neopsicadélica de Cape Town, que produziu muitas coisas interessantes. Agora vive em Berlim e começa a afastar-se cada vez mais do som das suas primeiras bandas. Não há maneira de saber se as canções de Lucy Kruger são também confessionais. Às vezes, há pequenos indícios de que bem o podiam ser, mas, para saber se é mesmo assim, falta-nos uma chave que ele não nos quer dar: o seu universo lírico é mais fechado, mais difuso, mais saltitante, mais colagem, muito diferente da contundente literalidade de Dory Previn.

«Your blue eyes

Pressed against the portal

Past present

Dim dazzling

Do you mind if I leave on the light

Do you mind the theft of a line

My my my my morning

My my my my mourning


Weight in my hands

To stop me from the calling

Tick tock full stop

Words of wonder

Words to right

Words of royal beauty bright

Write write write write

Right right right right right»   

26/12/23

De revisão de narrativas e cantigas, e de indignação


Há muita gente que se indigna agora com a prática de revisão e atualização de textos, com a alteração de meia dúzia de palavras em meia dúzia de obras, porque os editores querem «modernizar» algumas obras ou adaptá-las ao que creem que o público-alvo considera aceitável.  Tenho notado a falta, nesta discussão, de uma definição clara de que alterações a um texto são permissíveis, de quem tem o direito de as fazer, em que condições e para que fins. Talvez alguns achem que, na pequena digressão informal que se segue, se misturam coisas diferentes. Mas as questões primeiras são as mesmas em todos os casos: um produto artístico de autor identificado é alterado — é legítimo alterá-lo? Independentemente da resposta que tenhamos para cada uma destas questões, é sensato assentar que a questão é mais complexa do que nos querem fazer crer as exclamações simples de indignação. 

Também tenho reparado que, ao exprimir a sua indignação com estas revisões, há quem alargue de forma surpreendente o conceito de censura. De facto, para que a alteração de algumas palavras num texto, a supressão de pedaços de texto ou a reescrita de um texto sejam de facto censura é preciso que o que é eliminado, de forma mais ou menos direta, ponha em causa quem tem o poder decisório sobre a sua publicação ou inclua informação que possa contribuir para pôr em causa esse poder — o que não é obviamente o caso dos casos que têm causado tanta indignação. 

E por fim, surpreende-me que esta indignação surja agora, porque, ao contrário do que alguns parecem crer, trata-se de uma prática que já existia muito antes de Georgia Anne Muldrow compor e cantar «I stay woke!» em «Master teacher» de Eryka Badu em 2007. Provavelmente, sempre existiu, e ainda antes de haver livros impressos...  

Mas isso eram outros tempos, dirão, e outras maneiras de conceber a autoria e o respeito de uma obra. Não vamos longe demais no tempo. E também não é preciso. Dou-vos só um exemplo famoso: Em 1808, Thomas Bowdler, primeiro em conjunto com a sua irmã Henrietta e depois sozinho, publicou uma versão «para a família» de várias peças de Shakespeare «em que nada é acrescentado ao original, mas se omitem palavras e expressões que não podem com propriedade ser lidas em voz alta numa família». Censura será, segundo alguns, mas a intenção de Bowdler não era com certeza fazer desaparecer as peças de Shakespeare, mas antes divulgá-las, duma forma aceitável para certas pessoas. E ganhar com isso algum dinheiro também?  

E isto é muito importante, provavelmente o mais importante. A pretensa pressão das supostas elites woke interessa pouco às editoras, o que lhes interessa são os números de vendas, e, por isso, as criticadas alterações fazem-se em obras que se teme que, em versões mais antigas, deixem de se vender. Nalguns casos, é de muito dinheiro que se trata.  

Tanto um autor como um editor têm sempre um leitor em mente, mas não é sempre o mesmo para os dois — nem para uma determinada obra, nem para as diferentes edições dessa obra. Quando se trata de edições sobre as quais o autor não tem controlo nenhum, porque já morreu, porque são em línguas e contextos distantes ou porque simplesmente as desconhece, são só o editor e/ou os detentores dos direitos do autor que decidem da edição. Decidem muitas vezes de formas que nos podem parecer muito estranhas e, insisto, não há nada de novo nisto.  

Quando li pela primeira vez Sinuhe, o Egípcio, de Mika Waltari, numa edição inglesa, dei-me conta de que a edição portuguesa que eu conhecia (Bertrand, 1961, com tradução de Bruno da Ponte) era uma versão truncada — faltava um bocado do texto, simplesmente. Soube depois que era prática corrente, nessa época. As editoras encarregavam a editores de texto ou mesmo aos tradutores um determinado número de páginas, de maneira que havia que desbastar as obras para se manter dentro desse limite. Evidentemente, a palavra censura aplica-se aqui mal, já que não há nada específico que se queira cortar, mas o motivo do corte é sempre o mesmo: económico. E não é um desrespeito menor da obra original, pois não? Sobretudo, se não se mencionar claramente, como não se mencionava, que se tratava de uma versão «resumida» (que de facto também não era, pelo menos no sentido mais clássico da palavra).  

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Benito Albi Bachini, ilustração para um edição
de Pinóquio de 1944. Wikimedia Commons, daqui
Já agora, a já muito antiga prática de resumir obras (sem autorização dos autores, ademais) é aceitável ou deve ser vista também como uma grave adulteração da obra? Só já muito adulto é que descobri que a cegonha do início do conto do patinho feio de H. C. Andersen «falava egípcio, porque tinha sido essa a língua que a sua mãe lhe tinha ensinado». Também descobri, por essa mesma altura, que se discute se os contos de H. C. Andersen são de facto para crianças, uma coisa que passa com certeza despercebida a quem, como eu em criança, nunca tenha lido senão versões para crianças, precisamente, que não seguem de muito perto — às vezes nem de longe — o texto original.  

E não é só H. C. Andersen. Nunca li as versões mais antigas de outras narrativas infantis clássicas, como Peter Pan de J. M. Barrie ou Pinocchio de Carlo Collodi (em que Pinóquio é enforcado no fim), mas sei que há — e já há muito tempo — quem considere, nas suas versões originais, estas histórias são impróprios para crianças. E houve então de as mudar, de as limpar de crueldade várias. A ideia é a mesma de hoje, note-se: ajustá-los ao que se considera aceitável para o/pelo público alvo. Seja por razões ideológicas ou por razões económicas, abundam versões adaptadas dessas narrativas, sem nenhuma indicação de serem versões trabalhadas e reduzidas. Não me lembro de ter ouvido alguém protestar contra esse «desrespeito»… Sei também que as tão discutidas alterações às obras de Enid Blyton para as adaptar ao «espírito dos tempos» começaram já nos anos sessenta e setenta. O que há de novo no fenómeno é, pelos vistos, a indignação. 



***


Mudemos agora de objeto artístico. É parte mais original deste texto, porque, quando se discutem as alterações de textos literários, nunca vi discutirem-se canções — e não é, seguramente, porque os textos das canções não se vão alterando de edição para edição. Aliás, se compararmos as alterações que vão sendo feitas aos textos de canções com as que se fazem a contos ou romances, são com certeza muito mais. É, aliás, a alteração desses textos que resulta nas dezenas de versões que há de canções «populares» ou «tradicionais», que é como quem diz, de autor original tão desconhecido como os alteradores do seu texto. Talvez se tome isso como um efeito lateral da transmissão oral e, portanto, aceitável. Não sei. Mas sei que há também canções propositadamente alteradas para as livrar de conteúdo considerado indesejável — ou para reagir a esse conteúdo. E aqui, curiosamente, parece ser mesmo só isso e não a procura de lucro. Não conheço nenhum caso em que essas alterações resultem da iniciativa das editoras discográficas para continuar a vender canções que doutra forma as pessoas já não quereriam ouvir. Talvez os haja, não sei, simplesmente não os conheço. Aliás, na realidade, não conheço muitos casos de canções atualizadas para esse fim. Mas as que eu conheço são mesmo casos avant la lettre do que alguns hoje chamariam wokismo — e ainda bem que o são. 

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Afro-americanos carregando um barco em Vicksburg, Mississippi. 
Detroit Publishing Co., sem direitos de autor.  Fotógrafo desconhecido, 1906, daqui

Um caso conhecido é o de “Ol’ Man River”, uma das canções da peça de teatro musical Show Boat (1927), com música de Jerome Kern e letra de Oscar Hammerstein II, baseada num romance de Edna Ferber. Uma interpretação famosa da canção, se não mesmo a mais famosa, é a de Paul Robeson, na adaptação cinematográfica do musical realizada por James Whale em 1936. Na versão do filme, a letra original de Oscar Hammerstein II de 1927 já tinha sido modificada (não sei se por Robeson): Em vez de «Niggers all work on de Mississippi / Niggers all work while de white folks play» da versão original, Paul Robeson canta «DARKIES all work on the Mississippi / DARKIES all work while the white folks play». Em versões posteriores da canção, porém, Robeson usa uma pronúncia mais standard e faz as seguintes alterações na letra: «Dere’s an ol’ man called de Mississippi, / Dat’s de ol’ man that I’d like to be...», passa a «There’s an ol’ man called the Mississippi, / That’s the ol’ man I DON’T LIKE to be...»; «Tote that barge! / Lift that bale! / Git a little drunk, / An’ you land in jail...» passa a «Tote that barge and lift that bale!/ YOU SHOW A LITTLE GRIT / And you lands in jail…», e, alteração mais famosa, a expressão de resignação em «Ah gits weary / An’ sick of tryin’; / Ah’m tired of livin’ / An skeered of dyin’, / But Ol’ Man River, / He jes’ keeps rollin’ along!» passa a apelo à ação: «BUT I KEEPS LAFFIN’/ INSTEAD OF CRYIN’ / I MUST KEEP FIGHTIN’ / UNTIL I’M DYIN’, / And Ol’ Man River, / He’ll just keep rollin’ along!». É aceitável, isto, ou é censura woke ao texto de Hammerstein? Tem um negro direito a modificar a imagem dos negros que o autor transmite na letra? 

Só mais um exemplo. É difícil saber se foi mesmo Billy Roberts que compôs a famosa canção “Hey Joe” , mas foi ele que a registou como sendo da sua autoria em 1962. Para todos os efeitos práticos, é ele o autor. O site Second Hand Songs regista 440 versões gravadas da canção. A mais famosa é muito provavelmente a de Jimi Hendrix (1966). A letra da canção pode facilmente ser lida como extraordinariamente misógina, já que o acontecimento central do diálogo que a constitui, o assassinato de uma mulher por infidelidade ao protagonista, não é explicitamente condenado, nem nada na canção dá uma imagem claramente negativa do assassino, como se a infidelidade justificasse de facto o crime. 

Quando a canção foi feita, não se reparava nestas coisas. Mas fui tentar descobrir como é que, com o passar do tempo, os muitos artistas que fizeram versões da canção lidaram com esta óbvia possibilidade de leitura. A primeira versão de “Hey Joe” por uma mulher é de Cher, logo em 1967 — e ela não muda nada à letra original. Em 2019, Carolyn Gaines faz uma versão inversa em termos de género (Joe é uma mulher), mas a letra mantém-se inalterada.  

Mathilde Santing já tinha feito, em 1994, uma versão de voz feminina da canção, chamada “Hey Joan”. Santing, porém, altera consideravelmente a letra: se Joan leva com ela uma arma é porque já não aguenta a violência quotidiana do seu homem. O crime tem agora uma justificação: a legítima defesa (Yes I did, I shot him, he's been takin' it out on me long enough now / I put a hole in his heart so I can breathe and live to see another day). Ao contrário do Joe da canção original, Joan não vai fugir para o México nem para lado nenhum: ela vai ficar, porque agora é finalmente livre, porque se livrou enfim do seu pesadelo. Apologia da resistência armada à violência de género? A mim, parece-me mais um relato dramático do desespero das vítimas de violência. Pode-se fazer isto a uma canção, mudar-lhe a letra desta maneira? 


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[Dois apartes sobre “Hey Joe”: Patti Smith tem também uma versão de “Hey Joe” (1974), que foi, aliás, o seu primeiro single. Smith transforma de tal a canção, colando-a à história de Patty Hearst, do seu rapto pelo Exército Simbiótico de Libertação e da adesão de Hearst ao grupo que a raptara, que não faz sentido analisá-la neste contexto de reescrita do original. Da mesma forma, não faz sentido falar aqui de outras adaptações que se afastam totalmente da temática original, como “Hey Brother”, de Billy Preston ou “Flower Punk”, de Frank Zappa

Finalmente, uma ideia engraçada que me veio à cabeça: se a música de “Hey Joe” foi de facto copiada por Billy Roberts da canção “Baby Don't Go to Town”, de Niela Miller, sua namorada da altura (e ela diz que foi), não se pode então estabelecer uma relação direta entre as duas canções, ou melhor, entre o feminicida Joe da canção de Billy e a personagem feminina da canção de Niela, que diz que vai sair, para ir a um bar onde se vai fartar de beber cerveja, uísque e gin, que vai ficar a olhar para os rapazes que por ali param e vai conversar com eles toda a noite e lhes vai dizer que o homem dela a trata mal?]