30/11/23

Dos anos que passam

Já há muito que se diz que «velhos são os trapos». Dizem-no pessoas que não são consideradas idosas a outras que o são, como forma de exprimir — ou exigir — respeito pelos mais velhos.  

Ouve-se e lê-se também muito, atualmente (e não só dos que não são considerados idosos, mas também dos que o são), que anos são só números e que não tiram a ninguém capacidade e valor; que o que se perdeu, talvez, em genica e agilidade facilmente se compensa com o conhecimento e a sageza que se foi acumulando; que é inadmissível conceber que alguém seja menos capaz, só porque tem muitos anos. Não é para ser desmancha-prazeres, mas essas enlevadas afirmações parecem-me amiúde pouco realistas. 

Christian Seybold, autoretrato aos 66 anos (pormenor), 1761.
Museu do Liechtenstein, daqui
Entro para o mês que vem na idade que, para arrumar legislação e estatísticas, se chama agora terceira: os 65; e o que vejo, em mim e nas pessoas da minha idade ou mais velhas, não são capacidades intactas — nem que só as mentais —, mas antes o inelutável declínio que o tempo traz a todos os bichos — essa necessária decadência que, para bem das espécies e mal dos indivíduos, propicia a morte. 

Sejamos claros: não há atividade mental fora de circuitos nervosos que são tão materiais como músculos, ossos e veias. A partir de um auge breve das capacidades do indivíduo, que se segue à adolescência, tudo no corpo começa lentamente a decair. É um processo lento e não se notam óbvias perdas de capacidade nas quatro décadas seguintes. Depois, sim, essas perdas tornam-se visíveis para quem estiver atento a elas. Podia fazer uma lista detalhada de tudo o que, com a idade, se altera em todos os órgãos, incluindo os do sistema nervoso, mas isso seria para outro tipo de texto e é, além do mais, informação facilmente acessível. Digamos, de uma forma exageradamente simplificada, que o corpo mirra e seca e com ele a mente, que é uma parte desse corpo. 

Pode ser que, nalguns casos, o que se adquiriu de conhecimento de experiência consiga, de facto, cobrir o que se perdeu de agilidade mental e de capacidade de ação e inovação; mas não me parece que o conhecimento se armazene apenas, como se de um tesouro se tratasse, que se possa concluir que quanto mais conhecimento se adquiriu já, mais rica a mente. Uma grande parte do conhecimento é circunstancial e deixa de ter utilidade ou de poder ser aplicado quando mudam as circunstâncias, porque diz respeito a coisas que já não se usam ou já nem existem. Algum conhecimento mais abstrato sem aplicação prática, que tinha a utilidade fundamental de granjear a quem o possuía simpatia, respeito, admiração, ou seja, a criar uma posição na comunidade ou na sociedade, com o que isso implica de poder, perde a sua importância quando essa inserção social está terminada. Evidentemente, pode continuar a funcionar-se relativamente bem nas suas áreas de especialidade, quer se trate de gastronomia, reparação de móveis ou investigação em diabetes. Mas, na grande maioria dos casos, não se deve esperar desse trabalho que, por causa da tal acumulação de experiências e conhecimentos, seja a grande obra da sua vida. 

Adquiriu-se, é verdade, um maior conhecimento dos humanos em geral, que pode servir em muitas ocasiões, mas só conta verdadeiramente aqui como vantagem da experiência a parte desse conhecimento que não implica a cultura, aquilo que dos humanos é determinado por circunstâncias históricas. Porque a diferença de cultura entre pessoas de tempos diferentes é tão grande como a diferença entre pessoas de lugares diferentes — e as gerações mais novas e o seu mundo podem ser estranhos, se não «estrangeiros», para os mais idosos. Para uma grande parte das tarefas da nossa vida, não se pode usar a experiência e o saber adquiridos, mas é antes necessário aprender sempre coisas novas — e aprender é, justamente, uma coisa que um cérebro jovem faz muito melhor.  

Comecei em 2016, com quase 59 anos, um curso de design multimedia. Correu tudo mal e desisti ao fim de um semestre. Evidentemente, era uma área nova para mim e não era «nativo digital» como os meus colegas, que tinham vinte e poucos anos. Mas — não sei se o reconheci na altura, mas é hoje óbvio para mim — também não tinha já a capacidade de aprendizagem e de trabalho que eles tinham. Dois anos depois, comecei o curso de Assistente Social e de Saúde, uma profissão sem correspondência em Portugal — nem em mais nenhum país que conheça —, mas que, para a explicar rapidamente, fica abaixo de enfermeiro e cobre um leque de atividades muito maior, em termos de cuidados, e menor em termos de práticas médicas. Somos, para simplificar, o nível mais baixo de pessoal autorizado de saúde. Aqui sim, tornou-se claro para mim que a minha capacidade de aprendizagem era bem menor do que havia sido. E o mais evidente nem era não me lembrar do que tinha ouvido ou estudado, era a pouca capacidade de aprendizagem de gestos precisos ou rotinas gestuais. Comecei a trabalhar na minha nova profissão aos 63 anos. Espero ser um profissional de saúde razoável, não cometer muitos erros, cumprir os meus deveres. Mas comecei velho demais para poder ser um bom profissional de saúde. 

Uma grande parte da nossa atividade mental é controlo de movimento, não o esqueçamos. (Aliás, é muito provável que os sistemas nervosos se tenham desenvolvido para controlar movimento, antes de mais, e que a sua posterior sofisticação decorra dessa função primária.) E, com o avançar da idade, até coisas aparentemente tão simples como andar, mastigar ou sacudir um pano, que aprendemos a fazer há muito anos e consideramos aprendidas de vez, têm de se reaprender quando se alteram no corpo os músculos, os ossos e o sistema nervoso — e é frequente resultarem problemas, às vezes acidentes graves, da insistência em fazer as coisas como as costumávamos fazer, em vez de aprender novas formas de usar o corpo, que agora é outro.  

O mesmo a mente. Não só temos de fazer listas de compras quando vamos ao supermercado, também pensamos mais devagar e de forma menos eficiente. E como poderia ser de outra maneira?

É certo que, por razões várias, que se prendem com a grandes melhorias das condições de vida (trabalho, alimentação, higiene, etc.), uma grande parte das pessoas da minha idade não estão tão gastas aos 65 anos como estavam as pessoas da mesma idade há 50, 100 ou 500 anos. Mas não deixa de ser verdade, por isso, que qualquer pessoa nessa idade perdeu já uma parte das suas capacidades, como é natural.  

É óbvio que ninguém deve ser maltratado ou rebaixado por causa disso, até porque, na minha perspetiva ética, competências ou capacidades não podem ser condição para se ser respeitado. Mas os anos não são só números. Há números de anos que traduzem — é a sina de todos os seres vivos — uma decadência real. 


Picuinhices 2

Temos tendência a pensar que os picuinhas com as coisa das língua têm uma atitude conservadora, mas, se uma pessoa for mesmo picuinhas, não pode sempre ser conservadora, porque a verdadeira picuinhice linguística leva forçosamente a propostas de reforma da norma. 

Por exemplo, se se insistir que é refrães que se deve dizer, porque é isso que decorre naturalmente da origem da palavra, tem de defender que se diga não só anciãos como também anãos, verãos e chãos

Também se compreende mal porque se chama castelhano a um homem de Castela e à sua língua, a não ser por decalque impróprio dessa mesma língua. Para dizer as coisas da maneira natural em português, o picuinhas proporá que, como em galego se diz castelán, em português se deve dizer castelão (plural castelãos, naturalmente, feminino castelã(s)).


Picuinhices 1: uma autocrítica

A história do filme The Moderns (Alan Rudolph, 1988) passa-se em 1926, mas alguém põe a tocar num gira-discos a canção «Parlez-moi d’amour», por Lucienne Boyer, que só foi gravada quatro anos mais tarde.
No romance Les Oubliés du dimanche (Valérie Perrin, 2015), num casamento a 13 de fevereiro de 1985, dança-se ao som do álbum Sign o’ the times, de Prince, que saiu a 30 de março de 1987.
Estes anacronismos não têm importância absolutamente nenhuma, nem para o filme nem para o romance e acho que não devem aborrecer ninguém. O que me devia aborrecer é reparar neles e ficar a pensar nisso, e depois ter de ir verificar se me enganei ou não. O que devia aborrecer-me — e muitas vezes aborrece de facto as pessoas à minha volta — é eu ser assim picuinhas como eu sou. 
Mas, enfim, tenho pelo menos um pretexto para aqui pôr a cantiga de Jean Lenoir, que é uma pequena obra-prima da canção popular do séc. XX. 
       

26/11/23

O marmelo: em doce, em infusão e em calão

Para mim, chá de marmeleiro sempre quis dizer «tareia» e apenas isso. Mas descobri um dia, para minha surpresa, que é também o nome de uma infusão – de folhas de marmeleiro, sim – ou de diversos chás aromatizados – com folha ou óleo ou aroma de marmeleiro. Aliás, se procurarem em Google a expressão, ela nem refere mais vezes a tareia que os chás.

Se houvesse em português um calão rimado como o rhyming slang inglês, pensei eu uma vez, chá bem podia querer dizer «tareia», mesmo sem ser de marmeleiro.

Para quem não conheça rhyming slang, explico que, nesta forma de calão, se usa uma sequência de duas palavras para substituir outra que rima com a segunda das duas. Por exemplo, Hampstead Heath, nome de um parque londrino, significa teeth, «dentes».  Muitas vezes, estas duas palavras são, não um nome composto, como no exemplo anterior,  mas antes um par «natural»: por exemplo, weasel and stoat, «doninha e arminho» (dois animais semelhantes) significa, coat, «casaco». É frequente dizer-se só a primeira das duas palavras, omitindo a que rima, o que complica ainda mais a coisa: dog («cão») pode querer dizer «telefone», porque dog and bone («cão e osso») rima com phone, «telefone». 

Voltando então à proposta de um termo novo no inexistente calão rimado português, chá e torradas rima com porradas, pelo que se diria, por exemplo, «deu-lhe chá» para dizer «deu-lhe porrada». Agora, como talvez fosse de esperar, quando procurei «chá e porradas» e «chá com porradas» na Internet, constatei imediatamente que muita gente tinha já pensado nisso antes de mim.

Chama-se o marmeleiro Cydonia oblonga. Acho muito engraçado este nome. Apetece transformá-lo, com a grafia modificada, em personagem de BD: «As aventuras de Sidónia Oblonga, Tomo I: Chá e torradas em Hampstead Heath».

Além do chá, o marmeleiro deu-nos a palavra portuguesa com mais fortuna fora do português – marmelada. Muitas vezes me interroguei sobre o porquê de tal fortuna: «Terão os portugueses exportado muita marmelada nalgum período da História, ao ponto de a marmelada portuguesa e a palavra que a designa se tornarem famosas pela Europa fora?» Há alguns meses, alguém me deu a conhecer um artigo que confirma a minha hipótese; parece que sim, que os portugueses exportavam marmelada no século XV (um artigo de luxo, na época) e, no século XVI, já se encontravam em Inglaterra receitas de marmelade com outros frutos. Aquilo a que em inglês se chama hoje marmelade, porém, que é sempre de citrinos, começou a fazer-se na Escócia no séc. XVII. Mas leiam o artigo todo, que é muito interessante e bastante completo e me parece fidedigno, apesar de não estar assinado e não incluir bibliografia, pelo que não ponho as mãos no fogo por ele.

Hoje, palavras derivadas de marmelada significam coisas diferentes em diferentes línguas – não forçosamente os doces de citrinos dos ingleses, mas também doces de outras frutas. Às vezes é assim, com as palavras e não só: espalha-se melhor o que passa a ser outra coisa nos sítios onde se espalha…

Em português, marmelada foi também ganhando, com o tempo, significados vários, alguns dos quais todos conhecem e outros menos comuns. Vejam aqui.



[Este texto foi publicado aqui na Travessa a 29 de agosto d 2013, depois foi retirado para revisão e correção há uns meses e volta agora com umas quantas alterações.]

24/11/23

Nome próprio


Toda a minha vida fui Vítor. Quer dizer, sempre foi assim que escrevi o meu nome. O meu primeiro bilhete de identidade tinha Vítor e todos os outros bilhetes de identidade que se seguiram tinham Vítor também. A confusão começou de uma vez que me roubaram o passaporte em Moçambique e tive de mandar vir de Portugal um assento de nascimento. Foi nessa altura que descobri que era Victor que constava desse documento inaugural. De maneira que fiquei Victor nesse passaporte — mas voltei a ser Vítor no passaporte seguinte… Mas depois, quando fui tirar o meu primeiro cartão de cidadão, recusaram-me o Vítor. 

Até aqui, já tinha contado a história toda aqui na Travessa. Agora, em junho passado, quando fui renovar o passaporte no consulado em Copenhaga, voltaram a recusar-me a grafia que sempre usei. Durante alguns meses, fui Vítor nos documentos dinamarqueses e nalguns documentos portugueses que não uso há anos e que não sei se alguma vez voltarei a usar, e Victor nos dois documentos portugueses mais recentes, o cartão de cidadão e o passaporte. Mas achei que isso ainda havia de me arranjar problemas e resolvi uniformizar tudo: agora sou Victor também nos documentos dinamarqueses. 

Ser Victor é, ainda, uma coisa estranha para mim e para quem sempre me conheceu como Vítor. Mesmo os meus colegas dinamarqueses me dizem que não se habituam a que eu agora seja Victor.

– Não têm de mudar a maneira de dizer, aquele C não se pronuncia em português –, explico-lhes eu, mas, para eles, Victor é outro nome, o nome dinamarquês que também se pode escrever Viktor. 

Valha-nos isso, o meu nome internacionalizou-se, porque Victor há em todo o lado. Em inglês, até como nome comum. É claro, o que se ganha em internacionalismo é o que se perde em exotismo, mas sempre fui mais apologista do primeiro que do segundo.

Já pensei em mudar também o nome do blogue — ou, pelo menos, a fotografia do cabeçalho. 


23/11/23

O mundo a acelerar


Em defesa dos conservadores, pode argumentar-se que, se acelerar sempre à velocidade proposta pelos inovadores, o mundo se torna um lugar pouco estável, onde tudo corra o risco de ser projetado para fora pela força da aceleração. Agora, não sei se é sempre a estabilidade do mundo que preocupa os conservadores ou se os preocupa antes a sua própria estabilidade, por acreditarem (com ou sem razão, vocês me dirão…) que são quem mais corre o risco de se ver projetado para fora do mundo quando acelera a mudança.


22/11/23

Ostomia, pensamento e língua

 

Como base para a reflexão que vos proponho sobre pensamento e língua, trago aqui um caso real e muito concreto:

Da primeira vez que tive de lidar com uma ostomia, não tinha praticamente conhecimentos do assunto. Uma senhora, ex-enfermeira, que há quatro anos tratava sozinha da sua colostomia, deixou de o conseguir fazer, por causa de um prolapso do estoma e eu fui a casa dela ajudá-la.

Um dos problemas que se colocavam é que era difícil fazer passar pelo estoma prolapsado um anel antivazamento que tinha de se colocar à volta do estoma debaixo da placa de base na qual assentava o saco de estomia (a senhora usava um sistema em que se fixa o saco sobre uma placa, clicando-o). Como o prolapso se dilatava na sua parte central, sendo aí mais largo que este anel, o anel provavelmente irritaria as paredes do prolapso durante esta operação. Também a abertura do orifício da placa por onde o estoma tinha de passar tinha de ser maior que o habitual, por causa desta dilatação de uma parte do prolapso. Mas há um limite das aberturas disponíveis. Estas aberturas ajustam-se manualmente, com uma tesoura, mas não se podia fazer uma abertura muito larga, pelo menos nas placas que ela tinha em casa, de maneira que havia o mesmo problema em relação ao orifício da placa que ao anel antivazamento que lhe subjazia.  Uma solução era usar um saco de plástico, um pouco como um «preservativo», que ajudasse o prolapso a deslizar pelo anel e pelo orifício da bolsa. Também havia a questão de que o prolapso quase enchia o saco e deixava pouco espaço para as fezes, de maneira que havia de o esvaziar ou mudar mais assiduamente que o normal.

Demorei muito tempo a escrever o parágrafo anterior, porque desconhecia os termos relacionados com ostomia e tive de os procurar todos. E estou convencido de que, para quem não tenha lidado com ostomias (e não tenha visto um prolapso grande, talvez...), é muito difícil, se não mesmo impossível, compreender ao certo de que estou a falar.

Agora, notem que, durante o trabalho de mudança da bolsa e depois dele, tive de refletir sobre toda a situação. E não tive problema nenhum em fazê-lo. Quando se tratou de documentar o sucedido no jornal do paciente, porém, não fui capaz de fazer uma descrição adequada. Limitei-me a uma descrição tão sucinta que era desinteressante, porque não tinha, em dinamarquês, as palavras que agora me faltaram também em português para escrever este texto, antes de ir à procura delas.

Como refleti sobre o que acima descrevo? Uma possibilidade é que as imagens (um filme mental, vá) tenham tido um papel fundamental nessa reflexão. Parece fazer sentido. Mas não sei. Acho que nunca sabemos como pensamos. A pura observação, o filme mental sem mais, não é exatamente uma reflexão. Não tem apreciações, revisão de possibilidades, hipóteses, nada dessas coisas. Não podem servir de base a coisas como des/acordo e intenção. Diferentes pessoas dão conta de formas diferentes de pensar: alguns dizem ter um permanente monólogo interno, dizem que pensam com palavras; outros dizem não pensar dessa maneira, mas antes de uma forma abstrata, sem palavras e sem imagens, e ter apenas monólogo interno quando conscientemente o querem ter ou quando pensam em conversas ou discursos. É o meu caso.  Há quem proponha a existência de uma língua para pensar, o «mentalês», que depois é lexicalizado para a comunicação nas línguas que falamos— ou seja, pensamos primeiro em abstrato e juntamos depois palavras ao que pensámos[1]. Talvez pensemos com uma meia dúzia de operações ou conceitos simples, que se podem juntar em proposições complexas que se encadeiam com outras proposições. Mas talvez não seja nada disso. A verdade é que não temos acesso a essa parte da nossa atividade mental. Se pensamos todos da mesma maneira, porém — e porque não havíamos de o fazer, se temos todos as mesmas estruturas cerebrais? — não é (só?) com palavras e imagens.  

Não encontro nenhuma evidência convincente de que sejam precisas palavras para pensar. Pessoas sem palavras pensam, e não só as crianças que ainda não falam (já aqui falei disto uma vez): os surdos pensam antes de aprender uma língua por escrito ou gestualidade, se a aprendem. O que me parece observável é antes que as palavras são precisas para dizer coisas — seja para as exprimir apenas, seja para as comunicar a outras pessoas. Neste último caso, é preciso que as pessoas com quem se comunica conheçam também as palavras necessárias. Tudo isto é perfeitamente banal e, se aqui o escrevo, é só para insistir em contrariar o repetido mantra de que são precisas palavras para pensar.  

(Podia ir mais longe. Há até casos (muito raros…) de coisas em que ninguém tem palavras para pensar, nem provavelmente língua em geral, mas em que muitas pessoas pensam, como é o caso da física quântica. Todos os enunciados de todas as línguas incluem forçosamente categorias como tempo e aspeto, e relações de causalidade, entre outras coisas, que são inadequadas para pensar em certos fenómenos de física quântica. Só se os pode pensar com fórmulas matemáticas e modelos gráficos, mas não com uma língua natural[2])



_______________

[1] Uma boa introdução à hipótese da língua de pensamento (mentalês), de William of Ockham  a Jerry Fodor — e muitos mais —, na Stanford Encyclopedia of Philosophy  

[2] São um bocado irritantes, convenhamos, as muitas pseudodescrições que por aí circulam dos fenómenos quânticos  e da sua pretensa aplicação «filosófica» a teorias do mundo e da vida em geral, se se pode dizer assim, por gente que efetivamente não compreende a matemática que os justifica. Mas isso é outra conversa…



21/11/23

Um soneto, lúcia-lima, irreconhecimento e recordação

 

Não acham estranho pensar numa pessoa com uma (id)entidade que persiste ao longo do tempo? Não há nenhum eu que nos acompanhe ao longo na vida; nem como personalidade, sequer, quanto mais como mente — eis a conclusão a que chego depois de muito escrutinar a questão. Não só guardamos em nós muito pouco do corpo que vamos tendo, como a mente vai mudando tanto ao longo do tempo que, a dada altura, essa mente estranha o que já foi. A mim, pelo menos, acontece-me muito: quando observo agora coisas ditas, pensadas, feitas por outro momento de mim, não me reconheço nelas. Às vezes, nem as percebo. Penso: «o que quereria eu dizer com aquilo?» ou «que estranha forma de me comportar!». Outras vezes, o que me espanta é antes reencontrar nesse eu de outra época semelhanças com quem estou agora a ser.

Há uns dias, quando estava a limpar uma gaveta da cozinha, encontrei um saco de folhas de lúcia-lima do nosso quintal, que a minha mulher me propôs que deitasse fora, porque estavam ali há muito tempo e ninguém lhes tocava. A verdade é que nem sabia que tínhamos ali lúcia-lima. Fiz um chazinho e pus o saco no meu escritório, ao lado do computador, para não me esquecer de a ir bebendo. O odor e o sabor da lúcia-lima trouxeram-me à memória o quintal da casa na Rinchoa onde vivi consecutivamente dos seis aos dezassete e depois, a espaços, até aos vinte e quatro; e, reminiscência puxa reminiscência, lembraram-me um soneto que tinha escrito em que descrevia o quintal e falava das suas verbenas — as lúcia-limas*. Fui à procura dele. É de 15 de setembro de 1986 e está dedicado a Roberto de Mesquita. Lembro-me de que, nessa altura, tinha descoberto Roberto de Mesquita e tinha gostado muito da sua poesia. Mais de que um poema dedicado a Roberto de Mesquita, o soneto é, acho eu, um poema à maneira de Roberto de Mesquita. Resolvi corrigir-lhe a métrica, que estava torta e o resultado é este:

Pendem já maduros os cachos de uva 
Da latada, no carreiro do quintal 
Cujo saibro acarinha, suave, a chuva 
Temporã, morna morrinha estival. 

Lá do fundo do céu, ameaçadoras, 
Vêm nuvens negras de tempestade. 
Lentas como elas desfilam as horas. 
Esvai‑se do dia a turva claridade. 

O vento da tarde açoita as verbenas. 
É por certo dele esta voz sofrida 
Que vem não sei de onde e que me diz: 

«Para quê alegrias? P’ra quê penas? 
Vive‑se p’ra morrer no fim da vida 
E não p’ra ser feliz ou infeliz…»

Passados 37 anos, vivo uns 16° mais a norte e 20° mais a leste. Troense tem algumas coisas em comum com a Rinchoa da minha infância, porém, e tenho um quintal mais ou menos com o mesmo tamanho que o quintal da casa onde cresci. Não tenho oliveiras, nem limoeiros, nem laranjeiras, nem pereiras, nem ameixeiras, mas tenho maçãs, abrunhos e morangos, como tinha na Rinchoa — e uvas morangueiras, que, por causa da diferença de latitude, amadurecem umas duas ou três semanas mais tarde que as do soneto.

Voltemos à questão da impermanência do eu. O autor deste soneto é um momento tão distante de mim que, se não soubesse que tinha sido eu a escrevê-lo, nunca o reconheceria como sendo meu. «Eu não escrevo assim», pensaria. Mas não porque não reconheça a paisagem como minha, notem, ou porque não concorde, se se pode dizer assim, com o bombástico remate. (Dito assim, parece mais que estou a falar de um ensaio que de um soneto, mas acho que percebem o que quero dizer.) Podia, aliás, escrever hoje a mesma coisa, em verso ou não: não é para se ser feliz que se aqui se anda e é absurdo nortear-nos pela procura da felicidade.

Passemos agora daquilo em que não me reconheço àquilo que recordo de mim, que é uma coisa diferente. Tomemos o terceto final. Se escrevesse hoje alguma coisa com o mesmo significado, quereria dela outro sentido. Quando leio esses versos neste soneto, lembro-me do que pensei muito tempo e sei que é da apologia da abolição das emoções que se trata. Foi uma obsessão minha durante muitos anos. Mais budismo que estoicismo, mas um budismo sui generis e confuso. Achava que alegria e tristeza eram ambas produto de uma mesma coisa, do maior de todos os males, a mente — um emaranhado de juízos e sentimentos, uma projeção constante de mim em tudo o que conhecia, que me impedia de ver as coisas como elas de facto eram. Agora, há muito que deixei de querer livrar-me de emoções e julgamento. Constato simplesmente que toda a vida, seja ela qual for, seja consciente ou não, não existe para nada específico, não tem telos, finalidade, propósito nenhum: é um dado biológico apenas, uma sucessão simples de reações físico-químicas, sem mais. A vida tem obviamente um único sentido, na aceção de direção — vai do princípio para o fim. Tudo o mais é a gente a dizer coisas.





____________________

* A lúcia-lima não é atualmente incluída no género Verbena (é do género Aloysia, espécie citriodora), mas é da família das Verbenaceae. Creio que, quando escrevi o soneto, estava mesmo convencido de que era uma Verbena, até porque era muitas vezes assim referida (como Verbena triphylla ou Verbena citriodora). É uma planta maravilhosa.

18/11/23

Culher


Mas dizei-me: não seria muito melhor escrever culher que colher? É que culher matava dois coelhos de uma só cajadada: ficava mais próximo do étimo imediato, o francês cuillère, e inscrevia-se naturalmente num miniparadigma de palavras terminadas em /ér/ com U na sílaba anterior: mulher, puser e puder – que se opõe a outro de palavras terminadas em /êr/ com O na sílaba anterior (são muitas…). Como puder se opõe a poder, culher opor-se-ia a colher («apanhar). 

A palavra francesa que importámos escreve-se já com U – que refletia e reflete a pronúncia – pelo menos desde a segunda metade do século XI (culier), embora se documentem no séc. XII as grafias coller e cuillier (ver aqui). A partir daí, sempre com U. A grafia com O portuguesa é, muito provavelmente, um latinismo, para dar conta da etimologia última da palavra francesa importada, o latim cochlear(e)-, mas, na breve pesquisa que fiz para este texto, não consegui descobrir se a palavra portuguesa alguma vez se escreveu com U ou se alguma vez o O se pronunciou de outra forma que não /u/. É também muito provavelmente a importação da palavra francesa que justifica as formas culler em galego e cullera em catalão, entre outras.  

E, agora que falo disso, penso, de repente, que a grafia com U nos «integraria» nas outras colheres latinas: as palavras correspondentes (e de etimologia aparentada) em muitas línguas românicas são com U: cuciaro em véneto, cucchiaio em italiano, cucchiara em siciliano, cuchara em castelhano, cuillère em francês, culhièr em occitano, cullara em aragonês, cullera em catalão e cuyar em asturiano (etc.?). É claro, pode argumentar-se que ser igual aos outros não é propriamente uma vantagem…  


17/11/23

Baril

Baril é termo que cresceu em popularidade desde que o ouvi pela primeira vez em rapaz até sair de Portugal em 1997. Enfim, como só vou a Portugal uma vez por ano (às vezes nem isso) e por pouco tempo, sei que ainda se diz, mas não sei se se diz tanto como se dizia nos anos 80 e 90, pelo menos nos meios que eu frequentava. É um termo curioso. Donde poderá vir tal palavra?

Encontro duas propostas etimológicas para o termo. Uma diz que a palavra vem do romani, a língua cigana: baro significa «grande» e tem o feminino bare e o plural bari. Outra propõe antes uma origem galega: nesta língua, baril significa precisamente «bom, oportuno, excelente» e não é termo de gíria ou de um registo familiar. Eis, por exemplo, um excerto de um poema de Pilar Pallarés (sem título, 1979): 

(…) Perante mín, o mundo, a terra das Mariñas, 

Val de Veiga e de Bárcia, a Ermida enguruñada 

baixo da túa planta, baril monte de soños, 

berro do chan que sube cara ao sol máis enteiro, 

acendido planeta de rios subterráneos

 e aldeas dormecidas na señardá e o feitizo! 

No teu seo canta o vento a canción do silencio 

e inventa eternidades.

Sobre a hipótese da origem romani, parece-me fácil explicar a evolução semântica de «grande» para «bom», até porque «grande» se pode usar também como termo de valorização positiva, mas é mais difícil de explicar foneticamente, embora não completamente impossível: pode, por exemplo, ter-se acrescentado um S à forma plural para a regularizar: «tipos bari» passa a «tipos baris»; e depois reconstrói-se um singular a partir dessa forma: «tipos baris», logo «tipo baril». E sabemos que há muitos (!) termos de calão português e castelhano que vêm do romani, certamente muitos mais que do galego. Mas enfim, não sei…

A hipótese da origem galega é boa. Baril parece ser uma forma divergente de varonil, tendo existido uma uma forma intermédia barõil. O termo está atestado nos dicionários da língua galega, pelo menos desde meados do século XIX. O registo mais antigo que vi tem a forma «varil», que seria de esperar da etimologia referida, mas não há oposição /b/-/v/ em galego, pelo que a passagem a baril não surpreende. Além disso, mesmo em falares em que existem os sons /b/ e /v/, observa-se a muito antiga oscilação entre barão e varão, e formas derivadas.

Estou em crer que o uso da expressão em português é mais recente. A atestação mais antiga que conheço é de 1959, mas provavelmente a palavra usava-se já em Portugal há algum tempo. É certo que não me lembro de ter ouvido baril às pessoas da geração do meu pai, mas devia dizer-se com certeza, porque o meu pai usava berilaço (com É aberto!), que não pode senão ser uma corruptela de barilaço. Uma questão que se pode pôr relativamente à origem galega é a da mudança de registo: porque é que, vindo de um registo não marcado, baril se tornou termo de calão em português? Ora, se baril veio com os imigrantes galegos e se difundiu nos meios sociais com quem eles tinham contacto, parece-me fácil explicar essa especialização da palavra.  

Agora, a propósito: Se aceitarmos a origem galega, baril é um desses patriarcalíssimos adjetivos que transformam a ideia de «viril» em termo genérico de aprovação, como porreiro em português, cojonudo em castelhano ou vargeux em francês canadiano, por exemplo.


15/11/23

A história de Charles e de outros poliglotas

Conheço um senhor chamado Charles que nasceu na Occitânia, já não me lembro onde, por alturas do início da Segunda Guerra Mundial. Os pais dele eram judeus polacos da Galícia (que faz hoje parte da Ucrânia) e tinham fugido para França das perseguições aos judeus na sua terra. Não me lembro já porquê (talvez o pai e a mãe tivessem línguas maternas diferentes), Charles aprendeu em casa o iídiche e o polaco. Na rua, aprendeu occitano. E só quando entrou para a escola começou a aprender francês, que é hoje a língua que melhor domina. Mais tarde, porque o trabalho o levou para outros países, aprendeu também inglês e alemão (que foi fácil para ele, por já saber iídiche), mas isso é outra história. 

Esta história de plurilinguismo, que parecerá estranha a quem cresceu e viveu sempre numa língua só, como é o caso da grande maioria dos portugueses, não é tão extraordinária como isso. Um dos melhores amigos do meu filho na Escola Internacional de Chimoio, em Moçambique, o Wilhelm, era alemão e, quando viemos para a Dinamarca, a família do Wilhelm mudou-se também para a Alemanha. Quando o fomos um dia visitar perto de Niböl, não muito longe da fronteira dano-alemã, ficámos a saber que coexistiam ali pessoas de quatro línguas maternas.  O amigo do meu filho falava português, inglês e alemão (alemão standard, alto-alemão) e andava agora numa escola dinamarquesa, onde aprendia dinamarquês e alemão. Os pais tinham escolhido a escola dinamarquesa porque achavam que era a melhor da zona, e há ali uma escola dinamarquesa porque vivem ali muitas famílias (alemãs) de língua dinamarquesa, até porque a região fez, durante muito tempo, parte da Dinamarca. Mas também há, na zona, quem tenha o baixo-alemão como língua materna e o frísio. No sul da Dinamarca, também há ainda famílias que têm o alemão como língua materna. Não sei se alguma vez houve quem tivesse o baixo-alemão como língua materna na Dinamarca, nunca ouvi nem li nada sobre isso, mas sei que já houve falantes de frísio, que agora já não existem. O frísio é ainda uma das línguas oficiais dos Países Baixos, e, entre este país e a Alemanha, tem agora cerca de 480.000 falantes nativos. 

A escolarização é em parte responsável pelo desaparecimento de muitas línguas que os governos das várias nações não quiseram durante muito tempo considerar oficiais e que não foram, por isso, línguas de ensino e administração. Além disso, os estados-nação modernos tiveram, muitas vezes, políticas de repressão brutal das línguas que não eram consideradas oficiais. 

França é um bom exemplo dessa erradicação das línguas nacionais — violenta e bastante bem-sucedida —, mas não é o único. Fiz as minhas primeiras viagens em França em 1976 e ainda cheguei a encontrar franceses, falantes de catalão ou de poitevino-saintongês, que falavam pouco francês (e cheguei até a conhecer dois deles, um casal, quando vivi num lugarejo perto de Niort), mas os jovens franceses de hoje já não têm como língua materna o provençal, o occitano, o bretão, o catalão, o picardo, o normando e por aí fora. Com sorte, e sobretudo se não forem de uma cidade grande, ainda compreendem um bocadinho dessas línguas, porque as ouviram ou ouvem falar aos mais velhos. E o mesmo em Itália e em muito outros países. 

Conheci há pouco tempo o Luigi, um genovês de trinta e cinco anos, que dizia saber mesmo muito pouco genovês (ou lígure, se preferirem).  Dizia que, às pessoas citadinas da idade dele ou mais jovens, não lhes servia de nada o genovês. Se vivesse no campo, era capaz de ter aprendido. Mas chateava-o, na sua qualidade fã de Fabrizio de André, só compreender as letras em italiano oficial (toscano) e não perceber as outras que o grande cantautor fez na língua da sua cidade natal. Na Ligúria, menos de 10% das pessoas falam lígure. Nem sempre a situação das outras línguas italianas (veneto, friulano, piemontês, lombardo, siciliano, tantas que há…) é tão grave como a do genovês, mas estão todas ou definitivamente ameaçadas ou gravemente ameaçadas, para usar a terminologia do UNESCO. Curiosamente, as línguas que, nas regiões onde são faladas, têm maior percentagem de falantes nativos relativamente ao italiano não são línguas latinas, mas sim línguas germânicas — falares tiroleses e alemânicos.

Passando agora da Europa para África, também conheci em Moçambique muitos poliglotas. Moçambique tem muitas línguas (contam-se entre oito e 41, mas é sempre difícil contar línguas) e as pessoas com formação profissional começaram a ter muita mobilidade. Funcionários do Estado a maior parte deles, iam sendo colocados em vários lugares, onde ficavam quatro ou cinco anos. Dou-vos um exemplo de um senhor que conheci chamado Monteiro. O Monteiro era do Alto Molócuè e de língua materna lómuè, mas tinha estudado em Quelimane, onde tinha adquirido um nível razoável de chuabo e depois trabalhado muito tempo em Maputo, onde aprendeu bastante ronga e changana, e depois de uns anos na sua terra natal, mudou-se para Chimoio, onde aprendeu chona. Além disso, também falava muito bem português, como seria de esperar de uma pessoa com o seu nível de educação, toda ela em português. Em Moçambique, é o português que cresce a olhos vistos (língua materna de cerca de 5% da população em meados dos anos 90, é agora a língua materna de cerca de 17% dos moçambicanos), mas não há, por enquanto, perigo de abafar completamente as línguas com que convive. Por enquanto.     

E isto tudo a propósito de quê? De nada de especial, é mais um texto ao correr do teclado, a propósito de línguas e pessoas que conheço e recordações de viagens. Falo aqui de duas coisas diferentes: de sítios onde se falam várias línguas e de pessoas que falam várias línguas. São coisas diferentes. Há pessoas que falam só uma língua, embora sejam de sítios onde se falam várias; e há pessoas que falam várias línguas e são de sítios onde se fala só uma. Agora, feliz ou infelizmente — vocês julgarão, com a cabeça e com o coração — cada vez se fala mais a língua oficial de cada país e as outras vão desaparecendo…

Como se ilustra um texto assim? Que tal uma versão frísia de uma bonita canção originalmente escrita em sueco por um cantautor de língua materna neerlandesa?

14/11/23

M. e Deus [Crónicas de Svenddborg #47]


M. tem agora 99 anos. Há já muito tempo que anda zangada: com a família, com o pessoal do apoio domiciliário, com o centro de dia… E com Deus:

«Quando era jovem, gritei para quem me queria ouvir que Deus era uma porcaria. Bom, na altura não acreditava nele, por isso achava que podia dizer o que quisesse sobre ele, sem que isso tivesse consequência nenhuma. Na realidade, não pensava muito nisso. Mas agora é diferente, agora estou sempre a pensar nisso. Agora acredito que Deus existe e que há um Céu e um Inverno para onde nós vamos quando morrermos. E por isso sei que que vou para o Inferno. Agora, não pense que a minha opinião sobre Deus mudou desde que acredito que ele existe. Sou contra Deus e as suas leis e os seus crimes. Não acredito que os deuses tenham direito a mandar na gente. Era o que faltava! E o mal todo que ele faz? Devia haver um tribunal para julgar Deus!»

Ficamos alguns segundos em silêncio (não sei o que hei de dizer…) e M. continua:

«E agora, diga lá, o que acha que devo fazer: continuo a pensar na morte ou vou até à taberna?» 


10/11/23

Uma terra de animais felizes

Uma coisa que chama a atenção a todos os estrangeiros, quando entram na Geórgia (e sobretudo se não aterrarem em Tiblíssi), é a grande quantidade de animais à solta no espaço público, sem pastores nem ninguém que tome conta deles: vacas, porcos, cães e cavalos nas ruas, nas estradas, nas autoestradas, por todo o lado, enfim.

Conheci ainda em Portugal, os cães vadios nas cidades e, fora delas, outros animais domésticos a deambular sem grandes restrições, também à beira das estradas; e vivi, em África e na América, em lugares onde muitos animais domésticos e cães vadios gozavam também de grande liberdade. Também não é só na Geórgia que os cães vadios são controlados e vacinados pelas autoridades. Mas na Geórgia os cães vadios são mais simpáticos e estão mais bem tratados. Nunca vi cães vadios agressivos, nem se veem nas ruas cães magros ou doentes. Várias vezes, nas cidades ou fora delas, fomos acompanhados por cães vadios durante muito tempo. Pareciam escoltar-nos, metendo-se entre nós e as pessoas com que nos cruzávamos, como que a proteger-nos; mas isto pode, claro, ser imaginação nossa. Às vezes, em percursos mais longos, um cão deixava a certa altura de nos acompanhar — talvez por não querer sair de um determinado território, vá lá uma pessoa saber porquê… — e aparecia outro para o revezar. Nunca pedincham, nem nas esplanadas de cafés ou restaurantes.
Uma vez, num dos nossos passeios no Alto Svaneti, veio juntar-se a nós um grande cão branco, muito limpo e bem tratado, que nos acompanhou durante uns bons dez quilómetros. Quando parámos numa aldeola, para comer uma sopa e beber uma cerveja, ficou ali um bocado à nossa espera e depois acabou por se ir embora. «É daqui da aldeia?», perguntamos ao homem do estabelecimento. Nunca o tinha visto, dali não era de certeza. São assim: acompanham os caminhantes, mas depois separam-se deles e vão à sua vida. Como farão no inverno, quando gela o Cáucaso?
Sobretudo, nunca noutros países os cães vadios e outros animais todos — que, não sendo vadios, passam a vida a vadiar — me pareceram tão felizes. Evidentemente, ninguém sabe, olhando para um bicho, se ele é feliz ou não. Mas enfim, costumam agora considerar-se animais domésticos felizes os que têm liberdade de decisão e movimentos, e parece-me uma maneira sensata de definir a felicidade dos animais. Falei várias vezes disto com outros estrangeiros de visita à Geórgia ou lá residentes, e todos eles estavam também agradavelmente surpreendidos como a maneira como os animais são tratados no país. E pensei: não deve ser assim tão difícil passar a tratar os animais, nos outros países, como eles aqui são tratados. Que pode ser perigoso deixar andar os animais à solta, causar acidentes? Corremos uma boa parte da Geórgia, das duas vezes que lá estivemos (é um país pequeno, cerca de dois terços de Portugal). Não vimos um único mamífero morto na estrada (só duas ou três aves), nem nunca vimos um acidente com animais. Deve ser por as pessoas terem mais cuidado com os bichos, por estarem habituadas a que eles andem por todo o lado. 

O que eu vi, isso sim, foi porcos a fazerem muita porcaria no meio de uma vila. É a natureza deles, não é verdade?  

Também tanta liberdade pode parecer às vezes exagerada. Na segunda noite de uma caminhada de Mestia para Ushguli, paramos para dormir numa aldeia chamada Adishi. No dia seguinte, tínhamos de atravessar um rio, que estava demasiado cheio para se passar a vau, ao que nos disseram. Mas havia quem atravessasse os viajantes a cavalo. A dona da pensão disse-nos que a filha, uma rapariga de 14 anos, tinha um cavalo e podia passar-nos. Falámos com a rapariga e combinámos o preço. Fez-nos um bocadinho mais barato que o habitual. No dia seguinte, quando estávamos prontos para seguir viagem, veio a rapariga dizer-nos que, afinal, não nos podia levar. Tinha andado à procura do cavalo no dia anterior, mas não o tinha encontrado. «Fugiu?», perguntamos nós. Não, não, ele não fugia, mas, como andava sempre à solta pelos montes, ela nem sempre sabia onde ele estava e tinha de esperar até ele voltar para casa — quando lhe apetecia.