13/04/13

Entregues aos bichos

Quando me mudei para a Bolívia, em 1999, comecei, naturalmente, a informar-me sobre a minha nova terra. Entre outras coisas, li alguns livros de História daquela parte do mundo. E fiquei com uma dúvida: Sendo os Andes secos, pouco férteis e frios, porque teriam as pessoas preferido instalar-se no planalto a instalar-se nas terras baixas? A questão do número de habitantes das Américas antes da chegada dos europeus não é nada pacífica, mas todos os livros que li me diziam que, no início do século XVI, havia quatro ou cinco vezes mais habitantes no altiplano que em todas as terras baixas da América do Sul. Porquê? Fiz a pergunta a vários bolivianos, mas ninguém me soube responder. Tive finalmente uma resposta satisfatória no Natal de de 2000; e tive-a de uma forma relativamente desagradável...
O escritório da Karen, a minha mulher, fechava durante as festas e resolvemos aproveitar para ir dar uma volta à Amazónia boliviana. Fomos para uma vilazinha chamada Rurrenabaque, a cerca de uma hora de avião de La Paz. A vila tem uma situação privilegiada, à beira de um dos maiores rios da região, o Beni, e ali mesmo onde acabam os Andes e começa a mata amazónica.
Como não podia deixar de ser, fomos fazer uma pequena excursão pela selva. É o chamado turismo de aventura: mochilas, catanas, latas de conserva e um guia, e seja o que Deus quiser. Uma lancha leva-nos até à entrada da selva, andamos por ali dois dias, depois fazemos uma jangada e descemos um rio mais dois dias, e, ao quinto dia, vem a lancha buscar-nos outra vez.
Passámos a noite de Natal no meio da selva. Árvores de Natal, ena!, eram às centenas, aos milhares, aos milhões, eu sei lá!... A ceia de Natal consistiu numa mistura de várias latas de conservas – uma mixórdia, mas ainda assim não no pior sentido do termo, valha-nos o menino Jesus! –, com arrozinho de tacho a acompanhar! Ah, mas tivemos direito a macedónia de fruta (de conserva...) para a sobremesa, por ser Natal! Foi pena que a consoada tivesse sido curta, mas o facto é que já não aguentávamos os insetos, que eram tantos como as árvore de Natal, e por essas oito e meia da noite já estávamos metidos debaixo dos mosquiteiros, a ver se conseguíamos dormir.
Escuso de vos dizer: cada Natal é um milagre, seja na selva ou no aconchego do lar, e este não foi exceção – os macacos uivadores entoavam a várias vozes o Green Christmas de King Brosby, se não com a mesma sensualidade, pelo menos com a mesma devoção; e, lá ao longe, jaguares, tapires e porcos do mato tinham-se juntado para, num concerto único, nos oferecerem a sua versão do célebre hino natalício Jungle Bells! E nem uma pinguinha de rum para beber...
Tive, nessa noite de Natal, uma revelação. Percebi finalmente porque havia, à chegada dos Europeus, muito mais gente nas terras altas do que nas zonas tropicais da América Latina: é por causa dos malvados dos bichos! Pensam que isso de chamar à selva “o inferno verde” é alguma imagem literária? Não é nada, é tão literal que faz confusão. Confusão, comichão, dores, tudo! São milhares de insetos em cima de uma pessoa de manhã à noite – moscas, mosquitos, moscardos, abelhas, vespas abelhudas, formiguinhas, formigas encarnadas, formigas gigantes, ai!!!
E o marigüí. O marigüí, pica aqui e pica ali, é uma espécie de Drácula em miniatura da família dos mosquitos. Quando o minúsculo facínora morde, não se sente nada. Só se vê um ponto de sangue, mas não se sente nada. Nem passadas umas horas, nem passado um dia. Ao segundo dia, começa a comichão. As picadas são tantas dezenas que o veneno é mais do que o corpo aguenta sem refilar: as mãos incham, as pernas incham, começam a aparecer manchas vermelhas aqui e ali. Por curiosidade, a Karen contou, ao sairmos da selva, as picaduras só da minha mão direita: 147!
As minhas pobres mãozinhs depois de 5 dias na mata....
A 25 de Abril hei-de sempre repetir: «Fascismo, nunca mais!»; e hei-de sempre repetir a 25 de Dezembro: «Selva? Vai tu, que ninguém te tratou mal!» Ou então sim, mas noutras condições, nesses lodges que há, em que se vê o mesmo, ou até mais e melhor, e se come e se dorme no conforto de bungalows. Acampar na mata amazónica, não obrigado, não se aconselha mesmo.
Trouxemos dois recuerdos da mata amazónica. Nem macacos, nem araras, nada disso: larvas de alguma borboleta ou de alguma mosca que se entretém a pôr ovos na malta. Dos ovos, é claro, saem párvulas lárvulas, a quem, de acordo com as kafkianas leis da metamorfose, não resta senão transformarem-se outra vez em mariposas. Depois de ver muitos vídeos sobre miíases e extrações de larvas, continuo sem saber que larva seria. Os colegas da Karen em Camargo chamavam-lhe puchichi, mas creio que puchichi é apenas uma palavra para qualquer furúculo, mesmo sem larva lá dentro. As nossas alarves larvas não chegaram à última fase, mas ainda nos moeram bastante o juízo durante dois mesitos. Eu tinha o meu bicho no dedo pequenino do pé direito, e a Karen o dela nas costas, do lado direito, à altura da omoplata. O meu saiu primeiro, a 11 de Fevereiro, morto e pequenino. Teria um centímetro, se tanto, e parecia um bicho da fruta. O da Karen foi mais difícil. Só saiu duas semanas mais tarde, moribundo da nicotina com que lhe tínhamos enchido a toca, a conselho de uma colega da Karen que tinha trabalhado nas zonas tropicais do país. Era grande e forte, o velhaco. Todas as noites, antes de nos deitarmos, eu via-o vir espreitar cá fora, mas nunca o consegui agarrar. Quando por fim saiu, tinha cerca de três centímetros de comprimento por meio centímetro de espessura – uma coisa realmente repulsiva!... O que é interessante é que as feridas fecham imediatamente depois de o bicho sair – no dia seguinte, já não está lá nada. A Karen sugeriu que o parasita talvez tenha algum tipo de desinfetante que vá limpando a carne onde está alojado, porque não deve querer viver no meio de uma infeção...



A larva acabadinha de sair das costas da hóspede

02/04/13

Os pensamentos são como as cerejas

Recordação de juventude: tinha um amigo que dizia que, se um marujo vive do mar, quem vive do ar é araújo. Conheço uma pessoa de apelido Araújo que deve estar agora na Bolívia de férias. Talvez em Sucre, que era um dos seus destinos. Em Sucre, veem-se penduradas dos fios telefónicos umas curiosas plantas de que quase se pode dizer que vivem do ar. Mas não é araújas que se chamam quando assim vivem: são aerófitas,que é uma forma específica de serem epífitas

Imagem de Wikimedia Commons: Tillandsias em fios telefónicos em Serrano, Bolívia


Relativismo, diz ele

Conheço um pessoa que, quando quer realçar que mora mesmo ao pé da praia, diz que tem a praia mais próxima a uns 300 metros de casa, se tanto; e que, quando fala do percurso diário de jogging, conta um quilómetro de casa à mesma praia. A praia em questão, tive já oportunidade de o constatar, nunca sai do mesmo lugar, independentemente do que essa pessoa diga da sua situação.

Que tudo é relativo? Que 600 metros de esforço são mais compridos que 600 metros de prazer? Ó filho, deixa-te disso!, como dizia a minha saudosa avó. A questão é antes saber quando é que à despreocupada falta de rigor ‒ ao sabor do sentimento ou da conveniência, é conforme ‒ se pode começar a chamar simplesmente mentira.