28/08/18

Verosimilhança a duas dimensões

Quando se olha para o desenho acima, além de se notar logo que não foi feito pelo melhor ilustrador do mundo (este desenho o desenho abaixo são meus e foram feitos propositadamente para este texto de blogue), há algo que nos parece errado: tronco e pernas parecem-nos desproporcionados, a perna esquerda dos calções é-nos incompreensível, e a perna e o pé esquerdos parecem estar num aposição completamente impossível. No desenho abaixo, esses «erros» foram «corrigidos» e tudo nos parece mais normal.
Henri Cartier-Bresson (1908-2004) Rue Mouffetard, 1954.
P
onho uma versão pequena da foto, para fins didáticos, digamos
assim, porque a fotografia não é do domínio público, mas podem
vê-la com maior definição por exemplo neste site de leilões.
No entanto, o primeiro desenho está correto e o segundo é que tem erros. Os desenhos foram tirados da fotografia de Henri Cartier-Bresson que podem ver aqui à esquerda e as «correções» do segundo desenho foram inventadas por mim . Provavelmente, não há nenhum ângulo de que o rapaz se possa ver como eu o desenhei na segunda foto e as sombras que inventei são impossíveis. Mas não chocam o olho.

É curioso. Quando se fixa a duas dimensões um pedaço de realidade, há representações imediatas (no sentido original de «sem mediação») da perspetiva com que lidamos mal, ao passo que aceitamos sem problema perspetivas que não correspondem a nada no mundo real. Os ilustradores sabem isto – banem conscientemente certas perspetivas reais e usam outras que parecem bem, mas são irreais.

Notem que não se pode inferir daqui nenhuma desadequação geral dos sentidos à realidade, mas apenas uma esporádica desadequação dos sentidos à representação bidimensional. Mesmo que seja em fotografia. A fotografia de Henri Cartier-Bresson de que aqui falo é estranha. É claro, o realismo inerente à fotografia faz-nos aceitar como real a perspetiva que nos apresenta, ao contrário do que acontece com o desenho nela baseado – mas não deixa de ser estranha... Se estivéssemos onde ela foi tirada e víssemos a cena precisamente daquele ângulo mas a três dimensões, já nada nos pareceria estranho, não é verdade?

25/08/18

Coco, matapa, mucapata e galinha à zambeziana

A verdade é esta: comer (morfar, dar ao serrote, mandar para a blusa ou como queiram dizer, enfim…) é a atividade mais importante da vida das pessoas, voilà! É certo que, a partir de uma certa idade, o sexo compete com a comezaina, mas nunca lhe tira o primeiro lugar…

Agora, se o comer em si não tem muito que se lhe diga (é só não se esquecer de fechar a boca quando se mastiga, que senão parece mal...), já o fazer a paparoca é assunto vasto e que interessa muita gente, não é verdade? E parece impossível que, sendo das coisas que faço todos os dias, e com gosto!, fale aqui tão pouco de culinária. Está mal. A ver se começo a dar mais receitas, dicas ou conselhos de cozinha, ou, pelo menos, a falar de come e bebes. Hoje, deixo-vos três receitas moçambicanas. Se não as conhecerem, experimentem, que são naices; se já conhecem, vejam lá se as minhas receitas coincidem com o que conhecem. Mas antes, como as três receitas que vos proponho levam todas coco, deixem-me falar um pouco do coco, que é uma fruta interessante.

Coco 
O coqueiro é uma palmeira, que é uma coisa que parece uma árvore, mas não é. Mas como é de comida e de não botânica que se trata, fica essa conversa para outra altura, sim? A fruta do coqueiro é o coco, que é o que aqui nos interessa.

Sobre o nome do fruto, uma curiosidade: Parece que o nome do fruto, semelhante em várias línguas, vem do nome de uma antiga entidade fantástica portuguesa, que era usada para assustar crianças – ou seja, o equivalente do moderno papão ou homem do saco. É esta a origem proposta, por exemplo, pela Real Academia Espanhola. Descobri na Wikipédia que João de Barros «conta» esta origem na terceira das suas Décadas da Ásia (1563):
Um fantasmagórico coco (Wikimedia Commons)
Tem mais este pomo tão proveitoso outra casca de mui duro páo , per cima da qual ficam os finaes daquelles nervos , e fios da outra , á maneira do entre-casco da sovereira ou (por melhor dizer ) á maneira de huma noz descuberta da casca verde. Esta casca per onde aquelle pomo recebe o nutrimento vegetavel , que he pelo pé , tem huma maneira aguda , que quer semelhar o nariz posto entre dous olhos redondos , per onde elle lança os grellos , quando quer nascer : por razão da qual figura , sem ser figura , os nossos lhe chamáram coco , nome imposto pelas mulheres a qualquer cousa , com que querem fazer medo ás crianças , o qual nome assi lhe ficou , que ninguem lhe sabe outro, fendo o seu proprio , como lhe os Malabares chamam, Tenga, e os Canarijs, Narle.
É claro, pode agora discutir-se de onde vem o nome da aventesma, como o faz Joan Coromines, por exemplo, mas, como é de comida e não de etimologia que se trata, fica também isso para outra vez. E sobre cocos e coqueiros acrescento que:
   • a parte dura (o caroço) do fruto está envolta numas fibras chamadas cairo, que têm várias utilidades;
   • em Moçambique chama-se cafurro à casca dura do coco, que é usada como lenha;
   • a polpa seca do coco chama-se copra e é dela que se faz o óleo de coco;
   • a folha do coqueiro e outras palmeiras, trançada ou não, usa-se como cobertura de casas – é conhecida em Moçambique com o nome de macute, macúti ou macubar; e
   • da seiva do coqueiro faz-se uma bebida (alcoólica) chamada sura em Moçambique, que, para o meu gosto, é fixe quando está pouco fermentada e menos fixe quando fermenta muito.
E por agora chega – mas quem queira saber mais pode ver aqui mais usos dos cocos e dos coqueiros.

Leite de coco 
Passamos agora à parte mais propriamente culinária. Quando o coco é jovem, chama-se lanho. Só mais tarde ganha o nome de coco mesmo coco. Para se saber se um coco ainda é lanho ou já é coco, abana-se. Se não chocalhar, é porque está completamente cheio de água – é lanho e a água é boa para beber, mas a polpa não presta para fazer leite de coco. Se a quantidade de água já tiver diminuído lá dentro e, por isso, chocalhar, já é coco – a água não é tão boa, mas a polpa pode usar-se para cozinhar. O leite de coco é simples de fazer, mas dá algum trabalho:
Em Moçambique, usa-se um ralo, que é mais prático que um ralador, mas, 
claro, poucos serão os leitores deste texto que tenham uma coisa dessas…
Abre-se um coco, tira-se a polpa branca e rala-se com um ralador. Põe-se a polpa ralada dentro de água acabada de ferver e coa-se com um passador. Pode repetir-se a operação e pode espremer-se bem a polpa do coco no passador com uma colher.

É só isto. Agora, não estejam à espera que o leite de coco cheire logo muito: ele só começa a cheirar mesmo depois de cozinhado. Não havendo cocos à mão, pode comprar-se leite de coco já feito, em lata – não é a mesma coisa, claro está, mas também fica bem.


Matapa
Bom, há matapa com vários ingredientes e várias grafias, mas não quero aqui discutir se a verdadeira matapa é a de folhas de mandioca e só é matapa se levar amendoim e camarão seco. Se não quiserem chamar matapa ao prato de que aqui dou a receita, pois muito bem (saberá bem com qualquer nome, como a rosa do outro…), mas é esse o nome que lhe dá a minha amiga moçambicana com que o aprendi a fazer. Leva cebola, alho, óleo ou azeite, tomate, folhas de abóbora (jovens, tenrinhas, que não sejam ainda muito fibrosas), coco e sal.

Primeiro, faz se um refogado normal, com cebola e alho. À parte entalam-se as folhas de abóbora. Depois, picam-se as folhas e juntam-se ao refogado. Junta-se em seguida o tomate, pelado e picado. Enquanto a hortaliça apura, prepara-se o leite de coco, que depois se junta ao resto. Deixa-se cozer tudo muito tempo e pronto, é grande petisco!

«E não se pode substituir as folhas de abóbora por outra coisa qualquer, porque folhas de abóbora tenrinhas não se arranjam em lado nenhum?» Podem usar espinafres ou acelgas. De preferência acelgas, porque o espinafre tem muito sabor… a espinafre. Também fica bom.

Mucapata
Feijão-soloco com casca (Wikimedia commons) e
um saco de feijão-soloco já descascado.
A designação Phaseolus aureus é incorreta.
Mucapata é um acompanhamento moçambicano muito fixe e muito fácil de fazer: é só cozer arroz com leite de coco e com uma leguminosa chamada em Moçambique feijão-soloco (ou soroco ou holoco, com agá pronunciado), cujo nome técnico é Vigna radiata. Há quem ponha duas porções de arroz para uma de feijão-soloco, há quem faça metade-metade; há quem coza o arroz e o feijão-soloco em água e ponha o leite de coco no fim, há quem coza já com o leite de coco. Eu ponho metade-metade (mais ou menos) e cozo um bocado só com água e depois é que junto o leite de coco e deixo cozer até ficar tudo muito bem cozido. Decidam vocês o que vos agrada mais, depois de experimentar as várias possibilidades. Agora, cuidado, que o arroz e o feijão-soloco cozidos juntos têm tendência a pegar – deixem lá o Facebook para depois do jantar.

«Mas», perguntam agora vocês, «onde se arranja esse tal feijão taralhouco ou lá o que é?» Pois, não sei, mas devem conseguir encontrar numa dessas delikatessen exóticas que há. Aqui em Svenborg, arranjo com facilidade e já descascado – e ainda bem, porque descascar feijão-soloco é uma seca, e mucapata com a casca do feijão, nein danke!

Galinha à zambeziana 
Finalmente, a galinha à zambeziana à minha moda:
Arranja-se, se possível, uma galinha rija, galinha mesmo galinha. Coze-se a galinha em pouca água com leite de coco e uns bocados de cebola e pimento, mas só até estar meio cozida. Depois, pincela-se a galinha com azeite e alho e põe-se a assar na grelha. Vai-se pincelando sempre com o leite de coco (eu agarro na varinha e passo a cebola e o pimento dentro do leite de coco que usei para entalar a galinha, de maneira a que fique uma mistura relativamente espessa) até estar a pele bem tostada. Também se põe piripiri, onde se quiser: no líquido de cozer e pincelar; no frango juntamente com o azeite e alho; ou no prato depois de cozinhado... Quando se usa frango de aviário, como é geralmente muito mole, o mais avisado é não se cozer primeiro, paciência, e pincelar-se só com os temperos e com o leite de coco enquanto se assa.

Bom proveito! E perdoem-me a falta de fotografias dos pratos, mas não quis esperar até à próxima vez que os fizesse para publicar este texto. Enfim, deixo-vos pelo menos um bocadinho de música de fundo para a patuscada.



20/08/18

Enfim...

Quatro excertos de textos que encontrei na Internet (traduzo e sublinho eu):
A famosa sequência de Fibonacci cativou matemáticos, artistas, designers e cientistas por séculos. Também conhecida como Proporção Áurea, a sua omnipresença e a sua surpreendente funcionalidade na natureza sugere a sua importância como característica fundamental do universo. (Daqui.) 
Os números de Fibonacci são o sistema numérico da natureza. Aparecem em toda parte na natureza, desde a organização de folhas nas plantas até ao padrão das flores reduzidas no capítulo de uma flor composta, as escamas de uma pinha ou de um ananás. (Daqui
A Proporção Áurea manifesta-se em muitos lugares do universo, incluindo a Terra, faz parte da natureza da Terra e faz parte de nós. (Daqui)
Não seria estranho se precisamente o mesmo padrão fosse encontrado em diversas formas de vida em todo o universo? Bem, esse padrão existe e chama-se Proporção Áurea. (Daqui
São exemplos de afirmações que se fazem sobre duas coisas relacionadas, a progressão de Fibonacci e a Proporção de Ouro. Podia falar da muita batota que há no fazer coincidir formas naturais e formas geométricas, podia dizer que pretender conhecer os padrões de formas de vida em todo o universo (ena!) me parece algo exagerado, mas não, deixo isso tudo de lado. digo só que me parece muito estranho pressupor que a taxa de ocorrência na natureza de formas geradas por uma determinada sequência numérica seja superior à das formas geradas por outras sequências geométricas. Hmmm…

Posso estar a ver mal a coisa, mas parece-me que o valor de verdade da afirmação de que há uma grande taxa de ocorrência na natureza – mesmo que isso queira significar apenas «acima da média» – é claramente inverificável. Para não ser impressão contra impressão, que não leva a lado nenhum, proponho o seguinte: Observem qualquer porção aleatoriamente escolhida da natureza, como a imagem abaixo, e digam-me quantas formas ocorrem; quais ocorrem mais, no caso de haver repetições; e, já agora, que sequência numérica as gera. Repitam a experiência com um número de paisagens que considerem significativo (um bocado de maqui provençal, que sei eu?, de desfiladeiro andino, de floresta de miombo, de deserto indiano, de… de… de…) e digam-me a que conclusões chegaram sobre que formas são mais recorrentes e em que lugar aparece a espiral gerada pela sequência de Fibonacci. Depois, retomamos a conversa.


Os ombros do ofício

Já não me lembro como, encontrei no outro dia um vídeo de um homem que diz que o seu ombro esquerdo é mais alto que o direito, porque pratica arco há muito tempo. O que há de uma pessoa pensar de uma coisa assim? Não vou pôr aqui imagem nenhuma para o provar, até porque eu sei que vocês confiam em mim, mas o meu ombro esquerdo é muito mais alto que o meu ombro direito e nunca fiz arco na vida. A conclusão é capaz de ser que fazer tiro ao arco e trabalhar com o rato do computador têm um efeito semelhante sobre os ombros de uma pessoa – pelo menos em indo para a idade…

13/08/18

Geografia e língua

Quando era rapaz novo, adolescente ainda, tinha a teoria que o frio fazia fechar as vogais. Isto para que vocês vejam que há muito tempo que sou obcecado por coisas de língua e  que surgem facilmente teorias muito esquisitas na cabeça de uma pessoa que pense muito num determinado assunto sem o ter estudado de uma forma organizada e sistemática. A minha ideia vinha da constatação de que as vogais do português europeu eram mais «fechadas» que as do português africano e americano, como as vogais do inglês do sul da Grã-Bretanha eram mais «fechadas» que as dos dialetos do norte da ilha, Escócia incluída, e que o francês do sul de França também tinha vogais mais abertas que o francês do norte e do Canadá. Não me lembro se pensava mesmo que se abria menos a boca para não deixar entrar o ar frio ou que explicação arranjava para a minha ideia, mas, enfim, parece-me hoje uma coisa tão sem pés nem cabeça que não faço ideia hoje de como a posso ter pensado.

Lembro-me também de que uma vez, um amigo meu dinamarquês, que viveu em Portugal um ano e que encontra semelhanças entre as pronúncias do português e do neerlandês*, pôs uma vez a hipótese de que o português e o neerlandês, línguas de navegadores, se tivessem adaptado à comunicação a bordo, onde era preciso falar mais alto (?), e que, por isso, tivessem desenvolvido características comuns às duas línguas. A ideia não era nem mais nem menos estapafúrdia que a minha hipótese da relação entre temperatura média de um lugar e abertura das vogais da fala dos seus habitantes. E, como a outra, é ideia que não faz grande sentido. Digamos que é um bocado como a história que tantas vezes se ouve de que o r gutural de Lisboa é de origem francesa: é uma teoria de quem não faz grande ideia de como se processa a evolução de uma língua.

Há, porém, quem saiba de línguas e defenda que as condições geográficas e climáticas possam afetar a fonologia das línguas. Descobri até, há pouco tempo que foi já proposta, por exemplo, uma variação da minha tese de adolescente, mesclada um bocadinho com a ideia do meus amigo dinamarquês de que uma língua pode evoluir para se ouvir melhor em certas condições, segundo a qual «as línguas indígenas de climas tropicais e subtropicais, em contraste com as línguas faladas nas zonas temperadas e frias, manifestam altos níveis de sonoridade», nomeadamente um maior recurso a vogais relativamente a consoantes (artigo aqui), já que «uma sonoridade elevada, por exemplo nas vogais (versus consoantes), aumenta o poder de transmissão dos sons da fala e, consequentemente, a audibilidade à distância».

Mas não é esse o artigo que aqui me traz, até porque não o li ainda. Quero antes falar dum artigo que Caleb Everett publicou em junho de 2013 e que teve bastante fortuna na imprensa da época, em que defendia uma relação entre a existência de sons ejetivos (ver nesta lista de vídeos de que sons se trata) numa língua e a altitude a que essa língua é falada:
Constatou-se que as línguas com consoantes ejetivas fonológicas ocorrem mais perto de regiões habitáveis de alta altitude, quando comparadas com as línguas sem essa classe de sons. Além disso, constatou-se que as elevações médias e medianas das localizações de línguas com sons ejetivos eram comparativamente altas.
A explicação que Everett dá para esta correlação positiva entre ejetivas e altitude é a seguinte:
Sugerimos que sons ejetivos possam ser facilitados em maiores elevações devido à diminuição da pressão do ar ambiente, o que reduz o esforço fisiológico necessário para a compressão do ar na cavidade faríngea (…). Além disso, pomos a hipótese de os sons ejetivos poderem ajudar a fazer diminuir a perda de vapor de água através do ar expirado. Isto explica como uma redução da densidade do ar ambiente pode fazer aumentar o uso de fonemas ejetivos numa determinada língua.
Em abstrato, não tenho nada contra o (neo)determinismo geográfico (como já aqui o disse uma vez), mas o estudo de Everett não me convence. Antes de mais, há algumas questões de base nos trabalhos feitos com este tipo de metodologias (estatísticas de ocorrência de traços linguísticos relacionadas com fenómenos não linguísticos) que põem de sobreaviso muita gente. Um artigo de Mark Liberman no blogue Language Log dava bem conta de algumas questões levantadas pelas correlações encontradas pela análise estatística.
Quer a correlação altitude/ejetivas revele ou não uma relação causal, é de esperar que surjam, no futuro próximo, um grande número de análises correlacionais espúrias, a par de algumas análises significativas.
(1) A existência de conjuntos de dados digitais torna cada vez mais fácil fazer verificações quantitativas de hipóteses sobre possíveis relações entre variáveis linguísticas e não linguísticas;
(2) O número astronómico das relações possíveis faz com que muitas delas revelem, por puro acaso, fortes relações de pares, mesmo que todas as distribuições fossem estatisticamente independentes; (…)
Assim sendo, os editores de jornais responsáveis devem insistir, pelo menos, numa coisa simples: a comparação da correlação proposta com a distribuição completa das relações logicamente possíveis no(s) conjunto(s) de dados analisados.
E acrescenta que essa verificação não fora feita para o artigo de Everett, mas foi feita por Sean Roberts em alguns minutos, enquanto esperava por um avião no aeroporto de Singapura. Os resultados de Sean Roberts (que não recusa a hipótese de Everett) mostram que características impossíveis de explicar pela altitude, como a ordem de objeto e verbo e a relação entre a ordem de objeto e verbo e a ordem de adjetivos e nomes estão mais diretamente relacionadas com a altitude que a presença de ejetivas. Além disso, a variante tamanho das populações de falantes prevê melhor a ocorrência de ejetivas que a altitude.

Evidentemente, isto não prova que a tese de Everett não seja boa. Mas também não há, no trabalho de Everett, verdadeira prova da veracidade da hipótese. Everett parece descurar, na elaboração da sua hipótese e na metodologia que usa, algumas questões propriamente linguísticas e biológicas de base. Como no caso da famosa proposta da relação entre existência de futuro numa língua e as poupanças dos seus falantes ou em propostas semelhantes de uma pretensa relação causal entre língua e cognição, por muito que o trabalho seja feito com rigor, os pressupostos que o fundamentam são, no mínimo, discutíveis.

Os comentadores do Language Log levantam logo, por exemplo, uma questão óbvia: se a produção de ejetivas requer 25% menos força a 2500 m que ao nível do mar, mas a menor pressão faz também que essas mesmas ejetivas sejam menos percetíveis em altitude, porque não se produzem ejetivas com 25% menos esforço ao nível do mar, ainda perfeitamente percetíveis? (A resposta é que muitas das zonas de línguas ricas em ejetivas são de zonas de baixa altitude, de maneira que…). Quero acrescentar à discussão algumas dúvidas que me vêm de imediato à mente. Se a produção de ejetivas for facilitada – ou mesmo motivada – pela altitude, isto deve implicar uma predominância das ejetivas em todos os períodos históricos, já que a altitude não muda, o que deve implicar, por sua vez, que esse traço se tenha mantido sempre estável nas línguas faladas em altitude, mas que tenha tido tendência a perder-se nas línguas que desceram para regiões mais baixas e que tenha começado a surgir nas línguas que se tenha deslocado para regiões mais altas. Além disso, não vejo razão para essa vantagem – ou motivação – das ejetivas se revelar especialmente em sons com pertinência fonológica, isto é, com valor no sistema, pelo que se deveria incluir na análise as ejetivas que ocorrem como variantes contextuais (como acontece, por exemplo, em certos dialetos ingleses e alemães). E não há, no texto de Everett, referência a este aspeto histórico, nem às ejetivas que não fazem parte do inventário de fonemas das línguas.

Acho que haveria que verificar isto tudo –  e mais** – , mas isto dá mais trabalho que analisar conjuntos de dados já organizados, prontos a analisar em programas estatísticos… E acho também que, até me serem apresentadas provas mais concludentes, vou continuar a pensar na influência da geografia na língua sobretudo como uma hipótese tão imaginativa como infundada que pus na minha adolescência…
__________________

* Tenho encontrado mais pessoas com a mesma opinião. Provavelmente, esta impressão é motivada sobretudo por dois traços comuns bastante conspícuos: os ll são muito semelhantes nas duas línguas e ambos diferentes da maior parte das outras línguas mais próximas, e o «r gutural» português soa-me igual ao g neerlandês da zona da Holanda (em rato e gaat, por exemplo). Mas não sei…
** Ver também, por exemplo, o artigo de Asya Pereltsvaig e Martin W. Lewis, que dá conta de outras incoerências na proposta de Everett.

07/08/18

Vítor com cê

Uma vez, demorei quatro horas para fazer os 45 quilómetros que separam Nicoadala de Quelimane, numa camioneta de caixa aberta que tinha apanhado em Mocuba. (Digo «apanhado», porque a camioneta, como todos os automóveis na altura, servia de transporte público – ou, como se dizia, «fazia chapa».) A camioneta ia atafulhada de gente e a estrada era uma faixa de grandes crateras. Mesmo num veículo ligeiro e com tração às quatro rodas (um «fòbaifó», como se diz em Moçambique), não se conseguia andar muito mais depressa. Muitos buracos da estrada tinham bem meio metro de fundura e era como viajar em mar picado, aquele descer e subir crateras. Uma pessoa ficava maldisposta. Do Alto Molócuè, onde eu morava, eram cerca de 350 km até Quelimane. Nessa altura, quem não tivesse transporte próprio só podia fazer assim a viagem, de chapa – e chapas eram todos os carros que passassem e onde se conseguisse encafuar mais um passageiro mediante o pagamento de uns quantos meticais. Dessa vez, o motivo da minha viagem a Quelimane era um cê. A sério.

Tinham-me roubado o passaporte em Chocas-Mar, uma praia idílica na província de Nampula, mesmo em frente à Ilha de Moçambique. Para se fazer novo passaporte, era preciso o meu assento de nascimento, que pedi que me enviassem de Lisboa. Felizmente, não era necessário ir a Maputo; havia um cônsul honorário em Quelimane, cuja secretária se ocupava deste tipo de coisas. Foi dessa senhora que recebi uma mensagem no Alto Molócuè. Nessa altura, não havia telefone na vila, mas podia comunicar-se por rádio com a estação dos correios e foi o funcionário dos correios a minha casa dar-me o recado:
– A senhora diz que há problema com o seu pedido de passaporte e que tem de lá ir falar com ela.
E eu fui, logo na manhã seguinte. Quando falei com a senhora, fiquei a saber que o problema era o cê de Victor – ou a sua falta.

O meu bilhete de identidade dizia que eu me chamava Vítor, mas o assento de nascimento dizia Victor. Não podia ser.
– Sempre tive Vítor no BI e o passaporte que me roubaram também tinha Vítor. Sempre escrevi assim o meu nome. Nem sabia que o assento de nascimento tinha Victor – disse eu à senhora. – É capaz de ter sido quando houve aquela reforma em 1973 em que se acabaram com os acentos graves, sabe? Se calhar, decidiram passar todos os Victores a Vítores…

Eu sabia que era uma explicação pateta, porque uma coisa não tinha nada a ver com a outra, porque o meu primeiro BI era anterior a 1973 e porque continuava a haver muitos Victores, mas a senhora lá se convenceu de que me podia passar o passaporte, «mas como estava no assento de nascimento». Fiquei com uma discrepância entre o BI e o passaporte, mas não me preocupei muito com isso. E continuei a escrever Vítor em todo o lado, como sempre tinha feito.

Quando fiz o pedido de residência na Dinamarca, escrevi Vítor. A funcionária que recebeu o pedido deu logo pela falta do cê.
– Nem sabe escrever o seu nome! – disse-me ela num tom de desdém.
 
Fiquei sem vontade de lhe explicar fosse o que fosse sobre as subtilezas da grafia dos antropónimos. Na realidade, eu sabia muito bem escrever o meu nome e a grafia Victor está simplesmente errada: uma palavra sem acento gráfico terminada em erre é forçosamente aguda e ninguém se chama [vitor]. Mesmo com o tal cê etimológico, era Víctor que se devia escrever. Mas nunca tal vi – ou é Vítor ou Victor.

Prevendo mais chatices, quando me registei no Consulado em Copenhaga, pedi um documento (sem qualquer valor legal, mas enfim…) em que se explicasse que Vítor e Victor eram ambas variações corretas de um mesmo nome, o meu. E passaram-mo.

Quando renovei o bilhete de identidade, acederam em passar-mo com a grafia que tinha no BI. O meu nome – agora acrescido do apelido da minha mulher, que adotei – era de novo sem cê tanto no passaporte como no BI: Vítor Manuel Lucas Santos Lindegaard. Mas foi sol de pouca dura.
Quando fui, há três semanas, substituir o BI pelo Cartão de Cidadão, disseram-me que tinham de escrever o meu nome como estava no assento de nascimento, entretanto digitalizado. E voltou a haver discrepância, mas agora ao contrário da que tinha sido iniciada em Quelimane: é o passaporte que não tem cê e o cartão de cidadão que o tem. A ver quanto quilómetros vou ter de fazer de chapa-cem por causa disto…