29/12/23

Breve divagação à entrada em nova (?) fase da vida

Quando Alfred Sauvy cunhou a expressão Terceiro Mundo, usou Tiers Monde e não Troisième Monde, que seria a maneira normal de referir os países nessa altura ditos «subdesenvolvidos», se a ideia fosse apenas afirmar uma qualquer hierarquia dos mundos. Na mente de um falante do francês, o ordinal antigo tiers remete muito provavelmente para Tiers État, o Terceiro Estado do Antigo Regime (originalmente a burguesia, e, posteriormente, o povo em sentido lato), e essa referência é explícita na frase de Sauvy em que a expressão Tiers Monde aparece pela primeira vez – em L'Observateur, a 14.8.1952: «Porque, enfim, esse Terceiro Mundo ignorado, explorado, desprezado, como o Terceiro Estado, também quer ser algo»*. 

Já a expressão terceira idade, essa, não tem nenhuma conotação de classe oprimida que há de fazer a revolução. Terceiro é, aqui, um ordinal simples: é a última das tradicionais três idades da vida (se bem que agora já se fale às vezes de quarta idade...). Para muito efeitos práticos, como, por exemplo, organização de dados estatísticos, ofertas de vacinas e rastreio de certas doenças, ou descontos em transportes, museus, etc., em muitos países a terceira idade começa oficialmente aos 65 anos. 

A entrada na terceira idade pode também ser benéfica para a saúde. Isto depende um bocado de como se organizam os valores normais em cada país, é claro, mas, nalguns países, uma pressão arterial de 145/92, por exemplo, que, aos 64 anos estaria «um bocadinho alta», aos 65 passa a «normal para a sua idade, não se preocupe»; ou um IMC de 27, que aos 64 anos era «um pouco elevado», aos 65 já é perfeitamente normal.

De maneira que é assim.

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* Há aqui também uma referência à célebre afirmação de Emmanuel-Joseph Sieyès em 1789: 

O que é o Terceiro Estado? Tudo.
O que tem sido até agora na ordem política? Nada.
O que exige? Ser algo.

 

27/12/23

Canções que referem outras canções #3: “Stereoscope” e “Lady with a braid”


Em "Stereoscope" (2023), Lucy Kruger (& The Lost Boys) refere a canção "Lady with the braid" (1971) de Dory Previn de uma maneira muito original: encaixa um verso da canção de Previn na sua canção, melodia e tudo (quando o resto da melodia é muito diferente da canção de Previn), mas muda os versos "Would you mind if I leave on the light? / Would you mind if it isn't too bright?" para "Do you mind if I leave on the light / Do you mind THE THEFT OF A LINE?", ou seja, atribui abusivamente à sua própria referência o caráter de plágio. Um piscar de olho com um sorriso brincalhão.

Evidentemente, isto funciona apenas para quem, como eu, conheça a canção de Previn, mas é o mesmo com todas as referências: quem não conhecer as obras referidas não dá por elas. Disse noutro texto desta série que uma referência a outra obra é sempre uma espécie de manifesto, o dar conta de uma linhagem artística, mas é também uma forma de criar alguma intimidade ou cumplicidade com um subgrupo dos ouvintes ou espetadores, aqueles que conhecem a obra referida. 

A canção de Dory Previn que Lucy Kruger refere é mais do que apenas uma bonita canção, é uma grande, grande canção. Vale mesmo a pena ouvi-la com a atenção, seguindo a letra. Como diz Amy Fleming, é uma canção tão triste, mas tão boa. Dory Previn, de quem já aqui falei, não é talvez uma cantautora muito conhecida, mas é uma cantautora de culto e Lucy Kruger é provavelmente uma das suas cultoras. 

Em muitas canções de Dory Previn é o seu caráter confessional, às vezes extremo, que lhes dá uma intensidade fora de vulgar. Nesta canção, não sabemos — e não importa — o que há de confessional, se há alguma coisa confessional. Mas podia haver. A emoção é palpável e tem um caráter quase patético. A conversa banal vem-se meter pelo meio da súplica amorosa, e tudo é nervosismo, hesitação, desespero. 

Lucy Kruger vem da cena neopsicadélica de Cape Town, que produziu muitas coisas interessantes. Agora vive em Berlim e começa a afastar-se cada vez mais do som das suas primeiras bandas. Não há maneira de saber se as canções de Lucy Kruger são também confessionais. Às vezes, há pequenos indícios de que bem o podiam ser, mas, para saber se é mesmo assim, falta-nos uma chave que ele não nos quer dar: o seu universo lírico é mais fechado, mais difuso, mais saltitante, mais colagem, muito diferente da contundente literalidade de Dory Previn.

«Your blue eyes

Pressed against the portal

Past present

Dim dazzling

Do you mind if I leave on the light

Do you mind the theft of a line

My my my my morning

My my my my mourning


Weight in my hands

To stop me from the calling

Tick tock full stop

Words of wonder

Words to right

Words of royal beauty bright

Write write write write

Right right right right right»   

26/12/23

De revisão de narrativas e cantigas, e de indignação


Há muita gente que se indigna agora com a prática de revisão e atualização de textos, com a alteração de meia dúzia de palavras em meia dúzia de obras, porque os editores querem «modernizar» algumas obras ou adaptá-las ao que creem que o público-alvo considera aceitável.  Tenho notado a falta, nesta discussão, de uma definição clara de que alterações a um texto são permissíveis, de quem tem o direito de as fazer, em que condições e para que fins. Talvez alguns achem que, na pequena digressão informal que se segue, se misturam coisas diferentes. Mas as questões primeiras são as mesmas em todos os casos: um produto artístico de autor identificado é alterado — é legítimo alterá-lo? Independentemente da resposta que tenhamos para cada uma destas questões, é sensato assentar que a questão é mais complexa do que nos querem fazer crer as exclamações simples de indignação. 

Também tenho reparado que, ao exprimir a sua indignação com estas revisões, há quem alargue de forma surpreendente o conceito de censura. De facto, para que a alteração de algumas palavras num texto, a supressão de pedaços de texto ou a reescrita de um texto sejam de facto censura é preciso que o que é eliminado, de forma mais ou menos direta, ponha em causa quem tem o poder decisório sobre a sua publicação ou inclua informação que possa contribuir para pôr em causa esse poder — o que não é obviamente o caso dos casos que têm causado tanta indignação. 

E por fim, surpreende-me que esta indignação surja agora, porque, ao contrário do que alguns parecem crer, trata-se de uma prática que já existia muito antes de Georgia Anne Muldrow compor e cantar «I stay woke!» em «Master teacher» de Eryka Badu em 2007. Provavelmente, sempre existiu, e ainda antes de haver livros impressos...  

Mas isso eram outros tempos, dirão, e outras maneiras de conceber a autoria e o respeito de uma obra. Não vamos longe demais no tempo. E também não é preciso. Dou-vos só um exemplo famoso: Em 1808, Thomas Bowdler, primeiro em conjunto com a sua irmã Henrietta e depois sozinho, publicou uma versão «para a família» de várias peças de Shakespeare «em que nada é acrescentado ao original, mas se omitem palavras e expressões que não podem com propriedade ser lidas em voz alta numa família». Censura será, segundo alguns, mas a intenção de Bowdler não era com certeza fazer desaparecer as peças de Shakespeare, mas antes divulgá-las, duma forma aceitável para certas pessoas. E ganhar com isso algum dinheiro também?  

E isto é muito importante, provavelmente o mais importante. A pretensa pressão das supostas elites woke interessa pouco às editoras, o que lhes interessa são os números de vendas, e, por isso, as criticadas alterações fazem-se em obras que se teme que, em versões mais antigas, deixem de se vender. Nalguns casos, é de muito dinheiro que se trata.  

Tanto um autor como um editor têm sempre um leitor em mente, mas não é sempre o mesmo para os dois — nem para uma determinada obra, nem para as diferentes edições dessa obra. Quando se trata de edições sobre as quais o autor não tem controlo nenhum, porque já morreu, porque são em línguas e contextos distantes ou porque simplesmente as desconhece, são só o editor e/ou os detentores dos direitos do autor que decidem da edição. Decidem muitas vezes de formas que nos podem parecer muito estranhas e, insisto, não há nada de novo nisto.  

Quando li pela primeira vez Sinuhe, o Egípcio, de Mika Waltari, numa edição inglesa, dei-me conta de que a edição portuguesa que eu conhecia (Bertrand, 1961, com tradução de Bruno da Ponte) era uma versão truncada — faltava um bocado do texto, simplesmente. Soube depois que era prática corrente, nessa época. As editoras encarregavam a editores de texto ou mesmo aos tradutores um determinado número de páginas, de maneira que havia que desbastar as obras para se manter dentro desse limite. Evidentemente, a palavra censura aplica-se aqui mal, já que não há nada específico que se queira cortar, mas o motivo do corte é sempre o mesmo: económico. E não é um desrespeito menor da obra original, pois não? Sobretudo, se não se mencionar claramente, como não se mencionava, que se tratava de uma versão «resumida» (que de facto também não era, pelo menos no sentido mais clássico da palavra).  

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Benito Albi Bachini, ilustração para um edição
de Pinóquio de 1944. Wikimedia Commons, daqui
Já agora, a já muito antiga prática de resumir obras (sem autorização dos autores, ademais) é aceitável ou deve ser vista também como uma grave adulteração da obra? Só já muito adulto é que descobri que a cegonha do início do conto do patinho feio de H. C. Andersen «falava egípcio, porque tinha sido essa a língua que a sua mãe lhe tinha ensinado». Também descobri, por essa mesma altura, que se discute se os contos de H. C. Andersen são de facto para crianças, uma coisa que passa com certeza despercebida a quem, como eu em criança, nunca tenha lido senão versões para crianças, precisamente, que não seguem de muito perto — às vezes nem de longe — o texto original.  

E não é só H. C. Andersen. Nunca li as versões mais antigas de outras narrativas infantis clássicas, como Peter Pan de J. M. Barrie ou Pinocchio de Carlo Collodi (em que Pinóquio é enforcado no fim), mas sei que há — e já há muito tempo — quem considere, nas suas versões originais, estas histórias são impróprios para crianças. E houve então de as mudar, de as limpar de crueldade várias. A ideia é a mesma de hoje, note-se: ajustá-los ao que se considera aceitável para o/pelo público alvo. Seja por razões ideológicas ou por razões económicas, abundam versões adaptadas dessas narrativas, sem nenhuma indicação de serem versões trabalhadas e reduzidas. Não me lembro de ter ouvido alguém protestar contra esse «desrespeito»… Sei também que as tão discutidas alterações às obras de Enid Blyton para as adaptar ao «espírito dos tempos» começaram já nos anos sessenta e setenta. O que há de novo no fenómeno é, pelos vistos, a indignação. 



***


Mudemos agora de objeto artístico. É parte mais original deste texto, porque, quando se discutem as alterações de textos literários, nunca vi discutirem-se canções — e não é, seguramente, porque os textos das canções não se vão alterando de edição para edição. Aliás, se compararmos as alterações que vão sendo feitas aos textos de canções com as que se fazem a contos ou romances, são com certeza muito mais. É, aliás, a alteração desses textos que resulta nas dezenas de versões que há de canções «populares» ou «tradicionais», que é como quem diz, de autor original tão desconhecido como os alteradores do seu texto. Talvez se tome isso como um efeito lateral da transmissão oral e, portanto, aceitável. Não sei. Mas sei que há também canções propositadamente alteradas para as livrar de conteúdo considerado indesejável — ou para reagir a esse conteúdo. E aqui, curiosamente, parece ser mesmo só isso e não a procura de lucro. Não conheço nenhum caso em que essas alterações resultem da iniciativa das editoras discográficas para continuar a vender canções que doutra forma as pessoas já não quereriam ouvir. Talvez os haja, não sei, simplesmente não os conheço. Aliás, na realidade, não conheço muitos casos de canções atualizadas para esse fim. Mas as que eu conheço são mesmo casos avant la lettre do que alguns hoje chamariam wokismo — e ainda bem que o são. 

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Afro-americanos carregando um barco em Vicksburg, Mississippi. 
Detroit Publishing Co., sem direitos de autor.  Fotógrafo desconhecido, 1906, daqui

Um caso conhecido é o de “Ol’ Man River”, uma das canções da peça de teatro musical Show Boat (1927), com música de Jerome Kern e letra de Oscar Hammerstein II, baseada num romance de Edna Ferber. Uma interpretação famosa da canção, se não mesmo a mais famosa, é a de Paul Robeson, na adaptação cinematográfica do musical realizada por James Whale em 1936. Na versão do filme, a letra original de Oscar Hammerstein II de 1927 já tinha sido modificada (não sei se por Robeson): Em vez de «Niggers all work on de Mississippi / Niggers all work while de white folks play» da versão original, Paul Robeson canta «DARKIES all work on the Mississippi / DARKIES all work while the white folks play». Em versões posteriores da canção, porém, Robeson usa uma pronúncia mais standard e faz as seguintes alterações na letra: «Dere’s an ol’ man called de Mississippi, / Dat’s de ol’ man that I’d like to be...», passa a «There’s an ol’ man called the Mississippi, / That’s the ol’ man I DON’T LIKE to be...»; «Tote that barge! / Lift that bale! / Git a little drunk, / An’ you land in jail...» passa a «Tote that barge and lift that bale!/ YOU SHOW A LITTLE GRIT / And you lands in jail…», e, alteração mais famosa, a expressão de resignação em «Ah gits weary / An’ sick of tryin’; / Ah’m tired of livin’ / An skeered of dyin’, / But Ol’ Man River, / He jes’ keeps rollin’ along!» passa a apelo à ação: «BUT I KEEPS LAFFIN’/ INSTEAD OF CRYIN’ / I MUST KEEP FIGHTIN’ / UNTIL I’M DYIN’, / And Ol’ Man River, / He’ll just keep rollin’ along!». É aceitável, isto, ou é censura woke ao texto de Hammerstein? Tem um negro direito a modificar a imagem dos negros que o autor transmite na letra? 

Só mais um exemplo. É difícil saber se foi mesmo Billy Roberts que compôs a famosa canção “Hey Joe” , mas foi ele que a registou como sendo da sua autoria em 1962. Para todos os efeitos práticos, é ele o autor. O site Second Hand Songs regista 440 versões gravadas da canção. A mais famosa é muito provavelmente a de Jimi Hendrix (1966). A letra da canção pode facilmente ser lida como extraordinariamente misógina, já que o acontecimento central do diálogo que a constitui, o assassinato de uma mulher por infidelidade ao protagonista, não é explicitamente condenado, nem nada na canção dá uma imagem claramente negativa do assassino, como se a infidelidade justificasse de facto o crime. 

Quando a canção foi feita, não se reparava nestas coisas. Mas fui tentar descobrir como é que, com o passar do tempo, os muitos artistas que fizeram versões da canção lidaram com esta óbvia possibilidade de leitura. A primeira versão de “Hey Joe” por uma mulher é de Cher, logo em 1967 — e ela não muda nada à letra original. Em 2019, Carolyn Gaines faz uma versão inversa em termos de género (Joe é uma mulher), mas a letra mantém-se inalterada.  

Mathilde Santing já tinha feito, em 1994, uma versão de voz feminina da canção, chamada “Hey Joan”. Santing, porém, altera consideravelmente a letra: se Joan leva com ela uma arma é porque já não aguenta a violência quotidiana do seu homem. O crime tem agora uma justificação: a legítima defesa (Yes I did, I shot him, he's been takin' it out on me long enough now / I put a hole in his heart so I can breathe and live to see another day). Ao contrário do Joe da canção original, Joan não vai fugir para o México nem para lado nenhum: ela vai ficar, porque agora é finalmente livre, porque se livrou enfim do seu pesadelo. Apologia da resistência armada à violência de género? A mim, parece-me mais um relato dramático do desespero das vítimas de violência. Pode-se fazer isto a uma canção, mudar-lhe a letra desta maneira? 


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[Dois apartes sobre “Hey Joe”: Patti Smith tem também uma versão de “Hey Joe” (1974), que foi, aliás, o seu primeiro single. Smith transforma de tal a canção, colando-a à história de Patty Hearst, do seu rapto pelo Exército Simbiótico de Libertação e da adesão de Hearst ao grupo que a raptara, que não faz sentido analisá-la neste contexto de reescrita do original. Da mesma forma, não faz sentido falar aqui de outras adaptações que se afastam totalmente da temática original, como “Hey Brother”, de Billy Preston ou “Flower Punk”, de Frank Zappa

Finalmente, uma ideia engraçada que me veio à cabeça: se a música de “Hey Joe” foi de facto copiada por Billy Roberts da canção “Baby Don't Go to Town”, de Niela Miller, sua namorada da altura (e ela diz que foi), não se pode então estabelecer uma relação direta entre as duas canções, ou melhor, entre o feminicida Joe da canção de Billy e a personagem feminina da canção de Niela, que diz que vai sair, para ir a um bar onde se vai fartar de beber cerveja, uísque e gin, que vai ficar a olhar para os rapazes que por ali param e vai conversar com eles toda a noite e lhes vai dizer que o homem dela a trata mal?] 




25/12/23

Um Natal amazónico


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O Beni. Dizem que a parte boliviana da Amazónia é das mais bem preservadas, mas não sei se é verdade.
[Do que me fui ontem lembrar!... Um texto de abril de 2001, agora revisto e aumentado, em que descrevo muito sucintamente uma pequena aventura passada quatro meses antes e que se prolongou dois meses (acho que se pode dizer assim...). Vivia nessa altura em Camargo, no sul da Bolívia.] 


Fomos passar as férias de Natal a uma vilazinha chamada Rurrenabaque, a cerca de uma hora de avião de La Paz. A vila tem uma situação privilegiada, à beira de um dos maiores rios da região, o Beni, e ali mesmo onde acabam os Andes e começa a mata amazónica. 

Como não podia deixar de ser, fomos fazer uma pequena excursão pela selva. É o chamado turismo de aventura: mochilas, catanas, latas de conserva e um guia, e seja o que Deus quiser. Uma lancha leva-nos até à entrada da selva, andamos por ali dois dias, depois fazemos uma jangada e descemos um rio mais dois dias, e, ao quinto dia, vem a lancha buscar-nos outra vez. Não vos vou contar agora aqui a história toda, mas apenas as curiosidades: 

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A mata amazónica: uma colagem de fotos
Passámos a noite de Natal no meio da selva. Árvores de Natal, ena!, eram às centenas, aos milhares, aos milhões, eu sei lá!... A ceia de Natal consistiu numa mistura de várias latas de conservas – uma mixórdia, mas ainda assim não no pior sentido do termo, valha-nos o menino Jesus! –, com arrozinho de tacho a acompanhar! Ah, mas tivemos direito a macedónia de fruta (de conserva...) para a sobremesa, por ser Natal! Foi pena que a consoada tivesse sido curta, mas o facto é que já não aguentávamos os insetos, que eram tantos como as árvores de Natal, e por essas oito e meia da noite já estávamos metidos debaixo dos mosquiteiros, a ver se conseguíamos dormir. 

Dizem que cada Natal é um milagre, seja na selva ou no aconchego do lar, e este não foi exceção – os macacos uivadores entoavam a várias vozes o Green Christmas do King Brosby, se não com a mesma sensualidade, pelo menos com a mesma devoção; e, lá ao longe, jaguares, tapires e porcos do mato tinham-se juntado para, num concerto único, nos oferecerem a sua versão do célebre hino natalício Jungle Bells! E nem um pinguinha de rum para beber... 

No meio da selva, tive uma revelação. Muitas vezes me tinha perguntado a mim próprio porque é que haveria, à chegada dos Europeus, muito mais gente nas terras altas do que nas zonas tropicais da América Latina, sobretudo quando a vida nas terras alta é tão difícil. Descobri nessa altura. É por causa dos malvados dos bichos! Não pensem que chamar à selva «o inferno verde» é alguma imagem literária. Nada, é tão literal que faz confusão. Confusão, comichão, dores, tudo! São milhares de insetos em cima de uma pessoa de manhã à noite – moscas, mosquitos, moscardos, abelhas, vespas abelhudas, formiguinhas, formigas encarnadas, formigas gigantes, ai!!! 

E o marigüí. O marigüí, pica aqui e pica ali, é uma espécie de vampiro em miniatura da família dos mosquitos. Quando o minúsculo safado morde, não se sente nada. Só se vê um ponto de sangue, mas não se sente nada. Nem passadas umas horas, nem passado um dia. Ao segundo dia, começa a comichão. As picadas são tantas dezenas que o veneno é mais do que o corpo aguenta sem refilar: as mãos incham, as pernas incham, começam a aparecer manchas vermelhas aqui e ali. Por curiosidade, a Karen contou, ao sairmos da selva, as picadas só da minha mão direita: 147!  

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À esquerda, a Karen e o nosso guia. Na imagem seguinte, eu e um pacu que pescámos e que nos soube muito bem. O pacu é um peixe estranho, porque tem dentes de pessoa. À direita, picadas e inchaços.
Trouxemos dois recuerdos da mata amazónica. Nem macacos, nem araras, nada disso: puchichis. Puchichi significa apenas «furúnculo», mas era assim que os colegas da Karen chamavam às larvas que trazíamos no corpo. Eram muito provavelmente larvas de Dermatobia hominis, um tipo de mosca que se entretém a pôr ovos nas pessoas. Dos ovos, é claro, saem párvulas lárvulas, a quem, de acordo com as kafkianas leis da metamorfose, não resta senão transformarem-se outra vez em moscas. As nossas alarves larvas não chegaram à última fase, mas ainda nos moeram bastante o juízo durante dois mesitos.
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A larva que estava nas costas da Karen
Eu tinha o meu bicho no dedo pequenino do pé direito, e a Karen o dela nas costas, do lado direito, à altura da omoplata. O meu saiu primeiro, a 11 de Fevereiro, morto e pequenino, depois de inúmeros banhos de pés com água muito quente e muito sabão. Teria um centímetro, se tanto, e parecia um bicho da fruta. 

O da Karen foi mais difícil. Todas as noites, antes de nos deitarmos, eu via-o vir espreitar cá fora, mas nunca o consegui agarrar. Tentava com uma pinça, mas nada, era mais rápido que eu. Era grande e forte, o velhaco. Fizemos então como nos aconselharam os colegas da Karen que tinham vivido na parte tropical da Bolívia e conheciam o parasita. Pusemos beatas de cigarros num bocadinho de água e, com um algodão, deitámos daquela água com nicotina para dentro do buraco do parasita. Deve ter ficado entorpecido, porque depois foi fácil apanhá-lo com a pinça. Tinha cerca de três centímetros de comprimento por meio centímetro de espessura – uma coisa bastante repulsiva!...  

O que é interessante é que as feridas fecham imediatamente depois de o bicho sair – no dia seguinte, já não estava lá nada. Pensámos que o parasita deve ter algum tipo de desinfetante que vai limpando a carne onde está alojado, porque não deve querer viver no meio de uma ferida infetada…

P.S.: As entradas Dermatobia hominis  da Wikipédia em espanhol e em português dizem também que, no estado larvar, o animal produz um antibiótico que previne infeções no hóspede enquanto se alimenta. Mas não citam fontes, de maneira que é capaz de ser alguém a
especular apenas como nós especulámos na altura, sem ter prova nenhuma do que está a dizer.  


22/12/23

É guichê com ê ou é guiché com é?

[Neste texto, para facilitar a leitura a quem não esteja habituado ao alfabeto fonético, transcrevo  os sons [e] e [ɛ] (de e , respetivamente) e com a sua escrita em português standard, mas entre parênteses retos, [ê] e [é].] 

Em português europeu, tirando algumas raras exceções dialetais, estes dois sons não se confundem nunca em final absoluto de palavra: [ê] é [ê] e [é] é [é]. Em francês, existe também, em princípio, uma distinção entre estes dois sons. e também em final de palavra: em francês moderno standard — na pronúncia apresentada nos dicionários, por exemplo — o som [ê] em final de palavra pode escrever-se com -ai, -é, -ée, -er ou -ez e o som [é] pode escrever-se com -et (excetuando a palavra et), -ais e -ait. Há, porém, uma grande variação dialetal na pronúncia destes sons e, como tem frequentemente sido notado, a distinção entre os dois sons é, em geral, cada vez mais anulada, também em posição final. Sobretudo nos falares meridionais — mas não só — os dois sons são reduzidos a [ê].      

Achei que seria engraçado ver como é que passaram ao português as palavras francesas tomadas ao francês que terminam nestes dois sons. 

Pelo que constato à minha volta e pelo que vi em dois dicionários em linha, o da Porto Editora e o da Academia de Ciências de Lisboa, não há sempre uma pronúncia standardizada de todos estes empréstimos, nem quando «naturalizados» (a bold neste texto), nem quando usados em português como palavras estrangeiras[1](a bold e itálico). Para já, constata-se que estas palavras nem sempre se escrevem e dizem em português com o som standard do francês original.

Das palavras pronunciadas com [é] final em francês standard, há algumas que mantêm esse som em português: balé, bidé, boné, cabaré, cabriolé ou cabriolet, caché, carné, chalé, croché ou crochet, estaminé, gilé, gobelé ou gobelet, godé, guiché e relé; e outras que passaram a [ê]: brevê, buquê, bufê, gourmet e parquê ou parquet[2]. É de notar que os dicionários acolhem também as alternativas cachê, godê e guichê e que a formas brasileiras de bidé, carné e gilé são bidê, carnê e gilê.

Quanto às outras, que têm originalmente um [ê] final em francês, mantêm em português esse som as palavras ateliê ou atelier; attaché, blasé, cloisonné, cuchê ou couché, crupiê ou croupier, degradê ou dégradé, démodé, dossiê ou dossier, ecartê, evasê ou évasé, foyer, habitué(e), lamê, mêlée, négligé, palmiê ou palmier, panachê ou panaché, patê, pincenê ou pince-nez, rentrée, tabliê ou tablier— e clichê, consomê, cupê, rosê e suflê, de que estão também registadas as formas escritas e pronunciadas com [é], cliché, consomé, cupé, rosé e suflé; e passaram a [é]: cachené[3], canapé, fricassé, galé, glacé, ié-ié, libré, maré, matiné ou matinée, pilé, puré, soirée e turné ou tournée. De notar que as formas brasileiras de cachené, fricassé, glacé, matiné e turné conservam o som francês: cachenê, fricassê, glacê, matinê e turnê.  

Devo ter esquecido umas quantas palavras. Outras, como boldrié ou oboé, prefiro não as incluir nestas listas, porque vêm de formas francesas já desaparecidas[4]. Mas agora, o mais difícil: como se organiza esta confusão? Há alguma coisa na fonética das palavras que justifique a manutenção ou alteração da vogal original? Ou é a época em que se faz o empréstimo que o determina? Bom, não há conclusão ou, pelo menos, não sou capaz de lá chegar. Pode constatar-se que, apesar da real oscilação da pronúncia destes sons em francês atual, a maior parte das palavras importadas mantém a pronúncia do francês standard; e que o facto de não terem uma grafia aportuguesada parece não influenciar o respeito da pronúncia original. E, como a grafia influencia a pronúncia de palavras estrangeiras, acho provável que algumas palavras escritas com -é final em francês, pronunciado [ê], tenham passado a pronunciar-se com [é], por serem lidas como se fosse a grafia portuguesa — até porque a maior parte das palavras que, na importação, se afastam da pronúncia standard francesa são deste tipo. (Tirando isso, há uma palavra que mudou de género ao entrar no português — puré, que passou a ser masculino, mas isso é outra conversa.)

Sei também que há uma grande variação na pronúncia destas palavras em Portugal — e não só daquelas de que são apresentadas duas alternativas no dicionário —, mas não sei se essa variação é dialetal, socioletal ou geracional. Como as pronunciam os meus leitores? Como está nos dicionários ou doutra maneira? Ah, e já agora, porque foi da discussão desta palavra que o texto nasceu: dizem guichê ou guiché?



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[1] O dicionário da Academia de Ciências de Lisboa não tem transcrição fonética, mas o aportuguesamento dá-me indicação da pronúncia proposta para a maior parte das palavras. 

[2] Parqué também está registado, mas acho que nunca ouvi. Brevê, bufê e parquê têm também as formas brevete, bufete e parquete, em que se escrevem e pronunciam os tt da grafia francesa, não pronunciados na língua original. Isto poderia ser uma indicação de quando foram importadas estas palavras, já que estes tt se pronunciaram em francês até por volta do séc. XVII, mas não sei se a importação será assim tão antiga.

[3] Sempre ouvi cachené, tal como está dicionarizado, mas a forma cachenê pode ter coexistido com cachené também em Portugal. No fado “O chico do cachené”, de Fernando Farinha, cachené é pronunciado como se escreve e rima com é e ; já no fado “Ai Chico Chico”, Amália Rodrigues pronuncia sempre cachenê. A palavra rima com  no refrão, mas, curiosamente, numa das estrofes, devia rimar com Salomé e com banzé, o que acaba por não acontecer, porque Amália não altera a pronúncia... 

[4] O Porto Editora diz que boldrié vem de uma forma baldrier, correspondente ao atual baudrier, que não consigo encontrar no CNRTL. Está aí registada, porém, uma forma antiga documentada no séc. XIV, baldrei. Quanto a oboé, de haut-bois, vem do tempo em que o ditongo que se escreve  oi- e é atualmente pronunciado [uá] se pronunciava [ué].


O alfabeto e a língua da ilha de Utopia

[Um excerto de um texto de 1994, agora revisto e corrigido.] 

Diz o dicionário que utopia pode significar i) com maiúscula, a ilha que dá o nome à conhecida obra de Thomas More; e, com minúscula, ii) um «modelo de sociedade ideal, geralmente concebido como oposição à ordem política existente no momento da sua criação, cuja realização se considera impossível ou pelo menos difícil de concretizar no prazo de poucas gerações»; e, por extensão deste significado, iii) um «ideal de justiça e perfeição inatingível» e iv) «quimera; fantasia».

Falta dizer que utopia é também um género literário, uma narrativa de viagens ficcional que, inaugurado pela obra de More, teve grande sucesso sobretudo no período neoclássico. A história é quase sempre a mesma: um viajante europeu chega a uma ilha, algures numa parte do mundo onde nunca chegaram outros europeus, onde encontra uma sociedade «perfeita»; e volta para contar aos europeus o que viu, para eles perceberem assim a imperfeição das suas sociedades. Já falei algumas vezes de utopia aqui no blogue.

Ao contrário dos verdadeiros viajantes, que têm de se defrontar com culturas de facto outras e que, quer as desprezem ou as admirem, não podem deixar de sentir a materialidade da sua diferença, os viajantes de lado nenhum não têm nenhuma alteridade real com que tenham de esbarrar. A utopia não é realmente uma sociedade outra, é a sociedade europeia, mas em versão melhorada. Como sou uma pessoa de línguas, falo-vos de língua: uma marca clara dessa mesmidade é a língua da Utopia de More. 

O texto de More diz-nos muito pouco sobre a língua dos utopianos. Apenas ficamos a saber que a língua (como as instituições e as leis…) é «perfeitamente idêntica» nas cinquenta e quatro cidades que constituem a república, que [p.105, A Utopia. Lisboa: Guimarães Editores, 1990] «os utopienses aprendem as ciências na sua própria língua, língua rica, harmoniosa, que é fiel intérprete do pensamento, e que se difundiu, mais ou menos alterada, por vasta extensão do globo» e que [p.119] «essa grande facilidade com que aprenderam o grego prova que essa língua lhes não era de todo estranha. Suponho-os de origem helénica; e posto que o seu idioma se aproxime muito do persa, encontram-se nos nomes das suas cidades e magistraturas alguns vestígios da língua grega».

É fácil verificar esta origem helénica do utopiano nas duas dezenas de palavras que vão aparecendo ao longo da narrativa de Rafael Hitlodeu, o navegador português que descreve a ilha: como referem muitos estudiosos da obra, Abraxa, o nome anterior da ilha, bem pode ser uma latinização de abrakae, a-brakae, «sem calças»; perto de Utopia está o país Acoria, que é certamente a-coria, «não-país»; Ademos, o príncipe da ilha, é provavelmente apenas ademos, a-demos, «sem povo»; Alaopolitas, nome dos habitantes da cidade, é a fusão de a-laos, «não-povo» com polites, «cidadão»; etc...

A edição Frobenius de Basileia de 1518 traz em apêndice, além do alfabeto utopiense, um pequeno texto nessa língua. Segundo o prólogo da mesma edição, trata-se de um acrescento do editor, Pierre Gilles, ao texto de More, o que parece ser verdade. Mesmo não sendo da autoria de More, porém, esta adenda é perfeitamente coerente com o espírito da obra e pode bem aceitar-se como parte integrante da Utopia*. E só ela nos permite ir um pouco mais longe na análise da língua da ilha. Eis a inscrição da autoria de Utopos, o fundador de Utopia, em utopiense, latim e português:

Vtopos ha Boccas peu[/] la chama polta chamaan 

Vtopus me dux ex non insula fecit insula

Utopos, General, de mim, não ilha, fez ilha

 

Bargol he maglomi baccan soma gymnosophaon 

Vna ego terrarum omnium absque philosophia 

Só eu, das terras todas, sem filosofia,

 

Agrama gymnosophon labarem bacha bodamilomin

Civitatem philosophicam expressi mortalibus

Estado filosófico exprimi aos mortais

 

Voluala barchin heman la lauoluola drame pagloni

Libenter impartio mea non grauatim accipio meliora

De boa vontade reparto o que é meu, sem má vontade aceito melhor


Não tenho a certeza de que haja uma correspondência assim, palavra a palavra, entre o texto utopiense e o texto latino. Mas esse perfeito paralelismo é bastante provável, já que o poema tem o mesmo número de palavras nas duas línguas e que as que são identificáveis (Utopos, os pronomes, as partículas de negação, o nome “filosofia” e os advérbios de modo do último verso) ocupam os mesmos lugares nos textos nas duas línguas.

Bem vistas as coisas, se tudo é assim tão da mesma forma – o que nunca acontece em duas línguas diferentes – é porque se trata, digamos...da mesma língua!





_________________

* É também o que faz, por exemplo, Pierre-François Moreau [Le récit utopique, droit natural et roman de l'état. Paris: PUF, 1982].


Canções que referem outras canções #2: “Please Don't Bury Me” e “Give My Love to Rose”

Segundo post da série: um dos versos de “Please Don't Bury Me”, de John Prine (1973), é o título de uma famosa canção de Johnny Cash, “Give My Love to Rose” (1957) — provavelmente um piscar de olho de Prine a um dos seus ídolos. Uma função óbvia das referências a outras obras, musicais, literárias, pictóricas, ou de qualquer tipo, enfim, é declarar uma filiação. Uma espécie de mini-manifesto artístico: esta é a linha de autores e o projeto artístico em que inscrevo. 

Johnny Cash diz que escreveu “Give My Love to Rose” inspirado por conversa com um prisioneiro de San Quentin, que lhe pediu para dar um recado à sua mulher (do recluso, entenda-se…). A canção descreve o encontro do seu narrador com um homem que, tendo acabado de cumprir uma pena de prisão e no caminho de volta a casa, está agora à beira da morte, por doença, e pede ao narrador que dê cumprimentos seus à sua mulher, Rose, e ao filho que ele sabe que não poderá voltar a ver.

John Prine era um dos maiores escritores de canções americanos, que tanto sabia fazer boas canções sérias como boas canções humorísticas, como é o caso de “Please Don't Bury Me”. A canção inscreve-se no motivo de últimas vontades e testamento: John Prine conta que escorrega, bate com a cabeça e morre e, quando chega ao céu, lhe contam quais tinham sido as suas últimas palavras. As últimas vontades de Prine são deliciosas e «deem cumprimentos meus à Rose» é uma delas: 

« (…) Give my stomach to Milwaukee
If they run out of beer
Put my socks in a cedar box
Just get 'em out of here
Venus de Milo can have my arms
Look out! I've got your nose
Sell my heart to the Junkman
And give my love to Rose
But please don't bury me
Down in that cold, cold ground
No, I'd rather have 'em cut me up
And pass me all around
Throw my brain in a hurricane
And the blind can have my eyes
And the deaf can take both of my ears
If they don't mind the size (…)»

16/12/23

Suflé


Lembro-me muito bem de perguntar uma vez, era eu rapaz novo: 

– Porque é não se pode fazer um bolo, mas que em vez de ser doce seja salgado? 

Não me lembro já quem era o meu interlocutor ou a minha interlocutora, mas nunca mais me esqueci da resposta que me deu: 

– Um bolo salgado é um suflé, não é? 

Eu não percebia nada de cozinha e aquilo impressionou-me. De facto, até é uma maneira fixe de explicar um suflé a quem não faça ideia nenhuma do que é. Mas não muito rigorosa, até porque há suflés salgados e suflés doces. E um bolo não se pode definir por levar na massa gemas de ovos e as respetivas claras batidas em castelo – mas um souflé sim. 

***

Houve uma altura na minha vida em que comia muitos suflés. Tempos de muita penúria, era o que era. Chamar-lhes tempos de vacas magras é fazer pouco da miséria – nem frangos magros, quanto mais vacas magras… E enfim, em tempos assim, os suflés dão um jeitão. Uma pessoa coze qualquer coisa que dê bom saber à água (bom era daquele camarãozinho pequenino que era mais barato que a uva mijona, mas que só tinha casca…), junta-lhe farinha e uma gordura que arranje e faz um molho branco, mistura-lhe as gemas dos ovos e depois as claras batidas em castelo – devagarinho, com cuidado, senão lá se vai o ar das claras e temos omelete em vez de suflé – e depois é forma e forno e já está. É difícil jantar por menos dinheiro.

***

Mas também não nos fiquemos por preparados tão primitivos. Deixo-vos aqui um suflé simpático, que inventei uma vez. 

Refoga-se muita cebola em azeite abundante e junta-se-lhe meio quilo de espinafre inteiro, que se deixa estufar devagarinho, sem acrescentar líquido. Quando está já estufadinho, deita-se-lhe uma colher de sopa de mostarda de Dijon e deixa-se apurar mais um bocadinho. A seguir, juntam-se-lhe quatro colheres de farinha, mexe-se, e junta-se leite até ter uma espécie de esparregado grosso. 

À parte, mói-se na máquina meio quilito de bacalhau fresco e salmão misturados. Ou outro peixe qualquer, eu uso bacalhau fresco e salmão, porque são peixes que aqui se encontram com facilidade, mas qualquer outro peixe serve. Tempera-se esta pasta com sal e muita pimenta preta (muita pimenta é importante, neste caso), junta-se-lhe quatro gemas de ovo e mexe-se tudo bem mexido. 

Depois, junta-se a pasta de peixe aos espinafres. Espreme-se um dente de alho grande no espremedor de alhos, e mistura-se no preparado. Depois, claro, há que bater as quatro claras em castelo, incorporá-las na massa, com muito cuidadinho, meter numa forma untada (uma forma alta, claro, para o suflé não vir por fora) e forno. 200 graus, já não me lembro quanto tempo. Uns quarenta minutos, deve ser. Mas vê-se quando está pronto. Pronto.

Uma variante possível, que também fica bem, é com atum de lata e camarão em vez de peixe fresco: 300 gramas de atum e 200 de camarão, por exemplo. Se tiverem paciência para isso, podem refogar as cascas do camarão em manteiga, e cebola e cenoura picadas, juntar-lhe água, deixar ferver uns cinco minutos, e usar essa sopa em vez de leite. Enfim, vocês decidirão.  Ah, um bocadinho de noz moscada e de pimenta-de-caiena também pode ficar bem...

[Souflé ou suflê? A ver se faço um texto sobre isto aqui no blogue...]



14/12/23

Tradução automática e inteligência artificial: magia não é, nem uma pessoa a pensar


Sou muitas vezes confrontado com comentários e críticas aos programas de tradução automática que revelam que a maior parte das pessoas não compreende como é que funcionam esses programas. Não falo de compreender a fundo, compreender mesmo, porque isso deve haver muito poucas pessoas que o consigam fazer e eu não sou com certeza uma delas. Falo antes de ter uma ideia da arquitetura de base desses programas, da maneira como funcionam. Isso ajuda a evitar críticas sem grande sentido aos programas de tradução, mas também a servir-se deles de forma a minimizar as suas lacunas e imperfeições várias, que não hão de, por certo, desaparecer já amanhã — embora estejam a desaparecer, devagarinho, dia após dia. 

Houve, de 1978 a 1992, um grande projeto europeu chamado EUROTRA, que visava criar um programa de tradução automática para as línguas da União Europeia. A ideia era criar um programa que desconstruísse as frases da língua de partida de modo a transformá-las em estruturas abstratas que depois se voltavam a materializar com o léxico e a estrutura sintática da língua de chegada. No fundo, fazer aquilo que se acreditava que um ser humano fazia inconscientemente ao traduzir.

O projeto nunca foi concluído: era demasiado difícil. Uma amiga minha trabalhou nesse projeto durante alguns anos, só com as regras de colocação dos pronomes em português e italiano, sem grandes resultados. Era muito difícil criar as regras para o programa e as estruturas abstratas entre a língua de partida e a língua de chegada eram muito pesadas. Agora, os programas de tradução automática melhoram de dia para dia. Há uns melhores que outros, é certo, e também é certo que alguns continuam a fazer muitos disparates, mas os melhores são muitas vezes extremamente eficazes. A principal diferença relativamente ao falhado projeto EUROTRA é estes programas não têm regras para transformar as frases de uma língua em frases da outra. Usam algoritmos que procuram associações em bases de dados muitos grandes. Dito de forma simples, a metodologia destes programas é «enormes quantidades de informação».

Vou dar um exemplo da qualidade da tradução automática: ao contrário do que se possa pensar, este parágrafo não foi escrito originalmente em português. Escrevi-o em inglês e depois utilizei um programa de tradução automática gratuito para o traduzir para português. Não introduzi qualquer alteração na tradução e, embora talvez não seja a tradução mais elegante (mas o meu texto original em inglês também não deve ser assim tão elegante), não há erros significativos, quer na sintaxe, quer na escolha das palavras, embora eu não tenha escolhido, de propósito, as estruturas gramaticais mais fáceis*.

O meu amigo Pedro Malaquias publicou uma vez no Facebook o seguinte texto:

lost in translation

time flies

o tempo moscas

glória glória

ao tradutor automático

É um texto que dá conta de uma certa ideia de um tradutor automático e que talvez seja mesmo uma tradução com um programa (dito)de tradução muito mau (a tradução do Facebook, por exemplo, é muitas vezes exasperante). E pode até obter-se esse divertido resultado em verdadeiros programas de tradução separando as duas linhas:

time

flies

Mas há muito tempo que os programas de tradução, mesmo quando traduzem mal, não fazem frases agramaticais — se o input for uma frase e não palavras isoladas e escrito com uma pontuação standard. Já em janeiro de 2017 eu dava a uma amiga este exemplo de tradução automática, também sem mudar absolutamente nada do proposto pelo programa de tradução:

As políticas nacionais de Gestão de Recursos Humanos são um exemplo disso. Tem-se argumentado que os investimentos no desenvolvimento de capacidades terão um efeito limitado se não forem suportados por mudanças adequadas nas políticas de RH. A questão da retenção de pessoal técnico qualificado e treinado é há muito reconhecida como fundamental para se conseguir melhorias duradouras na prestação de serviços municipais, mas pouco se fez para mudar as políticas, procedimentos e práticas atuais, que também têm dimensões políticas que são difíceis de mudar. Há muitas outras leis e regulamentos que devem ser alterados para chegar a um ambiente mais propício para o desenvolvimento municipal**.

Como é que os programas sabem quando é que flies é o plural de fly, «mosca», quando significa «braguilhas» e quando é a terceira pessoa do presente do verbo fly, «voar»? Bom, ninguém lhes deu regras, apenas foram treinados com muitos milhares ou milhões de exemplos de ocorrências das formas em vários contextos. Disseram-lhe: neste contexto é isto, neste contexto é isto, neste contexto é isto. E, a partir daí, o algoritmo computa as probabilidades. E acerta quase sempre. Não sabemos ao certo como o programa faz, o que é que ele encontra que o faz distinguir as várias aceções dos termos ou levar a cabo tarefas linguísticas ainda mais complicadas. E isso é um bocado irritante, não percebermos ao certo como ele funciona, só sabemos que faz o que deve. 

Por muito irritante que possa ser, esta ignorância de como o programa funciona não difere em nada da nossa ignorância de como funciona o nosso cérebro. Nós também não sabemos como o nosso cérebro cola significados às palavras da língua. Sabemos, por exemplo, que podemos usar uma palavra metaforicamente ou de outra forma «desviante», mas há usos dessa palavra que não reconhecemos como metafóricos ou «desviantes», mas antes como estrangeirismos: os falantes da língua nunca usariam aquela palavra naquela situação. Mas não sabemos porquê. 

Podemos sair um pouco da língua, para um exemplo talvez mais claro para a maior parte das pessoas que não estão habituadas a questões linguísticas. Todos sabemos que, quando vemos uma pessoa ao longe, antes de distinguirmos o corpo e as feições, já sabemos, pelo andar, se é homem ou mulher. Há exceções, claro, mas é assim na esmagadora maioria dos casos. Se interrogarmos alguém — ou nos interrogarmos nós próprios — sobre o que caracteriza um andar masculino ou um andar feminino, porém, não sabemos responder. Os estudos sobre o assunto mostram, por exemplo, que é o movimento de alguns pontos das pernas, e não do tronco ou dos braços, que determinam esse reconhecimento, mas não se sabe exatamente quais e como. Escolhi este exemplo, porque há programas informáticos que fazem esse mesmo reconhecimento de género na marcha humana tão bem como nós, mas também sem saber como ele é feito. É o mesmo princípio: numa base de dados com milhares e milhares de filmes de homens e mulheres, instrui-se um algoritmo sobre quais são homens e quais são mulheres. E ele aprende. Como nós. Sem saber como, sem nós sabermos como.

Não há magia nenhuma na tradução automática. E, como não há magia, os programas não só funcionam melhor com determinando tipos de textos (os tipos mais frequentes nas bases de dados) como podem, através de práticas simples, ser ajudados a traduzir mais corretamente. Palavras isoladas não funcionam. Como há de o programa procurar contexto? Às vezes, nem é preciso muito para contextualizar. Por exemplo, o j.j.amarante, num comentário deste blogue, referia que um programa de tradução automático traduzira João Paulo (o nome de papa de Karol Józef Wojtyła) para latim como John Paul. 

Respondi eu: 

[Este programa] traduz sempre para inglês antes de traduzir para outra língua. Mas funciona com probabilidades de ocorrência e precisa de contexto. Imagino que a base de dados em latim seja muito pequena e, sem mais informação, só com dois nomes próprios, o resultado é mau. Melhor, é nulo... Mas, se escrever "Papa João Paulo", que chega para definir contexto, por ser uma sequência tão específica, já o [programa] dá Ioannes Paulus Pp. em latim, uma tradução correta.

Além disso, a esmagadora maioria os textos que existem nas bases de dados são textos escritos em linguagem standard em frases standard. Por isso, os resultados são muito melhores com frases completas e com ortografia e pontuação padronizada, como disse atrás.

Agora, tudo isto levanta uma questão muito interessante:

Jaron Lanier sublinhava, já há quase dez anos, que, «nos bastidores, [de um tradutor automático baseado em grande quantidades de dados] estão literalmente milhões de tradutores humanos que fornecem os exemplos» e «não estamos a pagar nada a essas pessoas que fornecem os exemplos para os corpora de que precisamos para pôr os algoritmos de inteligência artificial a funcionar. Para criar esta ilusão de uma inteligência artificial autónoma, independente, temos de ignorar as contribuições de toda a gente de cujos dados nos servimos para a fazer funcionar.»   

É bom não nos esquecermos de que estes tradutores automáticos somos nós, eu e outros tradutores, que os alimentamos, ou melhor, que os criamos.

Noam Chomsky diz a mesma coisa quando acusa a inteligência artificial de ser «alta tecnologia de plágio», ou seja, um programa com acesso a uma quantidade enorme de textos ou imagens efetivamente produzidos por pessoas, que depois cola bocados uns aos outros, de modo a que seja impossível saber onde foi buscar a informação. Já houve casos em que os bocados das obras que compõem os textos ou as imagens produzidas pelos programas de inteligência artificial são reconhecíveis e os seus autores levem os proprietários do programa a tribunal. Mas, na maior parte dos casos, é impossível detetar a origem da informação.

O que é curioso, mais uma vez, é que é também assim que funciona o ser humano. Também nós, quando produzimos seja lá o que for, usamos sempre ideias, conhecimentos ou técnicas que nos vêm de outras pessoas. Apenas os reorganizamos como nossos, em algo nunca antes produzido. 


___________________

* I am going to give an example of how good automatic translation has become: unlike you might have thought, this paragraph was not originally written in Portuguese. I wrote in English and then used a free automatic translation programme to translate it into Portuguese. I did not introduce any change in the translation at all and, although perhaps it is not the most elegant translation (but then again, my original English text was probably not that elegant either), there are no significant mistakes to be found, in both syntax or choice of words, although I on purpose did not choose the easiest grammar structures. 

** National policies of Human Resources Management are a case in point. It has been argued that investments in capacity development will have limited effect unless supported by adequate changes in HR-policies. The issue of retention of qualified and trained technical staff has long been recognized as key to achieving lasting improvements in municipal service delivery, but little has been done to change current policies, procedures and practices, which also have political dimensions which are difficult to change. There are many other laws and regulations that must be changed to arrive at a more conducive environment for municipal development. 


Canções que referem outras canções#1: “La Chanson de Prévert” e “Les Feuilles mortes”

 

A partir de hoje, passa a haver mais uma etiqueta na Travessa do Fala-Só: «Canções que referem outras canções». Há obras literárias que remetem para outras obras literárias, há obras musicais que remetem para outras obras musicais e há canções que remetem para outras canções – umas de uma forma mais direta, outras de forma mais subtil, algumas de forma bastante criativa. Como uma canção é uma mistura de texto e música, a referência que se faz numa canção a outra canção pode ser do tipo da intertextualidade literária, do tipo da citação musical ou uma mistura de ambas. 

Um exemplo conhecido de uma canção que remete para outra canção é “La chanson de Prévert”, de Serge Gainsbourg (1961), que refere muito claramente "Les feuilles mortes”. Até se poderia quase dizer que “La chanson de Prévert” é uma canção sobre “Les Feuilles mortes”. A canção “Les feuilles mortes” foi composta em 1946, por uma dupla profícua, o poeta Jacques Prévert e o compositor Joseph Kosma, para o filme de Les Portes de la nuit, de Marcel Carné

A primeira gravação em disco é de Cora Vaucaire, em 1948. Em 1950, foi gravada por Jo Stafford a versão inglesa de “Les feuilles mortes”, “Autumn leaves”, com letra de Johnny Mercer, que se tornou um standard de jazz. No total, entre versões cantadas em várias línguas e versões instrumentais deve haver quase dois milhares de versões gravadas. O site Second Hand Songs regista, na altura em que escrevo isto, 1632 versões gravadas, mas os números deste site ficam sempre, naturalmente, um bocado aquém do número total de gravações.


“La chanson de Prévert”, de Serge Gainsbourg, tem um palmarés bem mais modesto: segundo o mesmo site, há 27 versões em francês, mais uma em inglês e outra em japonês. O Second Hand Song diz também que a versão de Michèle Arnaud foi publicada antes da versão do autor, mas, se assim é, foi com muito pouca antecedência.

O primeiro verso da canção de Gainsbourg é uma citação literal do primeiro verso da letra de “Les feuilles mortes”: «Oh je voudrais tant que tu te souviennes».

«Car chaque fois "Les feuilles mortes"

Te rappellent à mon souvenir

Jour après jour les amours mortes

N'en finissent pas de mourir»


 

10/12/23

O bom filho...

Mais uma história verdadeira, acabadinha de se passar:

A minha amiga S. andou dez anos à procura de um livro – uma biografia de Henning Mankell por Kirsten Jacobsen. Comprou o livro em 2011, gostou muito dele, fez publicidade da obra junto dos amigos e emprestou-a a um deles. Mas a quem? S. esqueceu-se, não sabia a quem tinha emprestado o livro. 

Durante dez anos, insistiu com os amigos todos: «Mas vê lá se não é tu que o lá tens... Alguém o há de ter...» Mas não, ninguém tinha o livro. A semana passada, S. desistiu da busca e comprou o livro na internet, em segunda mão.

Quando o recebeu e o abriu, viu numa das guardas o seu nome, escrito pela sua própria mão e a data «Out. 2011». Tinha comprado o seu próprio livro, desparecido dez anos antes.   

06/12/23

Plágios e armagedão, e desejos de Natal

 

Não sou daquelas pessoas que odeiam o Natal, mas há coisas que me perturbam nesta quadra. A que mais me perturba é a música. Também não é porque tenha alguma coisa contra a música de Natal em particular, mas tenho — e muito! — contra as playlists de êxitos mainstream de Natal que, nesta época do anos, me agridem todos os anos em todo o lado. A melhor expressão para classificar essas canções todas é, talvez, a que Ewan Mccoll usava para designar as muitas versões da sua canção “The First Time Ever I Saw Your Face”: uma «câmara de horrores». Não sou o único a ter este sentimento e já vi que se faz às vezes, em certos grupos, um jogo chamado Whamageddon, em que ganha a última pessoa que, nesse ano, ouvir tocar “Last Christmas”, dos Wham, seja lá onde for... Vá lá, este ano ainda não a ouvi, e vamos a 6 de dezembro, mas já sei que não sobrevivo muito mais tempo… 

E isto era só uma introdução. O tema central deste texto é o plágio. Ou melhor, processos de plágio que assentam numa compreensão do conceito que me parece, sinceramente, muito exagerada. Li no outro dia que um senhor chamado Andy Stone levou Mariah Carey e Walter Afanasieff a tribunal acusando-os de plagiarem, em “All I Want for Christmas Is You”, de 1994, uma canção da sua autoria com o mesmo título e que fora  gravada cinco antes por Vince Vance & The Valiants. Diz a acusação de Andy Stone (traduzo eu) «A frase “Tudo que eu quero no Natal és tu” pode parecer um lugar-comum hoje em dia; em 1988 era, no contexto, distintiva [...] Além disso, a combinação daquela sequência de acordes na melodia, com o refrão literalmente igual, é um clone de mais de 50% da obra original de [Stone], tanto na escolha da letra como na expressão harmónica.»

Devo deixar claro que a canção de Mariah Carey é, para mim, um dos espécimes mais proeminentes da tal câmara de horrores. Não é por ter por ela alguma estima especial que a defendo, se é que se pode chamar defesa ao que se segue. Mas vejamos:

Primeiro, a questão da sucessão de acordes. Bom, eu não sou músico, mas parece-me que a questão da harmonia é uma questão muito complicada: quantas canções não usam as mesmas sequências de acordes como suporte de melodias diferentes?  

Segundo, será que a frase “All I Want for Christmas Is You” era assim tão original em 1989? Bom, com uma pesquisa rápida e só em canções que foram grandes sucessos (a de Buck Owens foi nº 1 das tabelas americanas), encontro “You're All I Want for Christmas”, de Frankie Laine & Carl Fischer's Orchestra (1948); “You're All I Want for Christmas”, de Brook Benton (1963); “All I Want for Christmas Dear Is You”, de Buck Owens and His Buckaroos (1965); e “All I Want for Christmas Is You”, dos Foghat. Se a questão é a «ideia» central da canção, pode então considerar-se, por exemplo, que “All Kinds Of Everything” de Dana é um plágio do clássico “These Foolish Things (Remind Me of You)”? Enfim...

Oiçam a canção de Stone (presumo que a de Carey já conheçam) e digam de vossa justiça: acham que o outro “All I want for Christmas” é um plágio deste?


Depois das cantigas de Vince Vance & The Valiants e de Mariah Carey, não deixaram, claro, de se fazer canções centradas na mesma «ideia», que, na minha opinião merecem também figurar na câmara de horrores... Há também cantigas com outros desejos para o Natal mais originais que apenas «tu», como “All I Want for Christmas Is a Real Good Tan” ou “All I Want for Christmas Is New Year's Day”, mas as músicas não são, infelizmente, mais interessantes que as atrás referidas. Já a canção mais antiga de todas as que conheço como desejos de Natal, “All I Want for Christmas (Is My Two Front Teeth)”, de Spike Jones and His City Slickers (1947 ou 1948) é bastante interessante, se não musicalmente pelo menos foneticamente.


Pessoalmente, se tivesse que escolher uma canção sobre o que é que me basta como prenda de Natal, acho que escolhia esta de Bey Ireland, lançada em novembro de 1966.



05/12/23

Um prédio etimológico


A fotografia não é grande coisa, mas, do chão, com o telefone e com gente sempre a passar, não consegui fazer melhor.

Neste prédio em Faaborg vê-se, lá em cima, a palavra apotek, «farmácia», grafada à moda antiga, ainda com th, e, em baixo, onde deve ter já havido uma farmácia, uma boutique, ou seja, uma loja de modas — às vezes designada, na Dinamarca com em Portugal, com a palavra francesa, para ser mais fina… Em dinamarquês, loja — quando não é modas — diz-se butik, que é a mesma palavra, mas sem francesices. 

Ora apotek é uma forma muito próxima do étimo grego de onde deriva, ᾰ̓ποθήκη, «arrecadação, armazém» (geralmente transliterado apotheke) e de onde derivam também as palavras butik e boutique. Usa-se ainda em dinamarquês outra palavra derivada do mesmo étimo e importada do castelhano, bodega, para designar uma taberna, um bar popular. 

Parece que bodega tem também este sentido em português, mas eu conheço-a antes com outro sentido, que vocês também conhecem. Em português, além de bodega e do francesismo boutique, o grego apotheke deu ainda botica e adega. Adega é uma forma já atestada em galego-português, ao passo que botica é um aportuguesamento mais tardio do francês boutique, que é, por sua vez, um afrancesamento, se se pode dizer assim, do provençal botiga/botica, que vem da latinização do termo grego em apotheca

Muitas voltas dão estas palavras. 


04/12/23

Caridade Romana, um estranho motivo neoclássico


No cemitério de Svendborg, há numa campa uma estátua de uma mulher de seios nus. Não sei quem é, mas deve representar algum conceito abstrato: a pureza, a poesia, a vida, a justiça, a liberdade, sei lá… 

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Em A Calúnia de Apelles, de Botticelli, o Arrependimento está coberto da cabeça aos pés,
como aliás a Perfídia, a Calúnia, a Fraude, o Rancor, a Ignorância e a Suspeita
(ver obra completa aqui). Já a Verdade está cruamente nua.
Nua está também a Verdade de Jules Joseph Lefebvre.
Digo isto, porque muitas vezes nos deparamos com figuras femininas alegóricas em que, ao que parece, é o serem alegóricas que justifica a nudez dos seios — ou do resto do corpo. O que é estranho. Não vos é difícil compreender porque é que a Liberdade de Delacroix guia o povo de seios ao léu? Bom, mas também é verdade que, no célebre Almoço na erva de Manet, também não se percebe porque está nua uma senhora que não parece ter nenhuma função particularmente simbólica. De facto, não faltam na história da pintura mulheres nuas ao lado de homens vestidos. Lembro-me de ter comentado, quando vi a estátua funerária no cemitério de Svendborg, que, pelos vistos, tudo era pretexto para imagens de seios nus, numa época em que o corpo se escondia. Se calhar, é sobretudo disso que se trata… 

Um motivo bastante recorrente[1]nas artes plásticas do Neoclassicismo é a chamada Caritas Romana, a «Caridade Romana». Bom, não sei se caridade é aqui a melhor tradução de caritas. A caritas latina é um conceito mais abrangente do que a nossa caridade: é «estima», «afeto», «ternura», «amor», «apreço»… e também «caridade». Mas, enfim, para seguir a tradição, refiro-me aqui a esse motivo como Caridade Romana. Um motivo muito estranho…

A Caridade Romana é uma história exemplar da antiguidade greco-latina.  No livro quinto dos Nove Livros de Feitos e Dizeres Memoráveis, uma coleção de contos breves que data do ano 30 ou 31, Valerius Maximus conta a história de uma mulher condenada à morte, que, na prisão, é salva de morrer de fome pela filha que a amamenta quando a visita. Quando o carcereiro descobre o que se passa, conta aos seus superiores hierárquicos, que fazem chegar a história ao conselho de juízes. Maravilhados por tão incomum relato de amor filial, os juízes perdoam a pena à mulher. E Valerius Maximus acrescenta que a mesma qualidade teve uma mulher chamada Pero, que salvou da mesma forma o seu pai Cimon, também condenado à morte por inanição[2].

Conhecem-se pinturas e estátuas também do século I que têm a Caridade Romana como motivo, mas não se sabe se a história era já conhecida antes da obra de Maximus ou se foi ele que a inventou. Na sua História Natural, publicada cerca de 45 anos depois da obra de Maximus, Plínio o Velho conta uma versão ligeiramente diferente da história, em que a mãe da mulher não só é libertada como a família recebe das autoridades locais uma pensão vitalícia.  

Podem ler muito mais sobre a história e o motivo da Caridade Romana na arte ocidental na Wikipédia, que é onde fui buscar esta informação. 

É claro, podem encontrar-se para a ressurreição e para o sucesso da história da Caridade Romana no período Clássico boas explicações culturais, algumas delas ancoradas em mitos e símbolos primordiais, e também a justificação moral de ser um exemplo extremo de dedicação filial. Podem ser essas as razões, mas também me parece provável que o sucesso do motivo esteja no seu caráter erótico. Não nos parecerão hoje muito eróticas estas imagens, mas o contexto em que foram criadas era outro e, nesse contexto, eram bem capazes de ter uma carga erótica — para os homens. É um erotismo que pode resultar apenas da exposição dos seios nus de Pero — e podemos especular se é mais provável a identificação erótica dos espetadores das obras com Cimon ou com o carcereiro que espreita a cena — mas há também casos em que a filha e o pai parecem um casal (imagens 1 e 8 abaixo, por exemplo). Curiosamente, até um caso em que um casal real, o conde Franz de Paula von Hartig e a sua esposa Eleanore,  é retratado em 1797 como Caritas Romana

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Giovanni Francesco Barbieri (il) Guercino (data incerta, anterior a 1661).
É de notar que Guercino fez também outras versões de Pero e Cimon.
A própria cena de amamentação de um adulto pode ter um caráter erótico. É aliás de notar, a propósito, que a grande fortuna do motivo de Pero e Cimon (alguns pintores, como Rubens ou De Crayer têm mais que uma obra sobre o motivo) contrasta com a quase ausência de pinturas baseadas na versão feminina da história. A única versão que encontro é esta de Guercino aqui à direita.    

É um motivo estranho, como eu dizia. Se se aceitar, como eu proponho, a possibilidade de uma leitura erótica, levanta-se de imediato a questão do caráter incestuoso da cena, acrescido, na versão feminina, de uma intimidade entre mulheres que pode apontar para homossexualidade. (Maximus escrevia, desculpando a filha da sua primeira história: «Alguém poderia pensar que era algo contra a natureza, se a primeira lei da natureza não fosse amar os pais.») Mas há outros aspetos desviantes relativamente à sexualidade socialmente sancionada na altura, que talvez tenham sido importantes para a erotização do motivo: o facto de mostrar uma cena de intimidade com uma mulher lactante (quando o sexo com lactantes era tabu, independentemente de quem fossem)[3], e ademais numa prática sexual não canónica, a lactação erótica.

Notem que tudo isto é, enfim, resultado de reflexões breves e de impressões, e não de nenhum estudo aturado. É só uma conversa num blogue, sobre um tema que achei curioso, mas de que não tenho grandes conhecimentos. Deixo-vos aqui uma seleção de 16 versões pictóricas da Caridade Romana, de 1538 a 1700 mais duas relacionadas com o motivo sem o tratarem diretamente, e vocês me dirão também a vossa impressão. 

É interessante notar que, independentemente de alguns tratamentos mais únicos da história, há vários modelos do motivo que se vão fixando. Relativamente ao enquadramento e à postura e atitude de Pero, há sobretudo dois modelos. Num deles, Pero olha para longe do pai, talvez envergonhada com o que está a fazer, às vezes claramente preocupada com ser descoberta pelo guarda. Noutro, Pero olha para baixo para o pai, numa atitude talvez carinhosa, talvez condoída, talvez protetora. E, noutro modelo ainda, pouco recorrente, Pero olha para baixo, mas sem olhar para o pai, com um olhar ausente. Quanto à exposição do corpo de Pero, há pinturas em não se revelam os seios; outras em que se revela apena o seio que amamenta, outras em que, às vezes de forma talvez algo despropositada se revelam ambos os seios ou todo o corpo nu. Nalgumas obras, Pero faz-se acompanhar do seu próprio filho, o que, além de tornar explícita a razão de ela ter leite, dá uma outra dimensão à obra: Pero já não é só a filha que faz de mãe, é realmente mãe. Numa curiosa pintura atribuída a Niccolò Tornioli (imagem 12), a criança protesta, talvez por ter fome, sentindo-se preterida na amamentação. É também interessante constatar a presença do carcereiro ou de dois carcereiros que é comum nas representações da Caridade Romana. Veem-se quase sempre só rostos, geralmente por trás de grades e/ou no escuro. Parece-me fácil encontrar algo de voyeurismo nestes guardas. 

Quero só, para terminar, chamar a atenção para dois aproveitamentos tardios deste motivo, ambos com tonalidades claramente ideológicas, se bem que muito diferentes um do outro (são as últimas imagens da série):

Numa obra do início do séc. XIX, Louis Hersent pinta uma índia a amamentar Bartolomé de Las Casas que parece estar muito doente. A intenção da pintura é clara: mostrar que os índios («os selvagens», nas palavras do autor) tinham por Las Casas um amor igual ao que a Pero clássica devotava ao seu pai. É difícil decidir se a presença de um elemento masculino, um índio jovem, talvez companheiro da amamentadora, serve para deserotizar a cena ou se tem o efeito contrário, precisamente. 

Numa obra de 1969, Balada Guerrilheira (Партизанская баллад), o pintor soviético/bielorrusso Mai Dantsig usa o motivo numa representação heroica de uma cena da Segunda Guerra Mundial, em que uma guerrilheira amamenta um companheiro ferido.

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1. Georg Pencz, 1538

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2. Sebald Beham, 1540

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3. Peter Paul Rubens, 1612

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4. Dirck Van Baburen, entre 1618 e 1624

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5. Hendrick ter Brugghen, 1622

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6. Gaspar de Crayer, entre 1620 e 1630

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7. Peter Paul Ruben, 1630

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8. Johannes Cornelisz Verspronck, entre 1633 e 1635

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9. Pieter van Mol, entre 1630 e 1650

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10. Gaspar de Crayer, 1645

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11. Giovanni Andrea Sirani, meados do séc. XVII

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12. Niccolò Tornioli, entre 1645 e 1650

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13. Anónimo, 1650

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14. Gerard van Honthorst, meqados do séc. XVII

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15. Provavelmente Lorenzo Pasinelli, cerca de 1670

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16. Carlo Cignani, entre 1690 e 1700

31%201808%20Louis%20Hersent%20Las%20Casas%20malade%20soign%C3%A9%20par%20les%20sauvages%201808
Louis Hersent: Las Casas doente tratado pelos selvagens, 1808

Mai%20Dantsig%20Partisan%20Ballad%201969
Mai Dantsig, Balada Guerrilheira, 1969

Sobre a proveniência das imagens: a grande maioria são imagens do domínio público, com uma licença Creative Commons, encontradas na Wikipedia. Quanto às poucas que o não são, creio que o seu uso se pode considerar legítimo, nos moldes e no contexto em que aqui as utilizo.


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Notas:


[1] Pode descarregar-se uma apresentação de Power Point com uma coleção de mais de meia centena de pinturas e esculturas com este motivo no site de Assaf Feller

Também há uma página da Wikipédia que reúne mais de meia centena de pinturas com este motivo.

[2] Traduzido do latim com Google translate e um bocadinho de bom senso:

No tribunal, o procônsul condenou uma mulher, por crime capital, à morte na prisão. Quando ela foi recebida na prisão, o encarregado da guarda, levado pela compaixão, não a estrangulou imediatamente; mas, ao fim de vários dias, começou a interrogar-se sobre como se sustinha tanto tempo e, observando-a mais de perto, viu que a filha dela lhe matava a fome com leite do seu peito. A notícia deste espetáculo, tão maravilhoso, foi por ele transmitida ao triúnviro, e do triúnviro ao pretor, e do pretor ao conselho de juízes, e levou a que fosse perdoada a pena à mulher. (…)

A mesma qualidade se deve considerar que tinha a piedade de Pero, que, tendo tido o seu pai Mícon uma fortuna semelhante, e tendo-lhe sido entregues a ela os cuidados da sua velhice, cuidou dele como se fosse uma criança criada no seu peito.

[3] Para uma análise profunda e abrangente do tema, no contexto da representação do aleitamento na arte ocidental, aconselho a obra da historiadora Jutta Gisela Sperling Roman Charity, Queer Lactations in Early Modern Visual Culture, disponível em Acesso Aberto (pode descarregar-se aqui) Jutta Sperling refere a questão da proibição de relações sexuais com lactantes e acrescenta, entre muitas outras, a interessante ideia de que a Caridade Romana é uma imagem de reforço simbólico do poder paterno, porque, por um lado, faz desaparecer uma das figuras responsáveis pela transmissão da linhagem, a mãe (já não é ela a figura lactante), e implica, por outro lado, uma submissão extrema da filha (dos filhos em geral) ao pai.