21/06/22

Nota de viagem

«24 de maio: Da varanda da casa onde ficámos, em Zadar, o que se vê podia ser Portugal: as vivendas e os quintais, com nespereiras, figueiras, oliveiras e cerejeiras. Só o que parece muito mais Dinamarca que Portugal é a rapariga de bicicleta, certamente a caminho da escola, de mochila às costas e sem mãos no guiador, comendo o pequeno-almoço enquanto pedala.»







Dois artigos de jornal [Crónicas de Svenddborg #43]

Dois artigos curiosos de jornais dinamarqueses:

O primeiro é do Semanário de Svendborg (UgeAvisen Svendborg), um dos jornais locais que recebemos gratuitamente. É um artigo de setembro do ano passado e conta a história de Ebba Hackmann, uma senhora que, quando o artigo foi publicado, fazia trabalho administrativo na firma Elektro Svendborg – desde 1959! Digo fazia, porque não sei se a senhora continua a trabalhar. Ebba tinha nessa altura 91 anos e continuava a trabalhar a tempo inteiro. A firma é agora da filha, mas já foi dela e do marido. O marido tinha morrido três anos antes, com 91 anos, e também trabalhou sempre na firma até morrer. Quando a filha ficou a ser proprietária da firma, em 2007, Axel Hackmann, então com 80 anos, passou de diretor a paquete e foi como paquete que continuou a trabalhar até ao fim da vida. 

O segundo artigo é muito mais antigo. Na página em que o encontrei, não dizia, infelizmente, em que jornal tinha sido publicado. Podia bem ser um conto romântico, ou parte dele, mas é apenas uma notícia de jornal, de 15 de fevereiro de 1915. 

«Uma senhora idosa, pobre mas bem vestida, entrou no “Prestamista Barato”, em Overgaden Neden Vandet Nº 29, em Copenhague, para empenhar a sua aliança de casamento. Olhando para a senhora, era fácil perceber que não tinha sido fácil para ela dirigir-se ao prestamista com a última recordação de momentos felizes. Estava muito abatida, mal conseguia falar e, no momento em que pôs o anel no balcão, caiu inconsciente no chão. O gerente da casa de penhores ligou imediatamente para a polícia e, pouco depois, chegou ao local uma ambulância, que transportou a senhora ao hospital municipal. Lá chegada, porém, os médicos verificaram imediatamente que havia já falecido. A senhora tinha sofrido um ataque cardíaco. E toda a assistência que se lhe pudesse prestar era já em vão.»

Pronto, era só isto. 

16/06/22

Há línguas em que é mais fácil brincar com as palavras?

[!!! Este texto pode ser muito difícil de entender para pessoas que não dominem muito bem a língua francesa. Dada a natureza dos textos franceses referidos e citados, é perfeitamente vã a tentativa de os traduzir.]

Já aqui fiz no blogue alguns comentários à tão popularizada ideia de que a língua determina a nossa perceção do mundo e à alegre falta de rigor com que muitas vezes se faz o escrutínio desta ideia. E hoje venho, vejam lá, sugerir que talvez a língua possa de facto interferir na nossa relação com o mundo. Mais concretamente, venho sugerir que bem pode haver línguas em que é mais fácil que noutras «brincar» com a própria língua: fazer humor e literariedade. E, mais concretamente ainda, sugiro que é provável que em francês seja mais fácil fazer trocadilhos e rimar [pelo menos, no sentido em que entendemos rima hoje em dia na nossa cultura] que nas outras línguas que conheço. E isto porque
  • o francês é uma língua de acento fixo, o que torna as coisas muito mais fáceis; e
  • a evolução fonética do francês foi, antes de mais, no sentido de um vocalismo muito forte, e portanto uma perda de muitos sons consonânticos, gerando assim
    • um número muito grande de palavras e sequências homófonas (fundamental para os trocadilhos) e
    • menos sons possíveis em final de palavra (fundamental para a rima).
Convém esclarecer que não estou de modo algum a apresentar a conclusão de algum estudo que tenha feito, longe disso, mas sim a propor um projeto de investigação, a mim próprio ou a quem nele queira pegar, que se baseia num observável simples: há mais formas [foneticamente] convergentes em francês que nas outras línguas que conheço.

Para dar dois exemplos muito simples [mas há muitos, muitos!], a forma /vɛ̃/ pode provir de vários étimos diferentes: de vinum [vin], de vi[gi]nti [vingt], de vanus[vain], de vēnī [vins], de vēnistī [vins] e de vēnit [vint]), da mesma forma que /po/ pode derivar de pellis ou de potus e /depo/ tanto pode corresponder a des pots como a des peaux como a dépôt.

É certo que, se que esta convergência de formas se deu, é porque não causa ambiguidades, senão ela não podia existir. Mas, existindo no discurso comum sem causar ambiguidades, está disponível para ativamente se construírem, a partir dela, trocadilhos e jogos de palavras ou com as palavras. Não deve ser por acaso que são em francês os exemplos mais famosos de holorrimas, isto é, rimas em que não rima só o fim do verso, mas sim o verso inteiro. Creio que a holorrima mais famosa é de Marc Monnier, nos célebres versos
Gall, amant de la Reine, alla, tour magnanime ! ,
Galamment de l'Arène à la Tour Magne, à Nîmes.
que se pronunciam exatamente da mesma maneira. Outros exemplos são
Par les bois du Djinn, où s'entasse de l'effroi,
Parle et bois du gin !… ou cent tasses de lait froid.
de Alphonse Allais, ou
Dans ces bois automnaux, graves et romantiques,
Danse et bois aux tonneaux, graves et rhums antiques
de Jacques Prévert. Mas há muitas mais. Vejam por exemplo, aqui, aqui ou aqui.

Transcrevo abaixo a letra da canção « Saucisson de Cheval », de Boby Lapointe, um exemplo radical do que é brincar com as palavras em francês — como aliás todas as canções de Boby Lapointe, o maior mestre dos jogos de palavras, que aconselho a explorar, se não conhecerem.

Um jogo de palavras assenta sempre numa relação entre um segmento sonoro pronunciado e um outro evocado na mente do ouvinte. Pode haver semelhança fonética ou total homofonia dos dois segmentos que constituem o trocadilho, com ou sem coincidência sintática. Por vezes o segmento não dito pode ser uma expressão fixa, o que facilita a sua evocação na mente do ouvinte; e por vezes a evocação do segmento pode também ser facilitada pela introdução prévia de um elemento no texto – ou pode mesmo haver, como no caso da canção transcrita abaixo, uma delimitação à partida de um determinado campo semântico [neste caso, o cavalo]. Como alguns jogos de palavras da canção podem não ser óbvios, mesmo para quem domine relativamente bem o francês, sublinho em cada verso a parte que deveria evocar outra coisa no ouvinte e deixo entre parênteses retos o segmento evocado. Não transcrevo os onomatopaicos refrães nem as breves passagens faladas, que, contribuindo sem dúvida para o humor e para o ambiente geral da canção, não são relevantes para o tema aqui discutido.

Se existem, em países de língua latinas ou germânicas, alguém que faça jogos de palavras como Boby Lapointe, não conheço. Mas será mesmo possível fazer canções como « Saucisson de cheval » noutras línguas? A pergunta não é de modo algum retórica: línguas há muitas e eu conheço muito poucas. Digam-me, pois: que sabem e opinam sobre o assunto? 
  
« Saucisson de cheval », 1966

C'est un saucisson de cheval, un saucisson que... (de cheval) [queue]
que je viens de faire, (à cheval) [fer]
c'est une chanson de saillies
Ah, chanson de saillies, (de cheval) [saillie]
moi qui suis esthète, (de cheval) [tête]
ah, je trouve ça beau (de cheval) [sabot]
génial, admirable, (de lapin) [râble]

Moi, qui viens de Grèce, (de cheval) [graisse]
je m'appelle au reste (de cheval) [Oreste] 
Tapaboufélos. (de cheval) [t’as pas bouffé l’os]
je débarque à Paris (de veau) [ris],
Oh, oh, quel régal, oh, (de cheval) [galop]
de prendre le métro. (de cheval) [trot]
Quand on ne connaît pas, (de cheval) [pas]
oh, ce qu'on s'amuse, oh ! (de bœuf) [museau]

Mes enfants, ma foi, [foie] (de cheval) [foie]
sont de vilains grognons. (de cheval) [rognons]
Quand ils pleurent en chœur, (de cheval) [cœur]
j'essaie de les distraire (les vaches) [traire]
Je viens à bout d'un, (de cheval) [boudin]
mais les autres aussi sont (de cheval) [saucisson]
toujours dans le besoin, (de cheval) [soin (?)]
ça ne peut pas être pis. (de chèvre) [pis]

Quel est cet aztèque (de cheval) [steak]
qu'on vient de voir filer (de cheval) [filet]
du haut de la côte (de cheval) [côte]
dans le précipice, en moto ?
Peut-être bien est-ce Thomas (de cheval) [estomac]
qui vient de me vendre (de cheval) [ventre]
un complet à carreaux (de cheval) [garrot]
et un gilet pied de poule.

Je désirais m'assoir (de cheval) [mâchoire]
et tu m'amenas au (de cheval) [naseaux]
canapé en rotin (de cheval) [crottin]
et mon cœur, vous fumiez mes cigares. [fumier]
N'étais-je pas l'affreux niais, (de cheval) [palefrenier]
qui fourbu s'affaisse (de cheval)? [fesse]
Ça fait rire les groupes (de cheval) [croupe]
ah, comme l'écurie est gaie ! [les culs rient] (aqui, inverte-se a lógica: o segmento relacionado com cavalo é o dito e não o evocado)



P. S.: Boby Lapointe desenvolveu o tema dos trocadilhos equestres, se se pode dizer assim, numa segunda canção com o mesmo fundo musical, « Saucisson de Cheval nº 2 ». O segundo salsichão de cavalo não é em nada inferior ao primeiro, mas não quero abusar da paciência dos meus leitores, pelo que não o transcrevo. A letra é fácil de encontrar na Internet.




15/06/22

A letra C e outras histórias de letras: uma viagem por vários alfabetos

[Tentei evitar, neste texto, o uso do alfabeto fonético internacional, que muita gente não conhece, mas nem sempre foi possível. Assim, transcrevo a maior parte das vezes para a pronúncia mais aproximada do português europeu, entre parêntesis retos [ ] em itálico, e, quando tenho mesmo de usar um símbolo fonético uso barras (/ /) e o símbolo sem itálico, acrescentando ainda uma nota que explica de que som se trata. Para referir letras, uso sempre maiúsculas em negrito: C.]


Em abril e maio fiz, com a minha mulher e um casal amigo, uma viagem de carro da Dinamarca à Geórgia (Geórgia) e volta. Fizemos 12.300 km por 14 países[1]: à ida, passámos pela Alemanha, Chéquia[2], Eslováquia, Hungria e Turquia; à volta, atravessámos de novo a Turquia e depois a Grécia, Albânia, Montenegro, Croácia, Eslovénia, Áustria e, claro, de novo a Alemanha. Foi uma viagem fascinante por várias gentes, paisagens, arquiteturas, histórias, culturas, gastronomias e línguas. Mas foi também uma viagem por vários alfabetos e várias variações de cada um deles. Talvez aqui venha a falar da viagem propriamente dita, ou de partes dela, pelo menos — dos lugares e situações por aonde passámos. Mas agora é mais de escrita que vos quero falar. Foi uma parte curiosa da minha experiência em viagem — reaprender a ler. Quando ao fim de duas semanas na Geórgia, comecei a juntar letras antes desconhecidas, timidamente, devagarinho, quase revivi a aprendizagem da leitura. Quase, digo bem, porque aprender um alfabeto novo não é exatamente a mesma coisa que aprender a descodificar a escrita pela primeira vez…

Antes de mais, uma panorâmica dos sistemas de escrita por onde passei. Não conto a Dinamarca, país de partida e de chegada, e país onde moro. Dos outros países por onde passámos, em onze deles usam-se versões locais do alfabeto latino (Alemanha, Chéquia, Eslováquia, Hungria, Turquia, Albânia, Montenegro, Croácia, Sérvia, Eslovénia e Áustria); em três deles, versões locais do alfabeto cirílico (Montenegro, Sérvia e Bulgária); na Geórgia, o alfabeto georgiano; e, na Grécia, o alfabeto grego. Agora, onze mais três mais um e mais um dá dezasseis e não catorze. É que a Sérvia e Montenegro têm dois alfabetos oficiais, o cirílico e o latino[3].

Nos países onde não se usa o alfabeto latino (Bulgária, Geórgia e Grécia), os nomes das localidades aparecem quase sempre na escrita local e numa forma latinizada: normalmente, adota-se uma transcrição/transliteração «internacional», que eu creio que, de facto, se baseia na tradição inglesa (CH para [tch], SH para [ch], KH para /x[4]/, etc.). Foi em grande parte a partir destas placas toponímicas em dois alfabetos que fui deduzindo os sons correspondentes às letras dos alfabetos novos, consultando depois Google em caso de dúvida, quando chegava a um sítio com ligação à internet.

Isto de se apresentarem os nomes das localidades também num alfabeto estrangeiro, não deixa de ser curioso, já que, nos países em que se escreve com alfabeto latino, não passa pela cabeça de ninguém transcrever em cirílico, em grego ou em georgiano os nomes das terras. E é pena, porque Braga havia de ficar bem como Брага, e ficam muito bonitos Córdoba como Κόρδοβα e Liverpool como ლივერპული, por exemplo. Também as matrículas dos automóveis, os códigos de identificação internacional de automóveis e os códigos ISO dos países são, em todo o lado, em alfabeto latino. E isto diz alguma coisa sobre como o alfabeto latino é de alguma forma considerado mais «neutro» ou «universal» — sobre como ele é, de facto, mais poderoso, por ser usado pela maior parte das nações mais poderosas nos últimos séculos, que colonizaram uma grande parte do mundo, o que faz com que seja atualmente usado por 70% da população mundial…). Por isto mesmo, num país que use um alfabeto não latino, ninguém espera — e acertadamente — que um estrangeiro saiba ler o alfabeto local. Lembro-me que, num hotel em Plovdiv, para me treinar na leitura do cirílico, li em voz alta закуска numa nota na parede ([zakusska], «pequeno-almoço») e que o rececionista se surpreendeu («Ah, sabe ler búlgaro?») e me informou — em inglês, note-se — que era das 7:00 às 10:00.

Já agora, de passagem, a questão das transcrições de um para outro alfabeto é interessante. Note-se, antes de mais, que não há uma forma única de transcrever de um sistema para outro, mas a transcrição depende antes da língua de chegada, porque normalmente se transcreve som e não se transliteram caracteres um a um. Assim, a transcrição de Чайкóвский para o alfabeto latino é normalmente Tchaikovsky em inglês (o T inicial é, em última análise, desnecessário…), Chaikovski em castelhano, Tchaïkovski em francês, e Ciaikovski em italiano, por exemplo, para a leitura, nessas línguas, se aproximar o mais possível do som russo original. E são questões de transcrição que justificam, às vezes, certas «anomalias» como a grafia turca de otomobile, otogar ou otel. A explicação é, quase de certeza, que as palavras automobile, autogare e hotel, importadas do francês, foram primeiro transcritas — foneticamente, sublinho — para a variante otomana do alfabeto árabe. Depois, quando a escrita do turco passou, em 1928, a fazer-se com o alfabeto latino, não se retomou a grafia original do francês, que seria confusa para um falante do turco que não estava habituado a ela, mas as palavras foram antes retranscritas, mais uma vez foneticamente, e é por isso que têm atualmente a forma que têm. Vi também, no programa em inglês de um balé que fomos ver em Tbilisi, na Geórgia, o nome próprio de Ravel escrito Moris. Mais uma vez, uma questão de retranscrição: o nome Maurice é, naturalmente, transcrito em georgiano como se pronuncia, მორის [moriss]. Ao retranscrever, a pessoa que escreveu o texto em inglês, transformou apenas as letras e sons georgiano nos correspondentes «normais» em inglês.[5] Vi também fakhitas num menu georgiano em inglês. Mais uma vez, o resultado de uma retranscrição: o som /x/ do jota castelhano em fajitas é transcrito em georgiano pela letra que o representa nesta língua: ; e foi depois retranscrito por KH, que é, na Geórgia, a sua mais habitual transcrição para o alfabeto latino.

Agora, um exemplo concreto de viagem alfabética: uma letra que é igual em todos os alfabetos e suas variantes por que passámos na nossa viagem, menos no georgiano, é a letra C. Notem que o C do alfabeto latino, derivado do gama grego, não tem a mesma origem que os CC dos alfabetos cirílico e grego, derivados ambos do chamado sigma crescente, uma variante cursiva do sigma grego. Mas têm hoje exatamente a mesma forma, de maneira que muita gente os verá como a mesma letra, apenas representando valores diferentes. Nos alfabetos cirílico e grego (atualmente, é muito pouco usado em grego), o C representa sempre o som /s[6]/: Sófia é Со́фия e Subotica é Суботица, e pronto. Não é muito fácil, para quem está habituado a outros valores de uma letra visualmente igual, habituar-se a isto: Сара lê-se [sara] e não [capa] e салат lê-se [salat]. Mas, com o tempo…

No alfabeto latino, o C representava originalmente o som /k[7]/; mas, nas diversas variações modernas desse mesmo alfabeto, o C pode representar vários sons. Pode ser, por exemplo, como em português, francês, castelhano americano[8] e inglês, /s/ antes de E e I, e, se não cedilhado, /k/ antes de A, O e U; e pode representar muitos outros sons. Mas não quero passar aqui em revista todos os possíveis sons que o C pode representar (vejam aqui) — interessam-me antes os novos sons de C que fomos encontrando na nossa viagem.

O primeiro contacto com um novo valor de C foi na nossa primeira paragem, em Pardubice, na Chéquia. A nossa amiga Alice, que nos acolheu, explicou-nos que o nome da terra se pronuncia [pardubitse[9]]. E nós ficámos a saber que era assim em checo, mas só mais tarde descobrimos que o C se lê assim em todas as outras línguas eslavas escritas com o alfabeto latino[10].

– Mas então –, perguntei eu à Alice, – mas isso significa que o teu nome se pronuncia [alitse] em vez de [alisse]… 

 – Em checo, sim –, disse ela, – mas, a pessoas que falam outras línguas, digo sempre como elas esperam ouvir. 

E a minha mulher, que é amiga dela há quase quarenta anos, não sabia que a Alice de Pardubice é, afinal, a Alitse de Pardubitse.

Em Pardubice aprenderam também os meus companheiros de viagem (eu já sabia) que o C com um circunflexo invertido, Č, se pronuncia [tch]. Mais tarde, descobrimos que há também um C com acento, Ć, que representa um som ligeiramente diferente no alfabeto latino servo-croata, mas que a maior parte de nós ouvirá e pronunciará também como [tch]. 

Zona, em servo-croata, escreve-se como em português
e pronuncia-se também quase da mesma maneira.
Mas o esloveno é diferente do servo-croata e a palavra
 pronuncia-se [
tsona] e escreve-se com C.
Obviamente, é mais fácil reter o valor de Č e Ć que de apenas C, que é uma letra que já se conhece, que já tem sons na nossa cabeça. Se, como referi atrás, é difícil habituar-se a um novo valor do C em cirílico — num contexto em que as letras à volta são diferentes das nossas —, mais difícil é habituar-se a um novo valor num alfabeto também latino: os meus companheiros de viagem passaram, de Pardubice em diante, a pronunciar bem os ČČ, que fomos encontrando, mas continuaram a pronunciar mal os CC — não havia maneira de se lembrarem, por exemplo, que carina, «alfândega» em servo-croata, se pronuncia [tsarina] e não [karina].

Também foi mais fácil para toda a gente aprender o valor do Ç do alfabeto turco, que é igual ao do Č dos alfabetos latinos de línguas eslavas, que o valor do C turco, que é [dj], como em inglês jeans ou gin. Aprendi isto na primeira noite na Turquia. A rececionista do hotel soletrou-me o código do wifi e quando ela disse [dj] eu escrevi um J, provavelmente porque o inglês é a língua que falo que tem esse som e J é uma das maneiras de o escrever.

– Não, não [j], [dj], [dj]!

E fez-me o sinal com a mão no ar. Um C? Escrevi um C

– Sim, [dj].

Evidentemente, se uma portuguesa dissesse a um turco que não conhecesse a escrita portuguesa para escrever [], ele escreveria S e não lhe passaria pela cabeça que a letra a que ele chama [djê] se pudesse usar para representar tal som…

Para terminar este longo devaneio, deixem-me só acrescentar que, para os meus companheiros de viagem, esta coisa de alfabetos e pronúncias não tinha interesse por aí além e eu aprendi rapidamente que era coisa que devia guardar para mim próprio, para não os chatear. 

Vejam se adivinham que companhia sueca de roupa
tem este símbolo na Geórgia.
Para a maior parte dos leitores do blogue, este texto também não terá grande interesse. Mas deu-me gozo escrevê-lo. Se houver um ou dois leitores que lhe achem graça, já fico satisfeito.





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[1] Quinze, de facto, mas só estivemos cerca de um quarto de hora na Bósnia e Herzegovina, de maneira que não conta. Também atravessámos apenas, quase sem parar, a Eslováquia, a Sérvia e a Áustria, mas deu para me ir entretendo com letreiros vários. Em termos de alfabetos, porém, a Eslováquia e a Áustria não têm nada de muito novo: o alfabeto eslovaco é quase igual ao alfabeto checo (e ao alfabeto servo-croata) e na Áustria usa-se a mesma variante do alfabeto latino que nos outros países de língua oficial alemã.

[2] A propósito da recente polémica sobre o nome do país, quero lembrar que Chéquia é a designação oficial em Portugal (a par, claro, de República Checa, da mesma forma que França também pode ser República Francesa ou Dinamarca pode ser Reino da Dinamarca). Também é de ler, sobre o assunto, um texto de Margarita Correia no DN.

[3] A mesma situação existe na Bósnia e Herzegovina. Na Sérvia, os dois alfabetos convivem em todas as esferas, exceto na esfera jurídica, em que o cirílico é obrigatório; em Montenegro e na Bósnia e Herzegovina, há uma prevalência do alfabeto latino.

[4] O som [x] é um som muito comum, que existe em muitas línguas, muito próximo do som do R gutural português em carro, por exemplo, e igual ao G neerlandês, a alguns CH alemães (como em Bach, por exemplo) e ao jota de vários falares castelhanos.

[5] Note-se, de passagem e um pouco a despropósito, que o criador de Lucky Luke, Maurice de Bevere, usava o nome artístico Morris.

[6] Como o nosso S em início de sílaba, quando não precedido de vogal (só, penso) ou os nossos SS (isso)

[7] O som /k/ é o som do nosso C em carro ou do nosso QU em quente. No chamado «latim eclesiástico», pronuncia-se o C do latim como em italiano moderno ([tch] antes de I e E, /k/ nos outros casos), mas na verdade, em latim pronunciava-se /k/. Bom, como quase todas as línguas, o latim nunca nasceu nem nunca morreu, apenas evoluiu, e a sua pronúncia foi obviamente mudando sempre, pelo que é pouco rigoroso dizer que isto ou aquilo se pronunciava assim em latim, mas isto é só para simplificar a conversa... Caesar, por exemplo, pronunciava-se [kaissar] e coelus, «céu», pronunciava-se [koiluss]

[8] Também na pronúncia andaluza e canária do castelhano europeu. Em castelhano europeu standard, porém, antes de E e I, o C tem o som /θ/, pronunciado com a língua entre os dentes (o chamado «S de sopinha de massa»), como o Θ grego, o Þ islandês e muitos TH em inglês.

[9] O último som é não é exatamente como o do nosso E átono, mas algo entre o nosso E átono e o nosso A átono. Talvez mais [pardubitsa] que [pardubitse]…

[10] Como se pronunciava também em português arcaico (pelo menos, na sua primeira fase) antes de E e I, ou quando cedilhado: cidade era [tsidade], faço era [fatso], etc.