Quando me mudei para a Bolívia, em 1999, comecei,
naturalmente, a informar-me sobre a minha nova terra. Entre outras coisas, li
alguns livros de História daquela parte do mundo. E fiquei com uma dúvida: Sendo
os Andes secos, pouco férteis e frios, porque teriam as pessoas
preferido instalar-se no planalto a instalar-se nas terras baixas? A questão do
número de habitantes das Américas antes da chegada dos europeus não é nada pacífica,
mas todos os livros que li me diziam que, no início do século XVI, havia quatro
ou cinco vezes mais habitantes no altiplano que em todas as terras baixas da
América do Sul. Porquê? Fiz a pergunta a vários bolivianos, mas ninguém me
soube responder. Tive finalmente uma resposta satisfatória no Natal de de 2000; e tive-a de uma forma relativamente desagradável...
O escritório da Karen, a minha mulher, fechava durante as festas e resolvemos aproveitar para ir dar uma volta à Amazónia
boliviana. Fomos para uma vilazinha chamada Rurrenabaque, a cerca de uma hora
de avião de La Paz. A vila tem uma situação privilegiada, à beira de um dos
maiores rios da região, o Beni, e ali mesmo onde acabam os Andes e começa a
mata amazónica.
Como não podia deixar de ser, fomos fazer uma
pequena excursão pela selva. É o chamado turismo de aventura: mochilas,
catanas, latas de conserva e um guia, e seja o que Deus quiser. Uma lancha
leva-nos até à entrada da selva, andamos por ali dois dias, depois fazemos uma
jangada e descemos um rio mais dois dias, e, ao quinto dia, vem a lancha buscar-nos
outra vez.
Passámos a noite de Natal no meio da selva.
Árvores de Natal, ena!, eram às centenas, aos milhares, aos milhões, eu sei
lá!... A ceia de Natal consistiu numa mistura de várias latas de conservas –
uma mixórdia, mas ainda assim não no pior sentido do termo, valha-nos o menino
Jesus! –, com arrozinho de tacho a acompanhar! Ah, mas tivemos direito a
macedónia de fruta (de conserva...) para a sobremesa, por ser Natal! Foi pena
que a consoada tivesse sido curta, mas o facto é que já não aguentávamos os
insetos, que eram tantos como as árvore de Natal, e por
essas oito e meia da noite já estávamos metidos debaixo dos mosquiteiros, a ver
se conseguíamos dormir.
Escuso de vos dizer: cada Natal é um milagre,
seja na selva ou no aconchego do lar, e este não foi exceção – os macacos
uivadores entoavam a várias vozes o “Green Christmas” de King Brosby, se não com
a mesma sensualidade, pelo menos com a mesma devoção; e, lá ao longe, jaguares,
tapires e porcos do mato tinham-se juntado para, num concerto único, nos oferecerem
a sua versão do célebre hino natalício “Jungle Bells”! E nem uma pinguinha de rum
para beber...
Tive, nessa noite de Natal, uma revelação. Percebi finalmente porque havia, à chegada dos Europeus, muito mais gente nas terras
altas do que nas zonas tropicais da América Latina: é por causa dos malvados
dos bichos! Pensam que isso de chamar à selva “o inferno verde” é alguma imagem
literária? Não é nada, é tão literal que faz confusão. Confusão, comichão, dores,
tudo! São milhares de insetos em cima de uma pessoa de manhã à noite – moscas,
mosquitos, moscardos, abelhas, vespas abelhudas, formiguinhas, formigas
encarnadas, formigas gigantes, ai!!!
E o marigüí. O marigüí, pica aqui e pica ali,
é uma espécie de Drácula em miniatura da família dos mosquitos. Quando o
minúsculo facínora morde, não se sente nada. Só se vê um ponto de
sangue, mas não se sente nada. Nem passadas umas horas, nem passado um dia. Ao
segundo dia, começa a comichão. As picadas são tantas dezenas que o veneno é
mais do que o corpo aguenta sem refilar: as mãos incham, as pernas incham,
começam a aparecer manchas vermelhas aqui e ali. Por curiosidade, a Karen
contou, ao sairmos da selva, as picaduras só da minha mão direita: 147!
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As minhas pobres mãozinhs depois de 5 dias na mata.... |
Trouxemos dois recuerdos da mata amazónica.
Nem macacos, nem araras, nada disso: larvas de alguma borboleta ou de
alguma mosca que se entretém a pôr ovos na malta. Dos ovos, é claro, saem
párvulas lárvulas, a quem, de acordo com as kafkianas leis da metamorfose, não
resta senão transformarem-se outra vez em mariposas. Depois de ver muitos
vídeos sobre miíases e extrações de
larvas, continuo sem saber que larva seria. Os colegas da Karen em Camargo chamavam-lhe
puchichi, mas creio que puchichi é apenas uma palavra para qualquer furúculo,
mesmo sem larva lá dentro. As nossas alarves larvas não chegaram à última fase,
mas ainda nos moeram bastante o juízo durante dois mesitos. Eu tinha o meu
bicho no dedo pequenino do pé direito, e a Karen o dela nas costas, do lado
direito, à altura da omoplata. O meu saiu primeiro, a 11 de Fevereiro, morto e
pequenino. Teria um centímetro, se tanto, e parecia um bicho da fruta. O da
Karen foi mais difícil. Só saiu duas semanas mais tarde, moribundo da nicotina
com que lhe tínhamos enchido a toca, a conselho de uma colega da Karen que tinha trabalhado nas zonas tropicais do país. Era grande e forte, o velhaco. Todas as
noites, antes de nos deitarmos, eu via-o vir espreitar cá fora, mas nunca o
consegui agarrar. Quando por fim saiu, tinha cerca de três centímetros de
comprimento por meio centímetro de espessura – uma coisa realmente
repulsiva!... O que é interessante é que as feridas fecham imediatamente depois
de o bicho sair – no dia seguinte, já não está lá nada. A Karen sugeriu que o parasita talvez tenha algum tipo de desinfetante que vá limpando a carne onde está alojado, porque não deve querer viver no meio de uma infeção...
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A larva acabadinha de sair das costas da hóspede |