15/09/21

A Suécia ali do outro lado — um compositor, um cantor e uma cantiga

O grande poeta e compositor de canções dinamarquês Benny Andersen disse várias vezes que tinha escolhido Povl Dissing para cantar as suas maravilhosas canções, porque toda a gente cantava canções alegres de uma forma alegre e canções tristes de uma forma triste, mas só Dissing cantava de tal forma que não se sabia se a canção era para rir ou para chorar. De tanto que o repetiu e de tanto que isso foi notado, creio que não pode haver dúvidas: o projeto de Benny Andersen era mesmo que o público não conseguisse bem decidir se as suas canções eram «para rir» ou «para chorar». E encontrou, de facto, o cantor ideal para esse projeto.

A minha ideia é fazer aqui uma brevíssima apresentação de Benny Andersen e de Povl Dissing[1]. Se vos não incomodar demasiado a barreira da língua (a mim, nunca me incomodou, porque sempre ouvi música popular em inglês, mesmo muito antes de perceber o que estavam a cantar...), talvez queiram explorar o trabalho do duo. E escolho, para a apresentação, uma famosa canção em que Svante, a personagem da canção, sonha com a Suécia do outro lado do Øresund.

O álbum em que a canção aparece chama-se Svantes viser, «As canções de Svante» (pode ouvir-se aqui), e faz parte do Cânone Cultural da Dinamarca, uma lista oficial de 108 obras, elaborada em 2004, sob a égide do Ministério da Cultura: «uma recolha e apresentação das melhores e mais importantes obras do património cultural da Dinamarca», ou seja, basicamente as obras que todos os dinamarqueses deviam conhecer. Uma ideia estranha não é verdade?

Como o nome do álbum indica, todas as canções têm um mesmo protagonista, o escritor de canções Svante Svendsen. Svante nasceu na Suécia, mas perdeu-se dos pais aos nove anos, no barco de Malmö para Copenhaga, e vive desde essa altura na Dinamarca, onde teve de «desenrascar-se sozinho com a ajuda dos outros». Não há, porém, uma narrativa no ciclo de canções. Quando muito, o eu lírico das várias canções mantém, de umas para as outras, alguma coerência psicológica, se se pode dizer assim. Aparece também nalgumas canções (nesta não) uma personagem feminina: Nina, a musa de Svante. Creio que há aqui um piscar de olho a Carl Michael Bellman, um famoso poeta e cantautor sueco do século XVIII, cujas canções se continuam a cantar até hoje. Bellman também tinha uma personagem recorrente, o relojoeiro Jean Fredman, nos seus ciclos de canções Epístolas de Fredman e Canções de Fredman[2].

Tanta digressão! Eis então a canção e a letra traduzida A tradução, bastante livre e prosificada, é minha e é extremamente empobrecedora do texto original, que, como tudo o que Benny Andersen escreveu, é rico em imagens e trocadilhos completamente intraduzíveis:

Aqui estou eu, de olhos fixos na costa da Suécia e a sonhar com montanhas mais altas[3]. Tenho o coração aos pulos no peito – que vontade de apanhar o primeiro ferry e esquecer todo o mal do mudo em bosques claros de bétulas e raparigas risonhas! Mas tenho de ficar, porque eu enjoo quando ando de barco…

É como ver a terra prometida, repleta de dádivas, onde o tempo parece não passar e onde as pessoas cantam canções de Bellman com a boca cheia de bagas silvestres! E eu tenho de aqui ficar a viajar só com os olhos, porque eu enjoo quando ando de barco…

E aqui estou, num paisinho neurótico, habitado por loucos sorridentes. Os suecos sabem fazer muitas coisas que nós não sabemos fazer: mantêm-se corajosamente neutros[4] e são tão saudáveis – em bosques claros de bétulas – e têm sempre tantas ideias! E eu tenho de aqui ficar a definhar, porque eu enjoo quando ando de barco.

As minhas cinzas serão enviadas para a Suécia e espalhadas aos quatro ventos, para eu ser assim levado de praia em praia. Sim, talvez encontre finalmente um lugar onde possa ficar, em bosques claros de bétulas... Mas, até lá, acho que vou ter de viver aqui nesta terra, porque eu enjoo quando ando de barco…

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[2] Povl Dissing gravou em 1991 um disco de versões dinamarquesas de algumas canções de Bellman, que se pode ouvir aqui

[3] A Dinamarca é o quarto ou quinto país mais baixo do mundo, com uma altitude média de 34 metros e a elevação natural mais alta com 170 metros.

[4] Referência clara à tão discutida neutralidade sueca durante várias guerras, nomeadamente as duas guerras mundiais.

14/09/21

Duas histórias de um lar


[São histórias que me emocionaram. Pode ser que volte a contar aqui outras histórias de lares, porque sei muitas. Talvez alegres, porque também há muitas histórias alegres nos lares.]

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O Sr. Jorge tem graves problemas de disfagia. É alimentado por sonda já há uns meses.
A Sra. Isabel, irmã do Sr. Jorge, vem visitá-lo ao lar onde ele vive.
A enfermeira entra no quarto e cumprimenta-a. Desliga a máquina que acaba de dar ao Sr. Jorge a sua segunda refeição do dia e dá-lhe, também por sonda, mas à mão, os 150 ml de água que se dão sempre antes e depois das refeições.
– Hoje que está aqui a minha irmã, eu não podia comer ao menos um iogurte? – pergunta o Sr. Jorge à enfermeira.
– Sr. Jorge, já falámos disso muito vezes, não falámos? Não lhe posso dar iogurte, não lhe posso dar nada a não ser a alimentação por sonda. É perigoso, sabe bem, e para quê habituar-se a comer outra vez, agora que já se conseguiu desabituar? Depois, amanhã pede-me outro iogurte e depois uma sopa e depois… Não pode ser, Sr. Jorge. Lamento, mas não pode ser.
A Sra. Isabel está visivelmente emocionada. Quando a enfermeira acaba de falar, começa a chorar.
– Mas quando ele vier a casa pelo Natal, tem de comer alguma coisa – diz ela. – A ceia de Natal não pode ser alimentação por sonda…
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– Não viu o meu marido? – pergunta a D. Lurdes a uma empregada nova do lar. – Estive lá em baixo no jardim, não sei se ele andou à minha procura.
Não o conheço, minha senhora, sou nova aqui e ainda não tive o prazer de conhecer seu marido. Mas ninguém me perguntou por si.
A enfermeira aparece e aperta com as duas mãos a mão direita da D. Lurdes.
– D. Lurdes, o seu marido faleceu em março.
– Faleceu em março… – repete a D. Lurdes. – Oh, minha menina, e eu a perguntar-lhe por ele, tanto disparate. Peço-lhe muita desculpa! Tanto disparate…
– Não tem nada que pedir desculpa, D. Lurdes. Não sabia que o seu marido tinha falecido. Lamento muito.
– Vou escrever um papel e pôr na parede do quarto, para não me esquecer mais e não voltar a fazer estas figuras – diz a Dona Lurdes.
– Já escreveu um papel a dizer que o Sr. Lionel faleceu, D. Lurdes – diz a enfermeira. – Há pelo menos três meses que o tem pendurado na parede do quarto. Logo à entrada, do lado esquerdo.



13/09/21

Chalado

E a palavra chalado, que origem tem? 

Conheço desde miúdo o termo de calão chalar-se, com o sentido de «ir-se embora» e tinha há já muitos anos a hipótese de que chalado viesse dessa palavra: chalado seria originalmente «ido» – uma pessoa que perdeu o tino «foi-se». E tinha também outra hipótese: a de que chalar fosse um cognato do castelhano jalar, «puxar», porque entre «puxar» e «ir» a distância semântica não é longa, sobretudo se pensarmos nas ideias intermédias de «tirar» e «sair» – puxar(-se) => tirar(-se)=> sair=> ir(-se), movimentos espaciais básicos. Veja-se, por exemplo que o francês tirer, «puxar», se usa reflexivamente como forma popular para «ir-se embora». Enfim, tinha estas hipóteses todas, mas nunca tinha investigado a sua plausibilidade.

Um dia destes, porém, fui ao parar à entrada chalado do Dicionário da Porto Editora em linha, que define o termo como «1. coloquial amalucado, adoidado; 2. coloquial sem graça; pouco interessante; 3. (água) misturado com infusão de chá» e que propõe para o termo uma etimologia bastante estranha: «Do alemão schal, “insípido” +-ado».

Uma etimologia assim precisa de uma explicação muito detalhada: se o significado 2. de «sem graça; pouco interessante» decorre bem da ideia de insipidez, já o significado 1. de «amalucado, adoidado» não decorre diretamente da mesma noção. Com alguma boa vontade, porém, consegue encontrar-se alguma relação – sobretudo se se tiver em conta (se não é ir longe demais…) o significado de «secar» do étimo proto-indo-europeu (s)kelh₁, que dá, por exemplo em sueco, o adjetivo skäll, «delgado, débil». O que é mais difícil é explicar como é que uma palavra alemã entra assim no português. Por um termo intermédio numa língua intermédia? Mas qual?

Quanto ao significado 3 (que bem pode derivar apenas de chá, com influência de chalado 1.), se temos água chalada com o significado de «chá muito diluído com água» talvez seja melhor procurar aí a origem do significado 2. de «sem graça; pouco interessante» que num termo alemão.

Achei também estranho que o mesmo dicionário, embora registe chalar com o significado de «fugir», dê o termo como «intransitivo» e «popular», quando eu sempre o ouvi reflexivo («chala-te, pá!» e não «chala, pá!») e apenas como termo do calão restrito da malandragem.
Enfim, tudo isto me incitou a aprofundar a questão. E eis os resultados da minha pesquisa:
Segundo o DRAE (Dicionário da Real Academia Espanhola), jalar vem de halar, que vem, por sua vez, do francês haler – a minha hipótese de relação entre o português chalar e o castelhano jalar não presta.
Chalar também existe em castelhano, mas com o sentido de «adoidar, enlouquecer». Está assim explicada a origem natural de chalado como «amalucado», tanto em castelhano como em português. A minha primeira conclusão foi que ou o termo português foi importado do castelhano ou o verbo chalar existiu também em português com o mesmo significado do chalar espanhol. E encontrei, nessa mesma entrada do DRAE, uma etimologia para o termo de calão português chalar: o dicionário dá o caló chalar («ir; andar») como origem do chalar castelhano. Que um termo de calão português tenha origem num termo caló é perfeitamente normal, há várias nessas condições[1]. Não é por acaso, aliás, que a palavrão calão vem da palavra caló (sorriso). E a minha hipótese de que chalado como «amalucado» decorre de chalar no sentido de «ir» parecia boa.
Diz o mesmo Valentín Anders no seu site, que, pelo menos no que toca a etimologias (nunca explorei o resto), é sempre sensato (escuso-me a traduzir o castelhano, que creio que os meus leitores compreendem sem problemas):
La palabra chalado es término caló, la lengua patrimonial de los gitanos españoles. Viene del verbo chalar, que en caló significa “ir”, como ilustra esta copla flamenca en este peculiar idioma, que tiene la estructura gramatical morfológica y sintáctica del español pero está enjoyado de léxico de procedencia romaní:
Chalo para mi quer,
[Yendo para mi casa,]
me topé con el meripé;
[me topé con la muerte;]
me penó, “¿a dónde chalas?”,
[me dijo: “¿a dónde vas?”,]
le pené “para mi quer”.
[le dije: “para mi casa'] 
Del significado de “ir” viene el sentido de “loco”, pues al loco se le llama “ido”, como si dijéramos que se le ha ido la cabeza y no está en sus cabales. Así es como se han aceptado en español los tres gitanismos chalado, sinónimo de “ido” y participio del verbo chalar, y el nombre de la acción chaladura. Luego en español las tres palabras han derivado hasta significar “enamorado”, “enamorar” y “enamoramiento”, pues ya se sabe que el amor y la locura no andan lejos.
E dizem o mesmo vários outros estudiosos (as citações que faço a seguir vêm de uma longa e interessante discussão no fórum do Word Reference sobre o uso e a etimologia de chalado em castelhano):
María Inés Chamorro  defende que chalar, proveniente «[d]e la germanía chalán, que viene del fr[ancés] chaland “que trata en compra y venta”, ha pasado a la jerga actual. En gitano chalar “ir, andar, caminar” > cat[alán] atxalar “ir”, xalar “huir, ir deprisa”; en Andalucía “hacer huir a otro” y chalárselas “huir, desaparecer de un sitio”. Hubo un cambio semántico y pasó de “ido” a “enajenado, loco”.[2]»
O mesmo diz Joan Coromines, apoiando-se em Carlos Clavería[3] e Max Leopold Wagner[4], que «[recuerda] que guillarse y pirar (propiamente “marcharse”) también tomaron el sentido de “volverse loco” (…) . El transitivo chalar “enloquecer” [...] debe de ser una creación secundaria; también lo es el paso de “enloquecer” a “enamorar”. No es cierto que tengan igual origen jalar y chalar “enamorar”, como sugiere G[arcía] de Diego.[5]»
O que não é certo, e me parece até improvável, é a complicada origem franco-germânica do termo caló chalar, de que derivam as formas de calão nas línguas peninsulares. É que Géraldine Moureau indica antes a forma do sânscrito džala como origem do chalado caló, o que faz mais sentido, já que o romani, fonte do léxico caló, é uma língua de origem indiana. Javier Fuentes Cañizares refere, aliás, o termo romaní džal, «ir» como origem imediata do caló chalar[6]. A origem indiana é também defendida por Francisco Coelho[7], citando Franz von Miklosich[8].
Quando aqui chegamos, parece-me que reunimos boas e suficientes explicações para a etimologia de chalar e chalado e termos relacionados, nas várias aceções que têm nos falares ibéricos. Quero só fazer três comentários finais.
Achei curiosa a referência de Coromines ao pirar castelhano, que também tem os mesmos significados em português: «ir-se embora» e «enlouquecer». É certo que com o significado de «ir-se embora», o pirar português é sempre reflexivo, mas isso explica-se pela analogia com «ir-se embora», precisamente. É provavelmente a mesma analogia, aliás, que está na origem da reflexivização de chalar com esse mesmo significado em português.
Achei também curioso que Vicente García de Diego tenha tido a mesma intuição que eu, a da origem comum de jalar e chalar – que, como já referido acima, a Academia Espanhola desqualifica – e de que Coromines duvida[9].
Finalmente, há que dar conta dos desacordos. Como sempre nestas coisas, não há consenso entre filólogos. Eis duas propostas etimológicas alternativas, ambas com mais de um século: Adolfo de Castro[10] e Luis Montotoy Rautenstrauch[11]  propõem uma origem hebraica, respetivamente chisla e chirla, variações apenas de um mesmo termo com o significado de «estultícia ou insensatez»; e, para Matías Calandrelli[12], chalado é uma corruptela de chiflado. Cabe a cada um analisar os argumentos apresentados e decidir depois, destas propostas, quais as plausíveis e quais as… chaladas.

Notas:
[1] Ver, por exemplo, a dissertação de Mestrado em Estudos Ibéricos de Géraldine Chantal Moureau, Influência do calão cigano nas línguas portuguesa e castelhana em contextos de comunicação de massa, Universidade da Beira Interior, 2010, disponível em linha aqui 
[2] Chamorro Fernández, María Inés. Tesoro de villanos. Lengua de jacarandina: rufos, mandiles, galloferos, viltrotonas, zurrapas, carcaveras, murcios, floraineros y otras gentes de la carda. Barcelona: Herder, 2002
[3] Clavería, Carlos. “Estudios sobre los gitanismos del español” in Revista de Filología Española, anejo LIII. Madrid, 1951
[4] Wagner, Max Leopold. Notes linguistiques sur l’argot barcelonais. Barcelona: Institut d’estudis catalans, 1924 
[5] Coromines, Joan. Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana. Berna: Editorial Francke, 1954
[6] Fuentes Cañizares, Javier. “Fuentes literarias para el estudio del caló en el siglo XVIII” (in Ivo Buzek (coord.).Interacciones entre el caló y el español : historia, relaciones y fuentes. Brno : Filozofická fakulta, Masarykova univerzita, 2016, disponível em linha aqui 
[7] Coelho, Francisco Adolfo. Os ciganos de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892, disponível em linha aqui 
[8] Miklosich, Franz von. Über die Mundarten und die Wanderungen der Zigeuner Europa’s. Viena, 1872, disponível em linha aqui 
[9] García de Diego, Vicente. “Dialectalismos” in Revista de Filología Española, tomo III, 1916, disponível em linha aqui
[10] Castro, Adolfo de. Estudios prácticos de buen decir y de arcanidades del habla española. Cádiz: Imp. de la Revista Médica, de D. Federico Joly, 1880, disponível em linha aqui
[11] Montoto y Rautenstrauch, Luis. Un paquete de cartas: de modismos, locuciones, frases hechas, frases proverbiales y frases familiares. Sevilha: [Oficina Tipográfica,] 1888, disponível em linha aqui
[12] Calandrelli, Matías. Diccionario filológico-comparado de la lengua castellana. Buenos Aires: Impr. de M. Biedma é hijo, 1907, disponível em linha aqui

11/09/21

«Os verbos foram mudados, / Não ficou um só de pé !»

Joaquim Pinto de Sousa Macário é escritor seguramente desconhecido da maior parte dos leitores deste blogue. Também eu o desconhecia, até topar um dia, já nem me lembro nem como nem porquê, com esta digitalização da sua obra Satyras e galhofas: livro de versos alegres, publicada em 1899 por uma editora de Lamego, a Minerva da Loja Vermelha. 

Como amante que sou das coisas da língua, da sua história e das suas histórias, chamou-me muito a atenção esta “Resposta a uma carta que Nicolau Tolentino dirigiu do outro mundo ao auctor deste livro”, que vos quero dar a conhecer. E deixo-a tal como vem no original, em parte por preguiça de lhe atualizar grafia e corrigir pontuação, e em parte porque acho que o documento da história das palavras que o texto é ganha com documentar também uma fase da história da sua escrita.

Notem agora que Nicolau Tolentino, a quem Joaquim Pinto de Sousa Macário dedica as Satyras e galhofas e que é o explícito destinatário da carta em verso de que aqui se trata, morreu em 1811. Macário lista, portanto, expressões que ele crê que Tolentino não conheceria, ou seja, surgidas ao longo do século XIX. Se tem razão ou se se engana a avaliar a idade dos termos que refere como novidade é discussão que aqui não vou ter agora, embora, nalguns casos, tenha quase a certeza de que se engana: pança, por exemplo, muito provavelmente existiu sempre, em português, como aliás nas outras línguas latinas. Mas vejam que a maior parte deles se mantém até hoje, uns ainda como gíria, outros já como termos standard. Também é difícil perceber, no texto de Macário, em que registos se usavam na altura os diferentes termos, mas parece provável que se incluam na lista desde modismos finos (como fauteuil), até termos do registo informal, como carraspana, ou mesmo calão, como guita. É também de notar que se mantiveram até hoje os termos importados do francês que eram na altura novidade*. Mas chega de comentários. Desfrutai, como costuma dizer-se.

Lisboa, 1º–2º–89.

Nicolau:

Recebi a tua carta
E vejo o que me dizes do outro mundo,
Confessas que de ti se não aparta
O teu fado cruel, sempre iracundo.
Nunca a pança por cá tiveste farta.
Mas lá que o teu martyrio é mais profundo,
Lamento, meu amigo, que assim seja,
Mas, dos que estão por cá, não haja inveja.

Dizes que és lampianista logo á entrada
Do céo, e que S. Pedro é teu amigo;
Mas, que por teres cá lingua damnada,
Embirram lá no céu muito comtigo !
Dizes q’ereres voltar á Lísbia amada
P'ra viveres aqui junto co’migo.
Mal sabes tu, meu velho Tolentino,
Quanto fôra isso em ti um desatino !

Isto por cá, não é o que foi d'antes,
E hoje um purgatório ! uma inferneira !
A cidade já chega quasi a Abrantes !
E, por ter muita gente, ha já lazeira !
E abundam de tal forma os meliantes
Dos que sabem metter mãos na algibeira,
Que é preciso um policia, bem armado,
Pra cada cidadão andar guardado.

Isto está tudo torto ! Transformado !
Todos se tratam já por excellencia;
Com ares, cada qual, d'afidalgado,
Soffrem por este mal triste demencia!
Qualquer, p'ra ser ministro ou deputado,
Se julga com saber, e competência !
Todos, mettendo á Pátria gorda espiga,
Só tratam bem da bolsa e ... da barriga !

Pelas ruas, em carros estofados,
Sentados os lacaios, vão gozando I
Emquanto que, em cocheiros transformados,
Os fidalgos os carros vão guiando !
Ha homens já com homens namorados,
Tudo n'uma balburdia, e alto desmando !
Ha-de custar-te a crer! ha até senhoras
Mais homens que mulheres, e doutoras !

E todas, noite e dia, pelas ruas
Navegam, já sosinhas, á vontade,
E aos homens, graçolinhas lá das suas,
Apresentam com toda a liberdade !
E os donos de taes náus, de taes faluas,
Dos naufragios não temem a impiedade,
De forma que os naufrágios, meu amigo,
são tantos ! ! e óra adeus ! chamam-lhe um figo !

As egrejas já estão quasi desertas,
Só ás moscas entregues, e ás baratas,
E quando, aos domingos, são abertas,
Chamam ás que lá vão, tolas, beatas !
Ao passo que mui anchas, mui espertas,
Com mira no casório, as taes fragatas,
Aos cardumes passando alegre vida,
Innundam os theatros, e a Avenida. ( )

Qualquer fedelho, apenas de dez annos.
Já fuma, e joga as cartas e namora;
Se vão, por troça, ao templo taes insanos,
Precisa o enxota-cães pôl-os lá fora;
E assim vão caminhando nos enganos
Da podre educação que o céo deplora;
Depois, já pódes vêr, por taes assômos
Quem póde ser juiz com taes mordomos ! ?

Fazem-se hoje viagens em vapores
Que, voando pela terra e pelos mares,
Vão em sete minutos aos Açores
E em menos d'um minuto a Valladares.
A guerra! Santo Deus! ergue terrores.
Que fazem tiritar os militares!
É tanta, e de tal forma, a artilheria,
Que alcança já d'aqui á Alexandria !

Usa cada soldado uma espingarda
Que dá sete mil tiros por minuto !
E só deixam agora vestir farda
A quem fôr mais membrudo e féro bruto !
E cada general, gordo, bojarda,
No seu officio ou arte, é tão astuto
De forma que, se cá tivermos guerra,
Ninguém fica de pé ! Vae tudo a terra !

Isto por cá, mudou completamente !
Nem tu nada já d'isto conhecias;
As mulheres nem teem cara de gente,
São figuras de gesso ! e muito esguias !
Até mesmo o idioma está diff’rente
De forma que já nada percebias !
E se julgas que minto no que digo,
Eu passo a bem provar-t'o, meu amigo :

Os verbos foram mudados,
Não ficou um só de pé !
São hoje assim consid'rados:
Gritar, é fazer banzé !
Chama-se ao fugir raspar,
Liscar, safar e pisgar,
’Té mesmo passar o pé.

O morrer é arrefecer
É o calar, engulir.
Namorar, é padecer,
Chama-se ao comer murquir !
Espreitar, diz-se cocar,
Bater, zurzir e zupar,
Olhar p’ra dentro, é dormir !

Chama-sa ao roubar, arranjo !
Ou inglezar e chiprar !
Não sei porque desarranjo
É fazer o passeiar;
O ignorante, é ser cego !
Empenhar, é pôr no prego !
O tremer, é tiritar.

Ninguém falla como d'antes;
Tudo assim, tudo mudou !
'Té mesmo a palha d' Abrantes
De letria o nome achou !
Nem mesmo julgam ser erro
A um cão chamarem-lhe pêrro,
E os calotes serem cães,
E o caloteiro, cãoseiro,
E chelpa qualquer dinheiro,
E cheta os próprios vintens.

Amantes, são padecentes !
A officina, atelier !
Mestres d'escolas, são lentes !
É a carruagem, coupé !
Pernas magras, são varetas !
Botas tortas, são palhetas !
São os narizes, fungões !
A desordem, zaragata!
E cara, figura ou lata !
E as mentiras, são palões !

Chama-se á cabeça, pinha !
Chama-se ao janota, pão !
Ter azar, é ter gallinha !
Mentir, é ser intrujão !
O ser máu, é ser má rolha !
Não ter juizo, é ter bolha !
Chamam ao vinho briól !
E toucado á bebedeira,
Carraspana, e capoteira,
E á barriga, pança e fól !

Sâo as creadas, sopeiras !
Ser gentil, é ser liró !
Aos olhos, chamam setteiras !
Ser limpo, é quite de pó !
N'um jardim um charco é lago !
Dinheiro em geral, é bago!
Um puding, é um poré !
Mulher esguia é fanéca!
Cavallo magro, é pilléca !
Chama-se ao suor chulé !

Jogar, é fazer batota !
É café o botequim !
Perder, é levar derrota !
É um barulho, chinfrim !
O sobscripto, enveloppe!
Chamam-se as valsas galope !
A um ramalhete, bouquet !
E hoteis ás hospedarias !
As medianeiras sâo tias !
O ter gosto, é ter filé !

A vara d'outr’ora, é metro!
Decilitro o quarteirão !
Trocou-se em bandurra o plectro,
Bom cavalleiro, é calção !
Chama-se ás libras piratas !
Pômo de terra ás batatas !
Ao valentão Fcrra-Braz!
Ao municipal, um guita !
A mulher alta, guarita!
Ao homem alto, lambaz !

É fauteuil, uma cadeira!
É sofá, um canapé !
É pandega, a brincadeira !
Ao povo chamam-lhe Zé !
Chama-se instituto, a escola !
Banza e bandurra, a viola!
As gazetas, são jornaes !
Ser peralta, é ser penetra !
Edecetra, e édecetra,
E assim muitas coisas mais.

Já vês d'esta maneira, meu amigo,
Que vinhas tu fazer cá por Lisboa?!
Teus versos não valiam hoje um figo,
Nem rimas encontravas p'ra uma lôa;
Sem saberes fallar, feito um mendigo,
Sem te intender sequer, uma pessoa,
Ai ! amigo, não venhas, tem juizo,
Não troques pelo inferno o teu p'raizo.



___________________

Atelierbouquetcanapécoupéenveloppefauteuil; e jornal e  pomo de terra, já na altura com formas aportuguesadas. Só pomo de terra desapareceu completamente e provavelmente fauteuil, que os dicionários de português ainda registam como galicismo para «poltrona», mas que nunca me lembro de ter ouvido. Filé é provavelmente também um empréstimo ao francês, mas não consigo atestar nesta língua o significado que Macário aqui descreve, nem o de «empenho», que registam os dicionários. 

08/09/21

Um passeio com Kai [Crónicas de Svendborg #40]


Os nomes são falsos, a história é verdadeira.

O Kai foi marinheiro, mas já está reformado há muito anos, Vou dar uma volta com ele.
– Então e não tens saudades de Portugal? – pergunta-me ele.
– Bom, tenho saudades de muitas pessoas que lá estão, claro... 
– Eu tenho! – diz ele. – Muitas! Tenho muitas saudades de Portugal.

Encontramos um casal de amigos dele, o Jens e a Lotte. O Kai tem idade para ser meu pai, o Jens e a Lotte devem ser da minha idade, pouco mais ou menos. Não se veem há algum tempo, percebo eu pela conversa, mas, curiosamente, vão estar juntos numa festa no próximo sábado: o 80º aniversário da mãe do Jens. 
 – Que tal a vida, Kai? 
– Uma merda. Estou velho e a velhice é uma merda. E vocês? 
– Nós estamos bem. 
– Sempre venderam a casa? 
– Vendemos, pois. 
 – E a vossa vida sexual, que tal? 
O Jens e a Lotte ficam muito surpreendidos, claro está. Eu também. E vocês também, não é verdade? Quem é que espera uma pergunta assim? 
 – Está boa, acho eu – sorri o Jens e interroga a Lotte: – Está boa, não está? 
A Lotte sorri também e assente com a cabeça. 
 – E a tua vida sexual, Kai? 
 – Ah, mais ou menos… Mas estou velho e a velhice é uma merda. 

Foto: Tim Webb, Svenborgsund & Tarquence, 1981 (pormenor), daqui. (Wikimedia Commons)