31/08/22

Puré de batata: três variações


Muitas vezes fazemos as coisas de uma certa forma sem saber ao certo porquê, só porque foi assim que aprendemos e sempre vimos fazer e escusamo-nos a experimentar alguma variação — por mais óbvia (mas só depois o percebemos) que possa ser. 

1. Eu, por exemplo, fiz sempre puré de batata com batatas cozidas em água, manteiga, sal, pimenta, noz moscada e leite ou nata. O puré de batata clássico, digamos assim. Acho que foi só quando conheci o stamppot neerlandês e o stoemp belga que me dei conta de que se podia juntar à batata outro legume qualquer — e ganhar com isso sabor e diversidade, e maior valor nutritivo. Atualmente, é raro fazer puré só de batatas. Noutras épocas do ano, junto à batata cenoura, alho francês, brócolos, o que tiver à mão; mas no verão, quando temos muitas curgetes no quintal, é a curgete o auxiliar típico do nosso puré de batata. Dá-lhe boa consistência e um sabor leve. 

Um bom puré de batata com curgete é o seguinte: cozer cerca de 400 g de curgete e 600 g de batata, escorrer bem quando bem cozidas, esmagar com um pisa-batatas, juntar manteiga, noz-moscada e pimenta preta, acertar o sal, e juntar, mexendo rapidamente, duas gemas de ovos batidas num bocadinho de leite (para não cozerem em contacto com o puré quente), e levar tudo ao lume para engrossar um bocadinho. Fica com boa consistência e bom sabor. 

2. E já que estou com a mão em ovos e puré, proponho, como segunda variação, uma coisa simples que se pode fazer para dar outro toque e outra apresentação a um puré, que é simplesmente juntar ovos batidos (muito bem batidos, para ficarem com muito ar dentro) a um puré de batata convencional e meter no forno uma meia horita a uns 200º (enfim, depende da quantidade e do recipiente, vocês verão). É uma coisa a meio caminho entre o puré e o suflê, com boa apresentação, tostadinho por cima, e, mais uma vez, boa consistência e bom sabor.

3. A terceira variação é recente aqui em casa e eu pergunto a mim próprio porque não descobri isto há mais tempo. Se se fazem refogados para dar gosto a tantos tipos de pratos, porque não usar um refogado num puré? Fica muito bom. Experimentem, por exemplo, um refogado com uma mirepoix clássica, cebola, cenoura e aipo tudo picado (não precisa de ser muito fininho), talvez acrescentada de alho francês — um refogado longo a lume brando, sem deixar nada começar a tostar. E depois deitem-lhe batatas aos bocados, acompanhadas ou não de outro legume, como na primeira sugestão. As batatas não estufam sem mais líquido, mesmo com lume muito brando e num recipiente tapado. A certa altura, terão de lhe juntar água. (Não experimentei ainda nenhuma variação com caldo de verduras ou de carne, mas também é capaz de não ser mau.) Mas pouca, de maneira a não restar líquido quando as batatas estiverem cozidas. Em caso de dúvida sobre a quantidade, pode ir-se acrescentando aos bocadinhos. E depois é esmagar com o pisa-batatas (ou com um garfo, ou com o fundo de uma caneca, tudo vale mais que passe-vite — e máquinas de cozinha nem pensar, seja lá de que tipo forem, destroem os purés) e acrescentar manteiga, sal-pimenta-moscada. É bom. 


26/08/22

Histórias de ilhas [Crónicas de Svenddborg #44]

Placa na ilha de Strynø indicando
direções e distâncias de outras ilhas. 

A Dinamarca é um país pequeno, mas tem uma linha de costa muito comprida: 8.750 km de litoral para um país de 43.000 km2 é obra! Tem também muitas ilhas: mais de 400 com nome e, segundo dados de 2013, 75 habitadas (aqui têm uma lista ordenada por número de habitantes). 

Algumas ilhas são privadas. Agora, quando pensamos em ilhas privadas, temos tendência a associá-las a gente de muito dinheiro, mas nem todas as ilhas privadas da Dinamarca pertencem a milionários que as compraram para lá passarem uns diazinhos de férias. Passo a contar-vos um bocadinho da história de Halmø, uma ilha do Arquipélago Meridional da Fiónia. Traduzo, para começar, um artigo do canal 2 da televisão dinamarquesa datado de 9 de março de 2019

«Há mais de quatro décadas que Peter e Gitte Didrichsen são proprietários da ilha de Halmø no Arquipélago Meridional da Fiónia, entre a Fiónia propriamente dita e Ærø. Mas o casal optou agora por pôr a ilha à venda. A ilha tem 43 hectares e a casa de 200 metros quadrados [a única casa da ilha] está incluída na venda.

– A minha esposa e eu temos ambos 82 anos. Tratar disto exige muito tempo, era mais fácil quando comprámos a ilha há 40/50 anos – diz Peter Didrichsen. (…) 

Os Didrichsen tinham anteriormente afirmado que (…), quando já não pudessem tratar da propriedade, prefeririam não vender a ilha e queriam antes que continuasse a ser da família. Mas (…) os quatro filhos do casal não estão muito interessados em ficar com a ilha.

– Acho que tudo tem o seu fim, mas estamos tristes por termos de nos desfazer da ilha, devo dizer. Gostámos muito de aqui viver desde o início dos anos 70 (…).»

A ilha de Halmø vista de outra ilha, Ærø. 
Foto de Erik Christiansen, 2004, daqui. Atribuição Creative Commons.
É assim a vida, já ninguém quer ser agricultor, e menos ainda numa ilha pequena. Halmø não é a única ilha que era propriedade agrícola habitada até há pouco tempo e está agora desabitada.

Quando o artigo foi publicado, a casa de Halmø estava avaliada em 3,8 milhões de coroas dinamarquesas (≈510.000 €) e o terreno em cerca de 1,2 milhões de coroas dinamarquesas ((≈161.000 €) e. Mas a agência imobiliária pedia no mínimo 15 milhões (dois milhões de euros). Os dez milhões extras deviam ser o valor de ter uma ilha só para si. Não há obrigatoriedade de residência, como há normalmente na Dinamarca para uma casa deste tamanho, de maneira que se pode usar a casa só como casa de férias. Em 2020, a ilha foi comprada por uma firma, por 9,8 milhões de coroas. Não faço ideia do que querem lá fazer ou do que lá já tenham feito, mas sei que se pode visitar a ilha – se se tiver um barco para lá chegar.  

Aqui muito perto de nós, a ilha de Siø também foi vendida há quatro anos. É uma ilha pequenina que está ligada à nossa por uma ponte que não se nota que o é, de maneira que não se dá forçosamente pela sua existência. Esteve à venda dois anos e meio e o preço foi baixando de 39 milhões de coroas (≈ 5.245.000€) para seis milhões e meio (≈870.000€). Não é muito dinheiro, sobretudo quando há várias construções em bom estado na ilha. Há casas (casarões!) aqui na aldeia que custam mais que isso.

E depois têm sido vendidas vários outras nas últimas décadas, de tamanhos e preços variáveis. A mais barata foi pelos vistos Peberholm, no fiorde de Roskilde, que foi vendida por menos de dois milhões de coroas. Também não é muito grande


Cozinha nacional mais tradicional que o habitual

Sabemos que o tempo é uma dimensão, mas custa-nos aceitá-lo. Cremos (queremos?) ter mais em comum com quem habitou o mesmo espaço noutro tempo que com quem habita outro espaço no mesmo tempo, mas é uma ilusão nossa. O passado é mesmo um país distante.

Seguem-se duas receitas do primeiro livro de culinária português, a Arte de cozinha de Domingos Rodrigues, «cozinheyro do Conde do Vimioso», publicado pela primeira vez em 1680 e que foi reeditado várias vezes até meados do séc. XIX, em Portugal e no Brasil. Há várias edições disponíveis na internet para download. Por exemplo, esta segunda edição de 1683. Estas duas receitas foram escolhidas ao acaso e atualizo a grafia. Ainda não experimentei nenhuma delas. 

Sopa de queijo, e lombo de porco ou de vaca

Um lombo de porco, ou de vaca, depois de estar quatro dias de vinho, e alhos, ponha-se a assar; e como estiver assado, e feito em talhadas delgadas, tome-se uma frigideira untada de manteiga de vaca, ponham-lhe fatias de pão e sobre elas fatias de queijo muito delgadas, e por cima destas as talhadas de lombo, deitem-lhe miolo de pão ralado, e açúcar, e desta maneira enchem a frigideira até cima; e como estiver cheia deitem-lhe por cima meia dúzia de ovos balidos, e mande-se ao forno a cozer, e como estiver corado, façam-lhe uns buracos com um garfo; deitem-lhe açúcar por cima, e mandem-na à mesa com canela pisada.

Entrida [que é uma «olha», isto é, um tipo de cozido]

Cozam em uma panela duas galinhas, duas galinholas, duas perdizes, um coelho, e dois arráteis de entrecosto de porco com água, (como carneiro) tempere-se com vinagre e todos os adubos; como estiver cozida, tire-se o caldo, e migando-se nele três ou quatro bolos de açúcar e manteiga, ponha-se a cozer; como estiver grosso, acabe-se de cozer com oito ovos, e sumo de quatro limões; depois de bem enxuto deite-se no prato e canela por cima e pondo-se a carne sobre esta entriga, mande-se à mesa. [Ficamos sem saber se é entrida ou entriga…]

Que tal?


Gadespejl

Este curioso objeto chama-se na Dinamarca «espelho de rua», «espelho-espião» ou «espelho-coscuvilheiro». 

Só vi espelhos destes aqui na Dinamarca, mas a Wikipédia tem páginas sobre eles em neerlandês, sueco e finlandês, pelo que os há com certeza noutros lados. 

A fotografia, tirada em Gudhjem, na ilha de Bornholm, não é muito boa, mas espero que se perceba que se trata de dois espelhos que formam entre si um  ângulo obtuso e que, montados do lado de fora da janela, permitem que, de dentro de casa, se veja o que se passa na rua, à esquerda e à direita, sem ter de abrir a janela para espreitar lá para fora. 


14/08/22

De escatologia e outras convergências

[Orientação para leitura do texto: i) quando não é referida uma língua específica, o étimo é latino; ii) os mm finais do acusativo latino já não se pronunciavam em latim tardio e a sua ausência é assinalada com um -; iii) as formas assinaladas com *são formas reconstruídas pelos etimologistas não atestadas em textos escritos.] 

Chamam-se palavras convergentes as palavras que, numa determinada fase de uma língua, têm a mesma forma, embora tenham origens diferentes. Em princípio, quando digo «têm a mesma forma», quero dizer «têm a mesma forma linguística», isto é, são constituídas pelos mesmos sons; mas haverá decerto quem conte como convergentes apenas palavras homónimas, ou seja que se dizem e se escrevem da mesma maneira, embora provindo de étimos diferentes[1]. Em português, os exemplos mais comuns são vão do verbo ir, vão adjetivo e vão nome, são do verbo ser, são no sentido de santo e são adjetivo, como advérbio e como do verbo comer, o nome mente e a forma verbal mente, o pronome, advérbio ou nome nada e a forma nada do verbo nadar, entre vários outros. 

«Está a ver ali? O meu filho, a minha nora e os meus netos.»

[Ilustração de Gustave Doré em L'Espagne, de CH. Davillier, 1874.
Wikimedia Commons, daqui.]
Evidentemente, como se trata, em todos os casos acima referidos, de convergência entre formas de categorias diferentes, a convergência nunca causa nenhum mal-entendido. Quando muito, serve para alguma brincadeira pateta («Não disseste nada? Olha, quem nada não se afoga.»). Mais interessante, porém, é o escrutínio de formas convergentes da mesma classe gramatical, que também as há. Podem causar ambiguidades? 

Temos, por exemplo: fiar, «tecer», de filare, e fiar, «ter confiança», de *fidare por fidere; junco, a planta, de juncu-  e junco, a embarcação, do malaio-javanês jung; manga, a parte da roupa, de manica e manga, a fruta, empréstimo ao malaio; nora, «esposa do filho», da forma vulgar *nora, do clássico nurus, e nora, engenho de puxar água, do árabe نَاعُورَة‎, nāʿūra; renda, 'rendimento; quantia recebida», deverbal de render e renda, «malha de fios ornamental», cujo étimo é obscuro; velar, «passar a noite, ou boa parte dela, acordado; estar alerta, vigiar», de vigilare e velar, «cobrir com véu», de velare;

Um caso curioso é cabo. Quando designa o posto militar ou significa «término, fim, limite», vem de caput, «cabeça, topo», e quando significa «extremidade pela qual se segura um objeto ou instrumento, corda grossa, feixe de fios», vem de capulu-. Ao contrário do que se poderia talvez supor, capulu-  não é imediatamente um diminutivo de caput, mas provém antes de capere, «segurar» – embora, em última instância, caput também provenha, provavelmente, da mesma raiz proto-indo-europeia... 

«Aquela senhora vive de rendas.»

Caspar Netscher: A rendeira, 1662. Wallace Collection, Londres.
Wikimedia Commons, daqui.]
Também nestes casos as ambiguidades parecem raras. Evidentemente, pode dizer-se «Ali está o meu filho e a minha nora» referindo com esta última palavra não a mulher ao lado do rapaz, que não é sua mulher, mas antes a roda com alcatruzes que se encontra atrás dele. E pode cobrir-se uma morta ou um morto com um véu e dizer-se então que se está a velá-la/o, como se a/o vela numa vigília — seja ela ou não à luz de velas[2]. E também se pode dizer que uma pessoa vive de rendas, querendo com renda significar a malha decorativa e não os rendimentos não provenientes de trabalho – se se estiver a falar de uma rendeira!... Mas quando é que essas coisas se dizem? Nunca. E é precisamente por isso que estes termos convergentes podem existir, já que a língua tende a desfazer convergências que causem ambiguidades. 

A mim, o que me faz mais confusão é a convergência de duas palavras muito diferentes em escatologia – e, por consequência, também de dois adjetivos diferentes no adjetivo escatológico. É que a escatologia tanto pode ser a «parte da teologia que trata dos fins últimos do homem e do que há de acontecer no fim do mundo» e, por extensão, «qualquer área do pensamento que trate do fim último da humanidade, do mundo ou da história» (do grego ἔσχατος, éskhatos, com o kh pronunciado como um jota espanhol), «último, mais distante» ou «estudo ou tratado acerca de excrementos; coprologia» e, por isso, também «alusão aos temas das fezes, da imundície, da obscenidade» (do grego σκατός, skatós, genitivo de σκῶρ, skór, «excremento»). Evidentemente, o contexto acaba por esclarecer de que escatologia se está a falar. Mas, numa referência breve a uma obra ou a um(a) autor/a que não se conhece, pode às vezes ficar-se na dúvida... Bom, também não é palavra que toda gente use todos os dias... 




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[1] Veja-se o caso de ótico, que tanto pode querer dizer «relativo à visão» (de ὀπτῐκός, optikós) como «relativo aos ouvido» (de ὠτῐκός, ōtikós). Os termos convergiram há muito tempo, mas alguns acharão que só agora há verdadeira convergência, depois de o antigo óptico ter perdido na grafia o p que não se pronunciava...
[2] Já agora, é a palavra vela, objeto alumiador, que vem do verbo velar, no sentido de ficar em vigília, e não ao contrário, como talvez se pudesse supor.