31/01/23

«Ah, mas isso é um palavrão!...», um artigo quase brejeiro

 

Aí pelo ano 2000, tive a ideia de criar e comercializar uma aplicação (basicamente uma base de dados, que nessa altura, seria em CD-ROM, claro), que avisasse de palavras — ou sequências de palavras/sons — tabus em todas as línguas do mundo. Ok, nas mais importantes, vá... Assim, por exemplo, se uma pessoa quisesse comercializar um produto no mercado internacional, podia perguntar à aplicação se o nome do produto podia ser motivo de chacota ou de embaraço em alguma língua[1].

Mas nunca cheguei sequer a fazer um estudo de viabilidade da coisa. Fazer uma base de dados assim havia de dar muito trabalho e achei que ninguém ou quase ninguém a compraria — até porque a informação sobre a aceitabilidade do nome de um produto ou de uma instituição numa determinada região se pode, em princípio, obter dos representantes locais da firma ou da organização que os cria. A Hyundai sabia, antes de lançar o Kona em Portugal, que o carro não se podia chamar assim e foi só em Portugal que o modelo se chamou Kauai. O Opel Ascona foi comercializado em Portugal como Opel 1204, Opel 1604 e Opel 1904[2]. A Mitsubishi sabia que não devia usar nos países de língua castelhana o nome Pajero para o seu modelo Opel utilitário-desportivo lançado em 1981 (ver aceção 3 no DRAE) e chamou-lhe antes Montero nesses países. Quanto ao Toyota MR2, esse chama-se mesmo só MR, sem o 2, nos países de língua francesa, pela razão simples de que MR2 se pronuncia /ɛmɛʁdø/, exatamente como «est merdeux». No Québec, a Buick lançou o Lacrosse como Allure, porque já sabia que o nome original não ficava bem em francês canadiano[3]

Hoje em dia, até já há ferramentas gratuitas em linha que permitem verificar palavrões em diversas línguas. (Como esta, por exemplo, que trabalha com 19 línguas — e é, por isso mesmo e não só, muito, muito incompleta.) E, como também há casos em que um palavrão ou outra palavra indesejável se esconde dentro de outra palavra (como no caso do Opel Ascona atrás referido), existe até outra ferramenta, também grátis e também muito incompleta, que permite encontrar palavras dentro de palavras.

Estas pesquisas, porém, nem sempre se fazem e há produtos ou organizações com nomes pouco recomendáveis em países ou regiões onde são lançados. A Internet está cheia de histórias de produtos assim, umas mais verdadeiras que outras, provavelmente — e a maior parte delas muito difícil de verificar. Ao que vejo, às vezes exagera-se um bocado sobre a falta de aceitabilidade do nome e inventa-se um problema que não existiu. Eis alguns exemplos do que para aí se diz e a avaliação que faço deles:

Parece que há um chocolate com nozes chamado Fart na Polónia, para grande divertimento dos falantes do inglês, mas a verdade é que só encontro o produtos em páginas em inglês que tratam de «erros de marketing» — e não sei se alguma vez alguém pensou em vender o chocolate fora da Polónia… Enfim… Os falantes do inglês também acham muita graça quando, na Dinamarca, vêm um letreiro «I fart» («em movimento»), por exemplo num elevador, mas não devem estar à espera que os dinamarqueses mudem isso só por causa deles…

A revista sueca Auto Motor Sport de 3 de Abril de 2002 (numa página que já não está em linha), diz que, segundo um artigo publicado no jornal Dagens Nyheter, o Honda Fit estava para ser lançado como Honda Fitta e que uma mensagem do escritório sueco da firma fez a companhia mudar de nome, o que lhe custou caro, já que tinham brochuras e filmes publicitários com o nome que não ficava bem nem em sueco nem nas duas línguas norueguesas oficiais, danonorueguês e neonorueguês. Como o nome do carro em japonês se transcreve Fitto e não encontro nenhuma outra referência a este acontecimento, parece-me bem possível que o Dagens Nyheter a tenha publicado a 1 de abril…

Alguém assegura que a cadeia alemã de ferragens e material de construção Götzen Baumarkt devia mudado de nome quando começou a operar na Turquia, porque o nome alemão soa como a palavra turca göt (sim, o alemão e o turco, como aliás o sueco, o finlandês e provavelmente outras línguas, usam a mesma letra ö para as vogais anteriores arredondadas) a forma da segunda pessoa do verbo ser, algo como «és um cu». Mas se tivesse sido mesmo um problema para a firma, alguém teria feito alguma coisa para o resolver.

Leio também que, na Tailândia, a Ikea mudou mesmo o nome de dois produtos, a cama Redalen e o vaso Jättebra, porque ambos significam «sexo» em tailandês — sendo o primeiro um termo eufemístico e o segundo um termo de calão. O que eu gostava de perceber, sobretudo na palavra Jättebra, é como os tailandeses, que presumo que tenham contacto com o nosso alfabeto sobretudo através do inglês, conseguem ler o som do sueco. Jättebra lê-se algo como [iétebró]. Ou é o sueco lido à inglesa que soa como a palavra-tabu tailandesa? Enfim, até me explicarem melhor, também não acredito muito nesta história.

Já o que li sobre o queijo de barrar norueguês Kavli na Grécia tem mais possibilidades de ser verdade. Kavli vende-se em muitos países e é certo que se vende na Grécia. Se muito ou pouco, já não sei… E é certo que καυλί em grego não é bom nome para queijo.

Leio em vários sítios na net que o Mazda Laputa, uma versão do Suzuki Kei, nunca foi comercializado em países hispanófonos, por causa do nome — mas será mesmo verdade?

Lumia, um smartphone da Nokia, significa de facto «prostituta» em espanhol, mas é termo raro, não sei se muita gente o conhece. Pelos vistos, a Nokia não se preocupou muito, nem teve problemas com isso.

Também não há dúvida de que sega é mesmo um termo informal para masturbação em italiano, mas parece que a conhecida marca de jogos de vídeo resolveu o problema, se o havia, comercializando o seu produto em Itália com a pronúncia /siga/ em vez de /sega/ (e isto é mesmo assim).

Outra situação em que um possível problema se resolve foneticamente é a dos Audis e-tron em França: e-trone pronuncia-se /itrone/ e não étron.

Também parece certo que სირი, Siri em georgiano, é uma antiga palavra para «pássaro, pássaro jovem ou pintainho» que se usa atualmente como palavrão para designar o pénis. Mas, se significa também pássaro, pássaro jovem e pintainho, სირი é exatamente como pinto ou rola no Brasil e pode discutir-se até que ponto é um verdadeiro palavrão. A verdade é que os georgianos não sentiram necessidade de arranjar outro nome para a assistente virtual da Apple[4].


Enfim, não se pode sempre verificar os nomes de tudo em todas as línguas — quando muito, se houver tempo e paciência para isso, nas línguas em que há mais possibilidade de o produto vir a ser mencionado. Não faço ideia de como se pode calcular a probabilidade de uma qualquer palavra ser inconveniente em alguma das 6.000 línguas do mundo (ou mais, segundo alguns), nem sequer se há maneira de calcular essa probabilidade — mas ela está, pelos vistos, longe de ser nula…

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[1] Quem diz nome de produto, diz nome de instituição ou organização, evento, etc. E, claro, há muitas outras razões para um nome ser embaraçoso além de ser uma palavra-tabu. Neste texto, porém, para não me alargar demasiado, limito-me a referir nomes de marcas que evocam os chamados palavrões.

[2] Ao que vejo, mais tarde foi também comercializado como Ascona. As ressonâncias do nome parecem ter deixado de preocupar a firma...

[3] Ver aqui um excelente artigo [em francês] sobre a palavra crosse e os seus derivados, que se podem, de facto, relacionar com masturbação. Ainda assim, surpreende-me que se tenha alterado o nome do modelo no Québec — o desporto com o mesmo nome é popular e não creio que alguém já tenha querido mudar-lhe o nome.

[4] A Siri da Apple também veio causar problemas doutro tipo às pessoas com esse nome, que passaram a ser vítimas constantes de graças sem graça nenhuma, mas isso é outra história. Tivéssemos nós adivinhado que em 2011 a Apple lançaria a Siri e nunca teríamos, sete anos antes, dado esse nome à nossa filha mais nova.

[Ligeiramente alterado a 4 de Outubro de 2023


19/01/23

Javanês e criptografia

 

Escrevia Aquilino Ribeiro, no seu prefácio ao Dicionário de Calão de Albino Lapa, que «o calão começou por ser uma linguagem de defesa do fraco contra o poderoso, do preso contra o carcereiro e algoz, do conspirador contra o juiz e o tirano. Que procurasse tornar-se criptográfica o mais possível, é lógico.» 

Há muitas maneiras de encriptar o que se diz, umas mais simples e outras mais complicadas, para se poder falar sem ser entendido. Normalmente, o calão usa um processo de substituição lexical: em vez de calças, diz-se galdos ou galdinas; em vez de porta diz-se drofa; em vez de ir-se embora, diz-se ir d’espiante; e assim sucessivamente, mas sem alterar as regras sintáticas, morfológicas, fonéticas, etc., da língua. Há formas de calão, porém, em que, em vez de substituir as palavras, se as criptografam — com códigos muito mais simples que os usados em verdadeira criptografia, mas que chegam para que quem não domine o código não compreenda o que é dito.

Há um código português desse tipo chamado badoncali, que aprendi na minha adolescência. Funciona assim: agarra-se numa palavra e tira-se-lhe um número qualquer de sons do início (no mínimo, uma consoante ou um grupo de consoantes), deixando uma vogal como som inicial. Depois, cola-se bad- (b- apenas, nalguns casos raros) no início do pedaço de palavra que ficou e acrescentam-se à nova sequência os sons que se roubaram no início, juntando-lhes um -i para rematar. Badoncali é calão em badoncali: calão − cal- = ão + bad- (antes) = badão + -cal- + -i = badãocali. Só que, por muito que seja concebido para não ser entendido por falantes do português, o badoncali é português, porque é falado por pessoas que têm na cabeça a estrutura do português. E não há o ditongo [ão] no meio de uma palavra, a não ser antes de diminutivos e aumentativos [o que é, de facto, um argumento sólido para defender que os sufixos aumentativos e diminutivos não são vulgares sufixos, mas isso é outra história] e a sequência ‑cali não é diminutivo nem aumentativo. É então necessário transformar badãocali em badoncali, aplicando-lhe as regras fonéticas do português. .

Existem em francês dois códigos semelhantes a este, o louchébem, o calão dos talhantes, e o largonji. Louchébem (pronunciado /luchêbéme/) é boucher, “talhante” (pronunciado [buchê]) sem o B inicial, que vai para o fim e que é susbtituído por um L. Ao todo acrescenta-se /-eme/ e está feito.: /buchê/ -B + L= /luchê/; /luchê/ + B + /eme/ = /luchêbème/, louchébem. Sabendo agora vocês que largonji é jargon, «jargão», em largonji, não preciso de vos explicar o processo de formação deste outro código.

Quando éramos miúdos pequenos, tínhamos a língua dos PP, um código mais simples (chamado jeringonza em espanhol), em que se pospõe a cada sílaba uma outra sílaba igual, mas começada por P. Batata, por exemplo, fica /bapatápátapa/.

O javanais, também francês, é um esquema simples como a língua dos PP, mas dá formas complicadas: acrescenta-se /av/ entre uma consoante ou grupo de consoantes em princípio de sílaba e a vogal que se lhes segue. Por exemplo, patate, «batata», fica /pavatavatave/.

Para terem uma ideia de como soa, deixo-vos uma cantiga com letra de Boris Vian e música do grande Alain Goraguer. A canção tem partes em javanais e partes em francês não encriptado, digamos assim, mas o francês nem sempre é aquele que se aprende na escola, de maneira que mesmo o que não é em javanais é capaz de não ser fácil de perceber para quem não domine bem o calão francês. Com tantos dicionários de calão francês que há em linha, porém (nesta plataforma, pode pesquisar-se em vários deles), rapidamente esclarecerão as dúvidas que possam ter.

Louis Massis, « La Java Javanaise » (B. Vian/A. Goraguer), 1957

(Parlé)

Salut les mecs

Alors, c’est d’accord?

Pour que les caves ils n’entravent que dalle

On jaspine le javanais


Traînons ce soir 

Travaînavons çave soivar

Cherchons un cave rempli de pognon

Ravemplavi d’pavognavon

Pour y jouer la java javanaise

Sur le pont de Charenton

Voilà un mec

Voivalava avun mavec

Fais-y les poches

Vas-y Jimmy

Vava-z-avy Djavimavy

Aussi sec on se barre à l’anglaise

Dans la rue de paradis


Tous les chemins mènent à Rome

Mêm’ si c’est d’Rom’ qu’on est partis

Mais les javas mêm’ javanaises

Vous ramèn’nt tout’ à Paris

On est bourrés

Avon n’avest bavourravés

Bourrés d’billets

Comm’ des rajahs

Cavomm’ davez ravajavahs

Allons boire un coup de vichy-fraise

Loin de la plac’ de l’Opéra


Sifflons en chœur

Savifflavons zaven choaveur

Sifflons en chœur

Cette java

Çavettave javavava

Sifflavons la java javanaise

C’est à Pigalle qu’on ira

Passez le pognon

Pavassavez l’pavognavon

Passez l’oseille

Passez le fric

Pavassavez lave fravic

Faut que l’artiste se fass’ de la braise

Tout en haut d’la rue Lepic

L’accordéon

Et le saxo

Nous mett’nt le cœur en morceaux

Tiens… ma Julie

‘S’que tu fous là ?

Je te croyais chez ton papa …

Et qui c’est, ce gonze avec qui tu guinches?

On peut savoir?

Lâche ma souris

Lavâche mava savouravis

Lâch’ ma souris

Sinon j’te tue

Savinavon j’tave tavues

Adieu la javavavanaise

Jamais tu la dans’ras plus


Et ramène-toi par là, tézigue

Prends toujours ça c’est un acompte…

Vas-y, Balta, fais-le creuver

Ton soufflet

[Atualizado a 2 de julho de 2023]

18/01/23

Patrimónios mundiais


Duas fotos de cima: catedral de Gelati, perto de Kutaisi
Terceira foto: o mosteiro de Jvari, Mtskheta
Quarta foto: uma das entradas da catedral de Svetiskhoveli, Mtskheta
Há dois lugares que são património mundial da UNESCO que eu creio que visitei, mas não tenho a certeza absoluta: o centro histórico de Guimarães e os templos de água de Bali. Sei que estive em Guimarães, mas não me lembro bem onde estive, e sei que vi templos com jardins de água em Bali, mas não sei se eram os que devia ter visto… Há outros desses lugares onde sei que estive, mas não me lembro de grande coisa: o parque nacional do lago Maláui (chama-se lago Niassa em Moçambique, mas vá, eu acedo a chamar-lhe lago Maláui), no Maláui; a parte velha da cidade de Québec, no Canadá; e o porto de Karlskrona, na Suécia. Sei que vi, em França, os monumentos romanos de Arles, a ponte do Gard e o centro histórico de Avignon, mas não foi com muita atenção. Estive na parte antiga de Santiago de Compostela, em Espanha, mas também já não me lembro muito bem. Conheço La Chaux-de-Fonds, na Suíça, mas confesso que não sei se lá vi o que devia ter visto. A Torre de Belém e o mosteiro de Alcobaça, só os conheço por fora, e passei em Elvas e vi as suas muralhas, mas sem grande demora. Visitei o convento e o palácio de Mafra, mas sem visitar a tapada…

Também há, porém, vários desses lugares a que fiz visitas turísticas normais: o convento de Cristo em Tomar e a Universidade de Coimbra; o palácio de Kronborg, a catedral de Roskilde e as falésias brancas de Stevn, na Dinamarca; a cidade do Cuzco e o Machu Pichu, no Peru; o Grande Zimbábuè e as cataratas de Victoria, no Zimbábuè; o centro de Salvador e a cidade de Ouro Preto, no Brasil; a Grand Place de Bruxelas, na Bélgica; a cidade fortificada de Carcassone, em França; Göreme na Capadócia e as ruínas de Éfeso, na Turquia; e a igreja de Svetiskhoveli em Mtskheta e a catedral de Gelati, na Geórgia.

Outros visitei-os muitas vezes, posso dizer que os conheço bem: os Jerónimos e a Batalha, o centro do Porto, o centro de Évora, o Mar Frísio (sobretudo a parte dinamarquesa, mas não só) e a Ilha de Moçambique. E há quatro que posso dizer que conheço muito bem: o centro histórico de Sucre e a cidade de Potosí, na Bolívia; as margens do Sena em Paris; e, sobretudo, a paisagem cultural de Sintra.

Acho que nunca fui a um sítio por ele ser património da UNESCO e, na maior parte dos casos, ao visitar um sítio desses, nem sequer sabia que ele estava assim classificado. Também nem sempre os sítios que são património mundial da UNESCO são/foram os que mais me agrada(ra)m num determinado país ou região. Mas compreendo o seu valor e compreendo que possam advir benefícios da classificação.

Enfim, de tantas coisas bonitas e interessantes que há para ver neste mundo, sejam elas património mundial da UNESCO ou não, tão poucas que vi ainda, tão poucas que hei de ver…



12/01/23

Bipolarização e democracia

 

Há uma ideia que me anda na cabeça há anos, sem eu conseguir escrutinar satisfatoriamente o seu valor de verdade nem desenvolvê-la convenientemente. Ainda assim, ei-la aqui, em rascunho, proposta só de reflexão sem conclusão nenhuma. Muito provavelmente, o tema está mais que debatido em obras que desconheço…

A ideia é que a dominação exclusiva da cena política por dois ou três partidos e/ou a alternância no poder desses dois ou três partidos durante longos períodos podem bem criar ou ser sinal de um défice democrático numa sociedade democrática — sobretudo quando há de facto uma longa tradição de bipolarização partidária.

Como a palavra défice se pode entender de várias maneiras, convém, antes de mais, explicar o que quero dizer aqui com défice democrático. Muita gente concordará que há várias formas de democracia, mas penso que é também fácil assentar em que, sob as suas diversas formas, o conceito de democracia é graduável: em cada democracia, enquanto regime, pode haver mais ou menos democracia, enquanto acesso de todos à possibilidade de definir as regras da vida em comum. É neste sentido apenas que falo de défice democrático: não ausência de democracia, mas menos democracia.

A minha ideia assenta, à partida, em duas constatações simples:

A primeira é que, como não pode haver tão poucos grupos de opinião diferentes (e verifica-se, nos países onde não há bipolarização, que efetivamente não há), cada partido num sistema bipolarizado encerra em si várias tendências muito diferentes.

Não sei até que ponto isto é um óbice à participação, já que pode ser mais difícil para um(a) cidadão/ã identificar-se com partidos muitos abrangentes, em que certas fações representam as suas ideias e outras fações têm ideias bastante diferentes das suas. Outra questão importante é a de saber se uma discussão entre várias fações internas de um partido muito grande é ou não menos transparente que uma discussão pública entre vários partidos mais pequenos e tem ou não menos possibilidade de chegar a toda sociedade. Uma terceira questão é como jogam entre si a lealdade a projetos políticos específicos, que variam entre os membros de um grande partido, e a lealdade ao próprio partido.

A segunda constatação é que, num sistema em que alternam no poder dois ou três partidos grandes, há setores de opinião minoritários que nunca têm expressão política, o que não corresponde à sua importância na sociedade, que, embora mais pequena, não é nula — ou pode estar até longe disso.

A questão é complexa e deveria, provavelmente, ser analisada em conjunto com outras questões, como, por exemplo, as tradições de estabilidade do espetro partidário versus constante surgimento e desaparecimento de partidos influentes. E, evidentemente, pode também argumentar-se, numa perspetiva oposta, que, em sistemas com muitos partidos e em que raramente ou nunca se formam maiorias absolutas*, os partidos pequenos podem ganhar um poder desproporcional à sua votação nas negociações do seu apoio a um partido ou a um grupo de partidos minoritário.


_________________

* Dos países que conheço, os países escandinavos são exemplo de ausência de tradição de maiorias absolutas (com exceção da Noruega, que teve, ainda assim, 14 governos de maioria nos últimos cem anos). Nos outros países da Escandinávia, no mesmo período, só houve dois governos de maioria na Suécia e não houve nenhum na Dinamarca nem na Finlândia (nem na Islândia, desde a sua independência em 1944).


09/01/23

Depois da morte

 


«O filme Depois da morte (Dopo la morte/Nach dem Tod/Après la mort), da realizadora suíça Lara Tàcita, é descrito pela autora como um ensaio:

Não é tanto um ensaio filmado, que seria outra coisa, mas é um ensaio mais que uma obra de ficção. Cheguei a pensar em categorizá-lo simplesmente como documentário, mas achei que seria uma classificação algo arrogante. Acho que muita gente vê o filme como um poema visual, não no sentido mais tradicional da expressão, mas como o equivalente cinematográfico da música programática, em que se pede ao ouvinte que aceite que a obra descreve ou de alguma forma sugere, de facto, o programa, a história, a ideia, enfim, que o autor com ele se propõe tratar. Para mim, também não é isso. Mas compreendo que o vejam assim. Também já vi o filme descrito como filme de tese, mas não me parece bem. Não só me parece uma designação demasiado pomposa, como se lhe aplica mal, se compararmos Depois da morte com outros filmes que costumam ser assim designados.

Embora muitos vejam nele uma rutura com todas as formas anteriores de cinema, julgo que o filme de Lara Tàcita segue apenas as convenções narrativas habituais. Todos os romances, todas as novelas, todos os filmes são feitos de uma escolha das imagens, situações ou palavras que o autor considera relevantes para a história a ser contada, para o ambiente a ser sugerido ou para a ideia a ser veiculada. O tempo total em que «se passa» a narrativa, que pode ser de horas a séculos, mas que é, mais comummente, de meses a anos, é reduzido ao tempo em que ela é apresentada ao público — que, no cinema, normalmente é entre uma e duas horas, às vezes um pouco mais. Mesmo quando, em propostas ditas hiper-realistas, se insiste em mostrar as banalidades que são por tradição omitidas noutras histórias (fazer comida, passar a ferro, lavar os pés…), essa redução narrativa não deixa nunca de existir. E é isso que Lara Tàcita faz também aqui neste filme: durante três horas e 16 minutos apresenta-nos uma seleção dos acontecimentos por que passa o protagonista (que nunca é nomeado, nem nunca se vê no filme) depois da sua morte.»

Leo Fredholm, Gazeta d’Aosta, 18.12.22


O trailer de Depois da morte dá-nos uma ideia muito clara do que podemos esperar do filme: depois dos segundos iniciais (em que, pelos olhos do moribundo protagonista, vemos a única personagem do filme além dele) desfilam em rápida sequência, durante um pouco mais de dois minutos, alguns breves excertos das principais cenas do filme — alguma das principais experiências do protagonista depois da sua morte.